sábado, 13 de outubro de 2012

Primeiro Parágrafo (especial livro do mês): Gabriela, Cravo e Canela

O livro que lemos de Jorge Amado começa assim:

DO SOL & DA CHUVA 
COM PEQUENO MILAGRE

«Naquele ano de 1925, quando floresceu o idílio da mulata Gabriela e do árabe Nacib, a estação das chuvas tanto se prolongara além do normal e necessário que os fazendeiros, como um bando assustado, cruzavam-se nas ruas a perguntar uns aos outros, o medo nos olhos e na sua voz:
- Será que não vai parar?
Referiam-se às chuvas, nunca se vira tanta água descendo dos céus, dia e noite, quase sem intervalos. 
- Mais uma semana e estará tudo em perigo.
- A safra inteira...
- Meu Deus!
Falavam da safra anunciando-se excepcional, a superar de longe todas as anteriores. Com os preços do cacau em constante alta, significava ainda maior riqueza, prosperidade, fartura, dinheiro a rodo. Os filhos dos coronéis indo cursar os colégios mais caros das grandes cidades, novas residências para as famílias nas novas ruas recém-abertas, móveis de luxo mandados ir do Rio, pianos de cauda para compor as salas, as lojas sortidas, multiplicando-se, o comércio crescendo, bebida correndo nos cabarés, mulheres desembarcando dos navios, o jogo campeando nos bares e nos hotéis, o progresso enfim, a tão falada civilização.»

Poemas que dão música - Mayra Andrade e «Palavra»

De palavras se escrevem textos, se publicam livros, se transmitem emoções. Ontem fui ver Mayra Andrade à Casa da Música. Acompanhada pela Orquestra Jazz de Matosinhos.

O público foi embalado pela beleza, simpatia, alegria e pela enorme musicalidade de Mayra. O jazz assentou-lhe que nem uma luva. A letra desta música encaixa perfeitamente no blog. Fiquem com «Palavra».

Quem diz que não podemos encontrar poesia na música?


Palavra

«Palavra:
Cruzado é jogo
Trocado é intriga
Dado é cumprido
Faltado é falsia
D´amor é poesia

De Rei é Lei
De Senhor, Ámen
Mal scrito é erro
Bem scrito é arte
Firmado é promessa
Di bô é simplesmente um língua na nha boca

Palavra:
De vivo é vento
De morto é herança
De honra é aval
Às vezes é lamento
De ordi é pa grita

Gritado é força
Às vez é fraqueza
Rimado é beleza
Rumado é blá-blá
Xintido é oraçon
Di bô é simplesmente um língua na nha boca

Palavra:
A favor é argumento
Cantado é finaçon
Titubeado é gaguez
Truncado é mudez
Calado, hmm! Desconfia

De Romeu é Julieta
De Quixote é loucura
De Buda é sapiência
De Fidel, persistência
Di meu podi ser banal
Ma di bô é simplesmente um língua na nha boca»

a-ver-livros: quase ao almoço com Tim Ashkar

Nada alegra tantos os meus dias
quanto não te ter neles
Há um silêncio na casa que me permite ler. 

Mas podes voltar amanhã. 
E trazer um livro novo,
que termino este não tarda nada.

* para conhecer mais do trabalho do artista Tim Ashkar
basta seguir o link www.ashkarstudios.com

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Bairro dos Livros - Ler é Recordar


6ª Edição Bairro dos Livros
Programa 13.10.2012 (Sábado)


ALFARRABISTA MANUEL FERREIRA

SERVIÇO PERMANENTE – 24 HORAS
www.livrariaferreira.pt
www.eventoselivros.livrariaferreira.pt

* REITORIA DA UP *
10h00-18h00

Pr. dos Leões

Exposição: “A Farmácia no tempo de Aníbal Cunha”

* MÁQUINA DO TEMPO * 10h00-18h00

Instalação Áudiovisual “Naquela altura é que era bom!”

Locais: Livraria Lumière; Livraria Moreira da Costa; Livraria Vieira

* LOJA DA UP * 11h00-11h45

Pr. dos Leões

Recital de Poesia infantil

por Bruáa Editora

“O tigre na rua e outros poemas”. Antologia de poesia humorística de diversos autores estrangeiros, alguns deles publicados pela 1ª vez em Portugal.

