SINFONIA
DO AMOR
Ajoelhou-se, agarrou um
punhado de terra e cheirou-a. Cheirava a tempo e a saudade. Fechou os olhos. E
as lembranças vieram. Com a voz do vento. Num sussurro...
A terra ainda tinha o cheiro
dela. O cheiro macio de mulher...
A mão fechada guardou aquela
lembrança, junto ao peito.
Até que o vento lhe disse:
Levanta-te. E ele largou-a.
Em volta havia árvores
velhas, giestas e rochas. E o vento sussurrava: Ah, como tudo é efémero! Porque pensas no que passou?! Olha em torno de
ti e verás mais do que saudade. Mais do que já foi...
Pássaros chilreavam, e para
lá das rochas havia o verde dos campos. Um verde macio e luminoso.
O ar cheirava a rosas. Mais
do que o cheiro dela. Muito mais.
O alpendre dava para os
montes, lá longe, onde o sol descia, cansado. Sentado na velha cadeira de baloiço,
ele relembrava outros pôr-do-sol de dias longínquos. Tantos que já não existia
nenhum que pudesse ser novidade. Como aquele, rubro, presenciara centenas... E
no entanto... era sempre novo... era sempre diferente.
Aquele lugar era belo.
Sempre fora.
Apenas os pomares e as
vinhas tinham sido invadidos pelo mato e jaziam abandonados. Mas até esse
abandono estava para além da simples ideia de ruína, de caos. Era como um
retorno ao primordial, ao início. E essa ideia ajudava a superar, aquela
imediata, de tristeza, de desolação. (Bandos de pássaros enxameavam o arvoredo,
em volta, e os seus cantos erguiam-se no entardecer...)
Afinal tudo era, também,
imediato.
Devia sabê-lo.
Acendeu o cachimbo e aspirou
o fumo, profundamente. A noite caíra, e havia já nuvens de mosquitos pululando
a lâmpada do alpendre. Expulsou o fumo e cheirou a noite. Cheirava a tempo,
feito de nostalgia. Cheirava a tílias, eucaliptos e ao verde dos prados.
Cheirava aos mil cheiros de flores silvestres.
Cheirava (também) a
lembranças boas. A brincadeiras e a risos. Que mal havia na saudade? Não era
certamente um velho caquéctico vivendo do mofo das lembranças. Era apenas um
homem que guardava memórias. Um homem que viajava no tempo, porque o tempo
estava lá, sempre à sua espera.
Ah, havia também o cheiro
dela, misturado com todos os outros. Aquele cheiro bravio de mulher...
Hum... E como era bom!
O cachimbo quedou-se,
suspenso, entre ele e a noite. E para lá das lembranças, um sorriso aceso, um corpo
jovem chamando-o: a silhueta em fogo, os bicos erectos dos seios, as ancas
rijas e jovens recortavam-se contra o luar, sobre a colina.
O cheiro dela ainda lá
estava...
Amou-a como nunca tinha
amado ninguém.
O amor mata… O amor é o
maior assassino porque mata quem verdadeiramente ama… Mata de prazer,
Mata tão ardentemente
Que a morte se deseja,
Quase tanto como a vida
Como pode ser?
Lembra-se de a ter despido
entre as videiras, ao luar, ou então sobre medas de feno cortado e empilhado ao
sol, com o cheiro da terra e do mar misturados
E o corpo dela
Tinha o sabor do vento
O gosto quente e ardente de
um
Pensamento
Veloz
Um cavalo de força
Irrompendo da terra
Tão ávido de espaço
Tão ávido de tempo
Que o tempo
Se reduzia
A um momento apenas
Tão pequeno
Mas tão intenso
Que não havia tempo ou
pensamento
Que coubessem nele
E contudo
Ele era todos os momentos e
todos
Os pensamentos
Há dias que se senta sob o
alpendre, depois de a noite chegar, e aguarda
O momento
Em que o pensamento
Se fará sentimento
O momento em que o tempo
O deixará sentir
Uma vez mais…
Conhece todas as estrelas e
no entanto nunca lhe soube os nomes, mas conhece-as porque as olhou mais vezes
do que qualquer outra coisa de que se lembre, do que o seu próprio rosto que às
vezes barbeia, outras não.
Agora, uma vez mais
procura-as no negro céu, e para cada uma delas sorri, lembrando os momentos em
que, ambos, saciados as olhavam inventando o que não sabiam.
- Sabes – dissera-lhe ela
uma vez – se pudesse gostaria de ser cosmonauta. Um dia.
O sorriso dela, incendeia a
noite, porque todos os sonhos têm essa força e essa vontade e esse poder.
De incendiar a noite.
- Para quê? – Perguntara
ele, como sempre adivinhando a resposta. Mas a pergunta ajudava-o a pensar. A
sentir o sonho.
- Ora, conheces mais alguém
que tenha a sorte de poder tocar as estrelas?
- Conheço.
- Quem?
- Nós!
O sorriso dela incendiara
ainda mais a noite, pondo em risco o fardo de palha seca, onde os corpos nus se
estendiam, como se esperassem que o luar os guiasse, como em tempos guiara os
audazes marinheiros por um mar desconhecido
Mas a palha não ardeu
Pois se já não tinha ardido
Sob o calor dos seus corpos
Nenhum incêndio
Jamais
A queimaria!
- Por mim – ouviu-se ele a
dizer – dava tudo para poder parar o tempo. Neste preciso momento. Mesmo que o
meu corpo esteja fora do teu e a tua voz soe a mais de dois palmos da minha
orelha, porque sei, agora, que estamos juntos e somos felizes.
- Estaremos sempre juntos…
- Mas talvez nem sempre
sejamos felizes…
A felicidade é como um fogo
Que por maior que seja
Acaba por se extinguir
Um dia – pensa.
A noite tem o cheiro dela.
Tem o cheiro a rosas e a chuva, um aroma de terra molhada que lhe traz à
lembrança o orvalho de suor que lhe cobria a pele depois
Depois…
Percorria-lhe a pele com a
língua, as curvas e os recantos, todos e tão poucos, enquanto ela gargalhava,
enquanto os risos dela o faziam arder mais e mais
O sabor de uma mulher
O sabor da mulher que amamos
É mais doce do que
Mel
Mais, muito mais…
A saudade é como um sonho em
pleno pesadelo,
Angustia-nos tanto, que
sonhamos todos os pesadelos
Ansiosos por jamais
despertar.
A saudade, sentimento
controverso e indesejado,
Por nos lembrar o que
desejamos
Cravando-nos na alma a dor
do que não se tem… e se deseja,
Espécie de Sinfonia do Amor
Que soa indefinidamente…