Isabel,
come as couves-de-Bruxelas.
Isabel
sentou-se no sofá, um sofá excessivo para o seu corpo diminuto.
Encostada
às costas do sofá, não chegava com os pés ao chão.
Lembrou-se
de si no tempo quando tantas vezes, quase todas as vezes, não chegava com os
pés ao chão.
Uma
menina quase sempre triste.
Triste
porquê?
Sim,
que eu não deixava que lhe faltasse nada.
E,
mais uma vez, a mesma frase.
Isabel,
come as couves-de-Bruxelas.
Como
se a única memória.
Uma
memória e um sabor amargo.
Isabel,
come as couves-de-Bruxelas.
A
voz da mãe aguda e enfática, sumida.
Os
lábios pintados, o colar de pérolas pequeninas sobre o decote.
As
pérolas falsas.
Como
se alguém perdesse o tempo a reparar nas pérolas.
Todos
os olhos no bico do seu decote, gulosos e em suspiros velados.
O
bico de seu decote, qualidade ou propriedade que aos dezanove anos lhe valeu o
título de viscondessa, ultrapassando pretendentes que tocavam piano e falavam
francês.
A
família do visconde em polvorosa.
A
família do visconde: Deu-nos um desgosto.
Depois.
O
exílio.
O
seu nascimento.
A
reconciliação.
A
família do visconde: Seja tudo pela menina.
A
mãe a entrar na casa pela primeira vez.
A
mãe com menos instrução que o mordono, a governanta, o chauffeur.
O
futuro visconde, com carinho, a dizer baixinho ao seu ouvido, chauffer é o
funcionário que conduz o veículo automóvel.
Funcionário?
Empregado.
A
sua mãe a mudar, o volume da voz, o tamanho dos gestos, as palavras na boca, as
roupas do corpo, o penteado, os sapatos.
Os sapatos duros e brilhantes de
verniz. Tudo brilhante na sua nova vida.
Já
não se lembra de andar descalça.
Passou
a infância descalça. Foi feliz descalça.
Já
não se lembra de ter sido feliz.
Nunca
permitiu que a filha andasse descalça, que à menina não lhe faltam sapatos.
A
mãe a adquirir a resistência de concha. Sedimentada, calcária, dura.
Todas
as atenções concentradas na filha, a sua criação, a tábua de salvação.
Isabel
obrigada à perfeição, mais perfeita que o bico do seu decote, sob o mesmo colar
de pérolas falsas, a única coisa do seu mundo original, pérolas falsas.
Como
se alguém perdesse tempo a reparar nas pérolas.
Pérolas
que agora ninguém supunha falsas, pérolas que antes apenas podiam ser falsas.
Quando
fez quinze anos a mãe deu-lhe um colar de pérolas verdadeiras.
Queria
uma bicicleta.
Obrigada
a andar de colar de pérolas e sapatos de verniz, não era feliz.
O
avô deu-lhe uma bicicleta.
A
discussão. Mais uma. Nesta casa ninguém respeita o que eu digo.
A
bicicleta a ganhar pó e ferrugem, a envelhecer.
A
mãe a envelhecer mais depressa do que a bicicleta.
Isabel
come as couves-de-Bruxelas.
E
Isabel já não comia as couves-de-Bruxelas.
Nesta
casa ninguém respeita o que eu digo.
A
mãe morreu ontem.
Hoje
o funeral.
Isabel
no sofá, sozinha na sala, os pés descalços, os pés sem os sapatos de verniz.
Habituou-se aos sapatos de verniz.
Habituamo-nos a tudo.
Batem
à porta.
O
velho mordomo, cúmplice na arte de fazer desaparecer couves-de-Bruxelas do seu
prato, cúmplice, porque foi com ele que, às escondidas, aprendeu a andar de
bicicleta.
Menina,
fica para jantar?
E
ela já não menina.
Fico
sim.
Apetece-lhe
algum prato em especial?
Sim,
qualquer coisa com couves-de-Bruxelas.
Raquel Serejo Martins