* BIBLIOTECA MUSICAL * 14h00-14h45

Rua Cândido dos Reis

Palestra pelo Prof. Kasuo Kon

“Recordar o Amor”

* UNICEPE * 15h00-15h45

Pr. Carlos Alberto, 128

“Elas por ele” versus “Rapazes sobre raparigas”

Ping-pong por Artur Paulino e Rui Manuel Amaral

* LIVROS E COISAS * 16h00-16h45

Rua Mártires da Liberdade, 29

Entre Vistas de Bernardino Guimarães: Marquesa de Alorna e Mariana Alcaforado

Personificação por Ana Almeida santos e Cristina Martins

* FERNANDO MACHADO * 17h00-17h45

Rua das Carmelitas, 15

Poesia Visual série “Fome-Come”

de Silvestre Pestana

* BIBLIOTECA MUSICAL * 18h00-18h30

Rua Cândido dos Reis

Apresentação do livro ”TEORIA ESSENCIAL DA MÚSICA”, com a autora ROSEMARIE SÁNCHEZ KRICHEL

18.30 Recital de violino pela autora

*  JARDIM DA CORDOARIA * 19h00-20h00

Bailes, fraitas e gaitas de foles: o Cancioneiro Vivo de FREIXENOSA.

Concerto e degustação de produtos regionais mirandeses

Org: Sons da Terra e Prof. Abílio Topa

* JANTAR DOS VIZINHOS DE BAIRRO *
 
 20h00-21h30

Esplanadas da Cordoaria

* INCM * 21h30-23h00

Pr. Gomes Teixeira, 1 a 7

CINEMA DE ANIMAÇÃO

Apresentação da Festa Mundial da Animação 2012

com José António Cunha,

Casa da Animação


Depois do sucesso que foi o mês passado com o Festival dos Livros, lamentamos não poder participar nesta edição. Não por falta de vontade ou de ideias para este tema. Simplesmente porque não conseguimos agendar a participação no Bairro com os nossos afazeres do quotidiano, de quem colabora no Clube de Leitores. Prometemos voltar o mais breve que nos for possível e com muitas mais surpresas. Até lá não deixamos claro de divulgar e de nos passearmos amanhã pelo Bairro. Esperamos ver vos por lá!

1º Parágrafo: Os Pássaros de Banguecoque


E teve imediatamente a sensação de que a outra a incomodava. Desejava ficar sozinha, estender o corpo sobre os lençóis limpos, apagar a dor que se espalhava pelo interior da sua cabeça, como um molho escuro, pensar em três ou quatro coisas que lhe haviam acontecido naquela noite, esquecer outras tantas que sem dúvida aconteceriam amanhã. Talvez se me calar quando ela acabar de falar. Talvez interprete o meu silêncio como um convite para que me deixe sozinha, para que se vá embora. Mas para criar essa sensação era mister conseguir antes que a outra lhe tirasse o braço dos ombros, que retirasse aquela mão réptil rastejante que de vez em quando lhe acariciava o pescoço ou se deixava cair sobre o abismo roçando, ao de leve, a ponta do seio. A conversa continuava. Já não versava sobre problemas alheios, de outros protagonistas da festa acabada, mas sobre os seus problemas próprios.




* Tradução de Daniel Gonçalves
* Manuel Vázquez Montalbán (Barcelona, 14 de Junho de 1939 — Banguecoque, Tailândia, 18 de Outubro de 2003)
* Filho de Evaristo Vázquez, republicano exilado em França aquando do seu nascimento, que quando entrou clandestinamente em Espanha para conhecer o filho recém-nascido foi preso.
* Enquanto cursou jornalismo, Montalbán trabalhou como cobrador de uma casa funerária.

a-ver-livros: o exemplo e Sun Weimin

Imitas-me 
e nem sabes bem porquê

Um dia saberás
e nunca mais largarás os livros

* Para conhecer mais do trabalho do pintor chinês Sun Weimin
basta seguir o link  artmuseum.com.cn/hisArtistWorks

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

IsaBEL


Isabel, come as couves-de-Bruxelas.

Isabel sentou-se no sofá, um sofá excessivo para o seu corpo diminuto.
Encostada às costas do sofá, não chegava com os pés ao chão.
Lembrou-se de si no tempo quando tantas vezes, quase todas as vezes, não chegava com os pés ao chão.
Uma menina quase sempre triste.

Triste porquê?
Sim, que eu não deixava que lhe faltasse nada.

