NINGUÉM
ME TIRA
Pois é, ninguém me tira este
prazer, o dos primeiros ensaios, quando, da letra do livro (ou da miserável
fotocópia), os olhos dos actores se começam a levantar, quando o corpo começa a
tomar conta das palavras, quando elas saem na harmonia dos desenvolvimentos.
Passámos, esta semana, duas tardes a ensaiar POR TUDO E POR NADA, o belíssimo
desafio de Nathalie SARRAUTE. Só nós os três, o Pedro Carraca, o João Meireles.
A Rita Lopes Alves apareceu com umas propostas de guarda-roupa, coisa para
vermos como serão as calças, o camisolão para o João Meireles (temos que
perceber que ele está em casa, sempre em casa), o fato para o Pedro Carraca
(temos de perceber que ele veio da rua), o tom para o cenário (eu digo:
"um bom apartamento da Cinco de Outubro, mas já sem pais, esvaziado de
móveis, só o sofá, duas cadeiras, uma mesa/secretária). E lembro-me daquela
belíssima gravura que me ofereceu um dia o JORGE MARTINS, em papel
estranhamente verde: uma porta entreaberta, luz que passa, uma frincha. E é
disso que trata a peça: a brecha, a frincha, o abismo, a luz que passa ou
rasga. Ninguém me tira essa alegria, a de ir apalpando o texto, de ir vendo os
corpos descobrir em si mesmos a noite das palavras, a de ir vendo os actores
(sempre eles, os ressuscitadores) a acendê-las.
(fotografia de Jorge Gonçalves de um
ensaio de POR TUDO E POR NADA
com Pedro Carraca e João Meireles, Artistas
Unidos)
Jorge Silva Melo
(Convidado do Clube de Leitores)
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