sábado, 21 de junho de 2014

Qual é o truque?

Dessin : Xavier GORCE

Encontrado na página Improbables Bibliothèques, 
Improbables Librairies. A não perder por nada!

«Mulheres»: Bukowsky ao seu estilo

Henry Chinaski é o alter ego assumidamente biográfico do próprio Bukowsky. Num ambiente repleto de álcool e sexo, somos transportados a uma visão insuportavelmente realista das suas vivências, onde o protagonista (poeta e bebedor compulsivo) conjuga a sua prepotência junto das mulheres com a fragilidade que só elas podem compensar. A literatura e as tertúlias, numa perspectiva muito próxima do imaginário da beat generation, são o motor desta história, que começa com Chinaski, na primeira pessoa: «eu tinha cinquenta anos e há quatro que não ia para a cama com uma mulher». Um exemplo extremo da fusão entre realidade e ficção, já que as vivências do próprio autor não andaram longe das situações descritas.



*a leitura deste romance é conduzida pelo Clube do Livro SESLA. 

Saudação a Whitman, por Álvaro

"[...] Que nenhum filho da puta se me atravesse no caminho!
O meu caminho é pelo infinito fora até chegar ao fim!
Se sou capaz de chegar ao fim ou não, não é contigo, deixa-me ir…
É comigo, com Deus, com o sentido-eu da palavra Infinito…
Prà frente!
Meto esporas!
Sinto as esporas, sou o próprio cavalo em que monto,
Porque eu, por minha vontade de me consubstanciar com Deus,
Posso ser tudo, ou posso ser nada ou qualquer coisa,
Conforme me der na gana… Ninguém tem nada com isso…[...]"

Excerto de "Saudação a Walt Whitman", de Álvaro de Campos
("Portugal — Infinito, onze de Junho de mil novecentos e quinze")


*descoberto no Facebook de Vanda Fino




Tom Gauld: My Library

MY LIBRARY, Tom Gauld.


sexta-feira, 20 de junho de 2014

Jacarandá - nova chancela da Editorial Presença

*clique na imagem para ler o comunicado. 

Para a vida inteira

Para a vida inteira

A minha filha perguntou-me 
o que era para a vida inteira 
e eu disse-lhe que era para sempre. 
Naturalmente, menti, 
mas também os conceitos de infinito 
são diferentes: é que ela perguntou depois 
o que era para sempre 
e eu não podia falar-lhe em universos 
paralelos, em conjunções e disjunções 
de espaço e tempo, 
nem sequer em morte. 
A vida inteira é até morrer, 
mas eu sabia ser inevitável a questão 
seguinte: o que é morrer? 
Por isso respondi que para sempre 
era assim largo, abri muito os braços, 
distraí-a com o jogo que ficara a meio. 
(No fim do jogo todo, 
disse-me que amanhã 
queria estar comigo para a vida inteira) 
Ana Luísa Amaral


Imagem retirada do filme: Beginners

Nascer para os livros

No ano em que eu nasci, Mario Vargas Llosa publicava "A Casa Verde". Truman Capote dava ao prelo "A Sangue Frio". E o grande Julio Cortázar dava ao mundo "Todos os Fogos o Fogo", um livro de contos de que nunca tinha ouvido falar e que agora anseio desesperadamente por ter nas mãos.

Descobri esta informação num interessante post do site brasileiro Homo Literatus.
Para descobrir livros que foram publicados no seu ano de nascimento basta carregar AQUI.


Ana Almeida

Foto frase do dia: Aldous Huxley

quinta-feira, 19 de junho de 2014

A selecção Portuguesa vista pela Penguin


Portuguese literature is perhaps less well known abroad in English-speaking countries as that of its European neighbours, but it has fantastic literary tradition in its own right that has produced some seminal and remarkable works.
The Renaissance period saw one of Portugal’s most famous writers Luís Vaz de Camões produce ‘Os Lusíadas’ (‘The Luisads’), a Homeric poem about the Portuguese voyages of discovery in the 15th and 16th Centuries that has come to be regarded as the country’s national epic.
Camões was a big influence on another esteemed poet born more than 350 years later: Fernando Pessoa’s experiments in poetry and fiction mark him out as one of the most important figures in 20th century literature, pioneering the concept of literary heteronyms, i.e. writing via a variety of different personas complete with different styles of prose (most famously in The Book of Disquiet). What’s more, he achieved this impressive body of work while barely stepping foot out of his hometown of Lisbon.