E, mais uma vez, a mesma frase.
Isabel, come as couves-de-Bruxelas.
Como se a única memória.
Uma memória e um sabor amargo.
Isabel, come as couves-de-Bruxelas.
A voz da mãe aguda e enfática, sumida.
Os lábios pintados, o colar de pérolas pequeninas sobre o decote.
As pérolas falsas.
Como se alguém perdesse o tempo a reparar nas pérolas.
Todos os olhos no bico do seu decote, gulosos e em suspiros velados.
O bico de seu decote, qualidade ou propriedade que aos dezanove anos lhe valeu o título de viscondessa, ultrapassando pretendentes que tocavam piano e falavam francês.
A família do visconde em polvorosa.
A família do visconde: Deu-nos um desgosto.
Depois.
O exílio.
O seu nascimento.
A reconciliação.
A família do visconde: Seja tudo pela menina.
A mãe a entrar na casa pela primeira vez.
A mãe com menos instrução que o mordono, a governanta, o chauffeur.
O futuro visconde, com carinho, a dizer baixinho ao seu ouvido, chauffer é o funcionário que conduz o veículo automóvel.
Funcionário?
Empregado.
A sua mãe a mudar, o volume da voz, o tamanho dos gestos, as palavras na boca, as roupas do corpo, o penteado, os sapatos.
Os sapatos duros e brilhantes de verniz. Tudo brilhante na sua nova vida.
Já não se lembra de andar descalça.
Passou a infância descalça. Foi feliz descalça.
Já não se lembra de ter sido feliz.
Nunca permitiu que a filha andasse descalça, que à menina não lhe faltam sapatos.
A mãe a adquirir a resistência de concha. Sedimentada, calcária, dura.
Todas as atenções concentradas na filha, a sua criação, a tábua de salvação.
Isabel obrigada à perfeição, mais perfeita que o bico do seu decote, sob o mesmo colar de pérolas falsas, a única coisa do seu mundo original, pérolas falsas.
Como se alguém perdesse tempo a reparar nas pérolas.
Pérolas que agora ninguém supunha falsas, pérolas que antes apenas podiam ser falsas.
Quando fez quinze anos a mãe deu-lhe um colar de pérolas verdadeiras.
Queria uma bicicleta.
Obrigada a andar de colar de pérolas e sapatos de verniz, não era feliz.
O avô deu-lhe uma bicicleta.
A discussão. Mais uma. Nesta casa ninguém respeita o que eu digo.
A bicicleta a ganhar pó e ferrugem, a envelhecer.
A mãe a envelhecer mais depressa do que a bicicleta.

Isabel come as couves-de-Bruxelas.
E Isabel já não comia as couves-de-Bruxelas.
Nesta casa ninguém respeita o que eu digo.

A mãe morreu ontem.

Hoje o funeral.

Isabel no sofá, sozinha na sala, os pés descalços, os pés sem os sapatos de verniz.
Habituou-se aos sapatos de verniz.
Habituamo-nos a tudo.
Batem à porta.
O velho mordomo, cúmplice na arte de fazer desaparecer couves-de-Bruxelas do seu prato, cúmplice, porque foi com ele que, às escondidas, aprendeu a andar de bicicleta.
Menina, fica para jantar?

E ela já não menina.

Fico sim.
Apetece-lhe algum prato em especial?
Sim, qualquer coisa com couves-de-Bruxelas.

Raquel Serejo Martins


1º Parágrafo: Conversa n'A Catedral


Da porta do La Crónica, Santiago contempla a Avenica Tacna, sem amor: automóveis, edifícios desiguais e desbotados, esqueletos de anúncios luminosos a flutuar na neblina, o meio-dia cinzento. Em que altura se tinha fodido o Peru? Os ardinas vagueiam entre os veículos pelo semáforo da Wilson, apregoando os jornais da tarde, e ele começa a andar, devagar, em direcção à Colmena. De mãos nos bolsos, cabisbaixo, é escoltado por transeuntes que se dirigem também, à Plaza San Martín. Ele era como o Peru, Zavalita, a certa altura, tinha-se fodido. Pensa: em que altura? De fronte do Hotel Grillón, um cão vem lamber-lhe os pés: põe-te a mexer, não vás estar raivoso. O Peru fodido, pensa, Carlitos fodido, todos fodidos. Pensa: não há solução. Vê uma enorme bicha na paragem dos colectivos para Miraflores, atravessa a praça e lá está Norwin, olá amigo, numa mesa do Bar Zela, senta-te Zavalita, segurando um pisco com ginger ale, engraxando os sapatos, a oferecer-lhe uma bebida. Não parece bêbado por enquanto e Santiago senta-se, faz sinal ao engraxador para lhe engraxar também os sapatos. Pronto, chefe, deixar-lhos-ia a brilhar como um espelho, chefe.



* Tradução de José Teixeira de Aguilar
* Mário Vargas Llosa foi, em 1990, candidato à Presidência da República do Peru, tendo perdido as eleições para Alberto Fujimori 

Mo Yan entra para o quadro de honra dos Nobel da Literatura


Está entregue o Nobel da Literatura de 2012, como de costume muito aquém do que eram os previsíveis nas apostas.

Mo Yan nasceu a 5 de Março de 1955, Gaomi, na província de Shandong. O escritor, que lançou o seu primeiro romance, Falling Rain On a Spring Night, em 1981, mereceu a mais nobre distinção do mundo da literatura por ser, segundo comunicado pelo comité do Nobel, um autor "cujo realismo alucinatório funde contos tradicionais, História e contemporaneidade". A sua escrita, como é aliás reconhecido pelo próprio, é grandemente influenciada por William Faulkner, Gabriel Garcia Marquez.

A adaptação ao cinema de "Milho Vermelho", em 1987, por Zhang Yimou, cimentou o seu estatuto na China e chamou a atenção do mundo. Traduções dos seus livros no Japão, França, Itália, Estados Unidos e Inglaterra cimentaram o seu estatuto internacional.

Em Portugal, Mo Yan tem apenas um livro traduzido, "Peito Grande, Ancas Largas", editado em 2007 pela Ulisseia. Publicada originalmente 1995, a obra causou grande controvérsia na China devido ao teor sexual da história. Mo Yan foi obrigado a escrever uma autocrítica ao seu próprio livro, e, mais tarde, a retirá-lo de circulação. Esse episódio, aliado, por exemplo, à participação na cópia manuscrita de um discurso de Mao Zedong, em que este definia os parâmetros a seguir na arte e literatura chinesas, levou-o a ser considerado pelos opositores ao regime chinês como um autor alinhado, não independente. O pseudónimo Mo Yan, escolhido pelo homem nascido Guo Moye, significa em chinês "não fales" - dessa forma, ele que se diz sempre franco no seu discurso, lembrar-se-á constantemente de que não deve falar demasiado.

Em 2009, numa conferência na Feira do Livro de Frankfurt, respondeu às acusações de falta de independência perante o poder. "Um escritor deve exprimir crítica e indignação perante o lado negro da sociedade e a fealdade da natureza humana, mas não devemos recorrer a formas de expressão uniformes. Alguns poderão querer gritar nas ruas, mas devemos tolerar aqueles que se escondem nos seus quartos e usam a literatura para transmitir as suas opiniões".

a-ver-livros: na cor de Lucy Doyle

Reconheço a capa do livro
que a tua mão segura

como reconheço a exuberância na decoração
as flores multicores
o fervilhar intenso dos jogos de luz

o teu olhar concentrado
naquelas linhas daquela página
que ainda hás-de citar
de cor

* Para conhecer mais do trabalho da pintora irlandesa Lucy Doyle
siga o link  lucydoyle.com

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Poema à noitinha... Manuel Maria Barbosa du Bocage

Meu Ser Evaporei na Luta Insana

«Meu ser evaporei na luta insana
Do tropel de paixões que me arrastava:
Ah! cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
Em mim quasi imortal a essência humana!

De que inúmeros sóis a mente ufana
Existência falaz me não dourava!
Mas eis sucumbe Natureza escrava
Ao mal, que a vida em sua origem dana.

Prazeres, sócios meus, e meus tiranos!
Esta alma, que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos

Deus, ó Deus!... quando a morte a luz me roube,
Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube.»


*Nascido em Setúbal às três horas da tarde de 15 de Setembro de 1765, falecido em Lisboa na manhã de 21 de Dezembro de 1805, era filho do bacharel José Luís Soares de Barbosa, juiz de fora, ouvidor, e depois advogado, e de D. Mariana Joaquina Xavier l'Hedois Lustoff du Bocage, cujo pai era francês.

1º Parágrafo: Gente Feliz com Lágrimas


Com excepção dos nomes e das cores, que se haviam delido no tempo, seriam apenas os barcos – os mesmos desse dia feliz em que papá decidira levá-la a vê-los de perto pela primeira vez. Porque lá estavam ainda, emborcados por cima do convés, os mesmos escaleres cobertos pelas lonas. Estavam as torres, as vigias redondas como olhos de peixe e as mesmas bóias ressequidas, presas dos ganchos. Quando largaram da doca – e o focinho cortante das proas rasgou o pano azul das águas atlânticas, rumo a Lisboa – havia também a mesma chuva ácida do princípio da noite. Além disso, dera-se a chegada das mesmíssimas vacas ao cais de embarque, sendo elas destinadas aos matadouros continentais. E o pranto da muita gente que ali ficou a agitar lencinhos de adeus fora-se logo convertendo num uivo, o qual acabou por confundir-se com o rumor do vento a alto mar.


* João de Melo nasceu em 1949, na Achadinha, na ilha de São Miguel, arquipélago dos Açores.
* Esteve na guerra do Ultramar entre 1971 e 1974.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Porquê «Gabriela, Cravo e Canela» em Outubro?


Alguns poderão achar que a escolha que faço para leitura conjunta do blog tenta aproveitar o sucesso da nova novela que passa na televisão. Mas não é esse o real motivo. A lógica principal de lermos «Gabriela, Cravo e Canela» é celebrarmos, em 2012, o centésimo aniversário do nascimento do escritor baiano Jorge Amado.

Como tal, acho que chegou o momento ideal para abrirmos o livro da vida do autor. E deliciarmo-nos com esta história. Acho que lhe prestamos uma grande homenagem, explorando um dos livros mais famosos do seu vasto currículo e, ao mesmo tempo, conhecendo as várias interpretações que foram feitas do mesmo.

A personagem Gabriela veio ao mundo em 1958. Esta é a mais popular e traduzida história de Jorge Amado. Em 1999, já contava com 80 edições só no Brasil. Ganhou 5 prémios literários (todos no país do escritor) logo em 1959. Foi adaptado para 3 telenovelas, ao cinema, dança e banda desenhada.

Quanto à história, dispensa grandes apresentações. Deixo convosco apenas a sinopse da edição portuguesa reeditada este ano pela Dom Quixote:

«Gabriela, a mulata com a cor da canela e o cheiro do cravo, ficará na literatura como uma formosa figura de mulher, simples e espontânea, acima do Bem e do Mal. Com o seu inigualável lirismo e inspiração poética, Jorge Amado cria personagens inesquecíveis, e o comovente romance de amor do árabe Nacib e da mulata Gabriela coloca-os, sem dúvida, na galeria dos amantes da História da Literatura. Mas "Gabriela, Cravo e Canela" é mais do que a história de amor do árabe Nacib e da sertaneja Gabriela. É a crónica de uma pequena cidade baiana, Ilhéus, quando passava por bruscas transformações, por volta do ano de 1925. A riqueza trazida pelo cacau possibilitara o desenvolvimento urbanístico e o progresso económico, transformando profundamente a fisionomia da cidade. Pouco evoluíam, no entanto, os costumes dos habitantes, imperando, naquele cenário de violência, a lei dos mais fortes - os fazendeiros - que tendo a seu trabalho os jagunços, impunham o domínio do ódio e do terror. Sensual e inocente, sábia e pueril, a cozinheira Gabriela conquista não apenas o coração de Nacib e de uma porção de ilheenses, mas também o de leitores de vários países e gerações. Levada para a televisão, a sua história transformou-se numa das telenovelas brasileiras de maior sucesso pelo mundo fora. No cinema, o papel de Nacib é vivido por Marcello Mastroianni, e o de Gabriela por Sônia Braga, como já acontecera na novela.»

Estou certo que muita gente vai querer embarcar nesta viagem. Serve para todos os que acompanham a nova novela ou os que conheceram a primeira (de 1975). É também um convite aos que ainda não conhecem o estilo de escrita cativante de Jorge Amado. E da sua vida cheia e extraordinário percurso.

Fiquem connosco. A viagem começou!

1º Parágrafo: A Costa dos Murmúrios


O noivo aproximou-se-lhe da boca, a princípio encontrou os dentes, mas logo ela parou de rir e as línguas se tocaram diante do fotógrafo. Foi aí que o cortejo sofreu um estremecimento de gáudio e furor, como se qualquer desconfiança de que a Terra pudesse ter deixado de ser fecundada se desvanecesse. Já não estavam junto de nenhum altar, mas no terraço do Stella Maris cujas janelas abriam ao Índico. No terraço, obviamente, não havia janelas, apenas pilares sobre os quais se estendia uma cobertura suave mas suficientemente protectora para se poder receber um cortejo daquela importância e quantidade. O fotógrafo subiu a cadeiras e desceu até ao chão, de modo a ficar completamente estendido para apanhar o beijo em todas as posições. Por isso, o noivo continuava com os olhos fechados, e ela só de vez em quando abria os seus, e o cortejo aplaudia incessantemente como no final duma ária subtil que certamente não se ouvirá jamais. Pressuroso, o fotógrafo pediu que o noivo tomasse a noiva nos seus braços e a levantasse à altura do peito, junto da vedação que impedia que as pessoas, uma vez debruçadas, caíssem ao Índico. Era majestoso. Ela obedeceu – encostou a cabeça ao ombro do noivo, e o noivo olhou ternamente para o rosto dela. Descidos e lânguidos, os olhos dele tinham alguma coisa líquida de peixe quando abriam e fechavam. Ainda aí o cortejo batia palmas, e havia quem transpirasse e tivesse as mãos enrubescidas de tanto aplaudir. Aquele era um momento cheio de encanto.


a-ver-livros: uma nesga com Louis Guarnaccia

Quero acreditar que há uma nesga de sol que vai ficar a meu lado
uma nesga fiel como cão
capaz de iluminar a página mais negra dos meus dias

Quero acreditar na primavera mesmo no meio do inverno

* para conhecer mais do trabalho do pintor Louis Guarnaccia
siga o link louisguarnaccia.com

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

José Luís Peixoto aventura-se na Coreia do Norte e na literatura de viagens


Desde o interior da ditadura mais repressiva do mundo, desde um país coberto por absoluto isolamento, "Dentro do Segredo". Em Abril de 2012, José Luís Peixoto foi um espectador privilegiado nas exuberantes comemorações do centenário do nascimento de Kim Il-sung, em Pyongyang, na Coreia do Norte. Também nessa ocasião, participou na viagem mais extensa e longa que o governo norte-coreano autorizou nos últimos anos, tendo passado por todos os pontos simbólicos do país e do regime, mas também por algumas cidades e lugares que não recebiam visitantes estrangeiros há mais de sessenta anos.

A surpreendente estreia de José Luís Peixoto na literatura de viagens leva-nos através de um olhar inédito e fascinante ao quotidiano da sociedade mais fechada do mundo. Repleto de episódios memoráveis, num tom pessoal que chega a transcender o próprio género, "Dentro do Segredo" é um relato sobre o outro que, ao mesmo tempo, inevitavelmente, revela muito sobre nós próprios.

O novo livro de José Luís Peixoto, "Dentro do Segredo, Uma viagem na Coreia do Norte", deverá chegar às livrarias portuguesas, a 16 de Novembro próximo.

1º Parágrafo: Crónica do Rei Pasmado


A madrugada daquele domingo, tantos de Outubro, foi de milagres, maravilhas e surpresas, embora tivesse havido, como sempre, desacordo entre testemunhas e testemunhos. Mais exacto seria, certamente, dizer que toda a gente falou deles, ainda que ninguém os tivesse visto; mas, como a exactidão é impossível, mais vale deixar as coisas como as contam e contarão: foi a cova da rua do Pez, que ficou à vista do mundo durante todo o dia, e o povo acorreu a vê-la e cheirá-la como se fosse a abada. O caso, segundo se relata, foi, por exemplo, assim: uma velha, de madrugada, viu sair uma víbora de debaixo de uma pedra: a víbora desatou a correr para baixo como podia ter desatado a correr para cima; mas o que viu o correeiro da Rua de São Roque já não foi uma víbora, mas sim uma cobra de razoável tamanho, que também desatou a correr para cima ou para baixo, a direcção não consta. A beata que saía de São Ginés, de ouvir a missa da alba, viu um verdadeiro cobrão que, esse sim, ia a caminho do Paço, mais coisa menos coisa; e, finalmente, alguém da Guarda Valona que ia para o serviço ou vinha dele (isto não é muito preciso), o que pôde contemplar, atónito ou esbugalhado, foi uma gigantesca boa que rodeava o Paço, pela parte que assenta na terra ou confina com ela, e parecia apertar o edifício com ganas de o derrubar, ou pelo menos de o espremer, o que parece mais verosímil, pelo menos do ponto de vista da semântica. O guarda valão começou aos gritos na sua língua, mas, como ninguém o entendia, deu tempo a que a gigantesca serpente desistisse do seu propósito, pelo menos aparentemente, e se escapulisse com espantosa mansidão para o Campo del Moro, onde foi procurada em vão durante toda a manhã por equipas de peritos que se revezavam de hora a hora. A história do tesouro de moedas antigas atribuiu-se à sorte de um catraio, mas havia algumas variantes na localização do achado: segundo uns, fora da Portela de Embaixadores, conforme se sai, à direita; segundo outros, à saída da Porta de Toledo, segundo se sai, à esquerda. Nem o tesouro nem o catraio foram encontrados.




* Tradução de António Gonçalves
* Nasceu em Serantes, Ferrol, Curunha, a 13 de Junho de 1910
* Míope, o que o impediu fazer carreira na Marinha de Guerra, cursou Direito, licenciou-se em história pela Universidade de Santiago.
* Em 1975 foi nomeado membro da Real Academia Espanhola e em 1976 foi galardoado com o Prémio Cervantes

a-ver-livros: no museu com Linda Apple

Quisera eu ser
a mulher no quadro

Talvez o seu livro seja melhor
do que esta noveleta
que me ajuda a matar as horas
enquanto ganho a vida

* para conhecer mais sobre a artista norte-americana Linda Apple
siga o link www.applearts.com

domingo, 7 de outubro de 2012

Fez-se ausente

(ao domingo) Letras Focadas

“Na ponta da pena, soltam-se letras conjugadas, bem focadas, para serem percebidas”


Passou por ele uma leve pena, esvoaçante, quase invisível.

- Deixa-me ajudar-te a carregar esses fardos  - disse-lhe a pena que flutuava em frente dos seus olhos.

Olhou-a com surpresa. Nunca ninguém lhe tinha ensinado a partilhar fardos. Há muito que os carregava, os dele e os dos outros.

Desde de cedo que aprendera isso. Hoje, homem feito, já nem sabia distinguir os que lhe pertenciam e os que tinha herdado. Eram fardos apenas, pesados e guardados.

 Soprou de mansinho a pena que bailava ali, ao alcance da sua mão . Queria-a distante, não fosse ela perceber que nunca tinha aprendido a dividir o peso do sofrimento.

 - Não ouviste o que te disse? Se me deres alguns, eu ajudo-te. Dividimos o peso, insiste a leve pena que parecia ser feita de chumbo; o sopro para a afastar apenas a tinha aproximado mais. Agora quase roçava no seu rosto.

Ela não entende - pensou - eu não sei fazer isso. Nunca aprendi a dividir o peso dos fardos que em mim habitam. Não sei fazer isso! Aprendi a viver pesado, carregado. Aprendi a mostrar a leveza que não existe em mim.

- Olha, tu és leve demais para carregar alguns fardos - diz-lhe ele

A pena parou o flutuante bailado e disse-lhe: - Como te enganas! Testa-me! Dá-me lá alguns fardos para veres como sou forte. Escolhe à tua vontade.

Por momentos, ficou incrédulo. Esta pena é teimosa - pensou - ela não percebe que eu já nem sei o que me pesa mais. Carrego-os , simplesmente. Cada vez mais, mais pesados, mais assustadores. Tenho medo, o fardo mais pesado, de um dia não ser capaz de os trazer dentro de mim e, como não aprendi a partilhá-los, ser esmagado pelo peso de tanta dor dentro de mim.

- Não tenhas medo - disse-lhe a pena - eu ensino-te a dividir o peso. Dá-me o teu fardo maior: o teu medo. Esse é leve para mim!

Fechou os olhos!
Fez - se ausente.
Teve medo de acreditar!
Foto José Oliveira

a-ver-livros: na banheira com Chen Bolan

Não há poesia maior do que um domingo de manhã, 
na banheira,
livro na mão, página após página, suspensa no tempo.

Até que a água arrefece
e a vida continua, pés nus sobre o tapete felpudo.

* para conhecer mais sobre o artista chinês Chen Bolan
siga o link www.peabodyfineart.com/bolan