*este artigo foi originalmente escrito no site da Penguin: ver aqui - http://www.penguin.co.uk/authors/penguin-cup/#portugal

The Team

We could have filled this team with 11 Fernando Pessoa heteronyms, but that would have resulted in a disquieting and fragmented team; exactly the kind Pessoa would have liked, in other words, but not the most cohesive unit in the world. Jose Saramago brings real quality to the team, with his page-long sentences showing he is not averse to a patient build-up.
Nota Clube de Leitores:
Guarda Redes - António Lobo Antunes
Defesas - Antero de Quental, Aquilino Ribeiro, Miguel Sousa Tavares, Lídia Jorge
Meio campo - Almeida Garrett, Mário Cláudio, Luís de Camões
Avançados - Camilo Castelo Branco, Fernando Pessoa, José Saramago

A sinfonia do amor de Emílio Miranda

SINFONIA DO AMOR

Ajoelhou-se, agarrou um punhado de terra e cheirou-a. Cheirava a tempo e a saudade. Fechou os olhos. E as lembranças vieram. Com a voz do vento. Num sussurro...
A terra ainda tinha o cheiro dela. O cheiro macio de mulher...
A mão fechada guardou aquela lembrança, junto ao peito.
Até que o vento lhe disse: Levanta-te. E ele largou-a.
Em volta havia árvores velhas, giestas e rochas. E o vento sussurrava: Ah, como tudo é efémero! Porque pensas no que passou?! Olha em torno de ti e verás mais do que saudade. Mais do que já foi...
Pássaros chilreavam, e para lá das rochas havia o verde dos campos. Um verde macio e luminoso.
O ar cheirava a rosas. Mais do que o cheiro dela. Muito mais.

O alpendre dava para os montes, lá longe, onde o sol descia, cansado. Sentado na velha cadeira de baloiço, ele relembrava outros pôr-do-sol de dias longínquos. Tantos que já não existia nenhum que pudesse ser novidade. Como aquele, rubro, presenciara centenas... E no entanto... era sempre novo... era sempre diferente.
Aquele lugar era belo.
Sempre fora.

Apenas os pomares e as vinhas tinham sido invadidos pelo mato e jaziam abandonados. Mas até esse abandono estava para além da simples ideia de ruína, de caos. Era como um retorno ao primordial, ao início. E essa ideia ajudava a superar, aquela imediata, de tristeza, de desolação. (Bandos de pássaros enxameavam o arvoredo, em volta, e os seus cantos erguiam-se no entardecer...)
Afinal tudo era, também, imediato.
Devia sabê-lo.

Acendeu o cachimbo e aspirou o fumo, profundamente. A noite caíra, e havia já nuvens de mosquitos pululando a lâmpada do alpendre. Expulsou o fumo e cheirou a noite. Cheirava a tempo, feito de nostalgia. Cheirava a tílias, eucaliptos e ao verde dos prados. Cheirava aos mil cheiros de flores silvestres.
Cheirava (também) a lembranças boas. A brincadeiras e a risos. Que mal havia na saudade? Não era certamente um velho caquéctico vivendo do mofo das lembranças. Era apenas um homem que guardava memórias. Um homem que viajava no tempo, porque o tempo estava lá, sempre à sua espera.
Ah, havia também o cheiro dela, misturado com todos os outros. Aquele cheiro bravio de mulher...
Hum... E como era bom!

O cachimbo quedou-se, suspenso, entre ele e a noite. E para lá das lembranças, um sorriso aceso, um corpo jovem chamando-o: a silhueta em fogo, os bicos erectos dos seios, as ancas rijas e jovens recortavam-se contra o luar, sobre a colina.
O cheiro dela ainda lá estava...
Amou-a como nunca tinha amado ninguém.

O amor mata… O amor é o maior assassino porque mata quem verdadeiramente ama… Mata de prazer,
Mata tão ardentemente
Que a morte se deseja,
Quase tanto como a vida
Como pode ser?

Lembra-se de a ter despido entre as videiras, ao luar, ou então sobre medas de feno cortado e empilhado ao sol, com o cheiro da terra e do mar misturados
E o corpo dela
Tinha o sabor do vento
O gosto quente e ardente de um
Pensamento
Veloz
Um cavalo de força
Irrompendo da terra
Tão ávido de espaço
Tão ávido de tempo
Que o tempo
Se reduzia
A um momento apenas
Tão pequeno
Mas tão intenso
Que não havia tempo ou pensamento
Que coubessem nele
E contudo
Ele era todos os momentos e todos
Os pensamentos

Há dias que se senta sob o alpendre, depois de a noite chegar, e aguarda
O momento
Em que o pensamento
Se fará sentimento
O momento em que o tempo
O deixará sentir
Uma vez mais…

Conhece todas as estrelas e no entanto nunca lhe soube os nomes, mas conhece-as porque as olhou mais vezes do que qualquer outra coisa de que se lembre, do que o seu próprio rosto que às vezes barbeia, outras não.
Agora, uma vez mais procura-as no negro céu, e para cada uma delas sorri, lembrando os momentos em que, ambos, saciados as olhavam inventando o que não sabiam.
- Sabes – dissera-lhe ela uma vez – se pudesse gostaria de ser cosmonauta. Um dia.
O sorriso dela, incendeia a noite, porque todos os sonhos têm essa força e essa vontade e esse poder.
De incendiar a noite.
- Para quê? – Perguntara ele, como sempre adivinhando a resposta. Mas a pergunta ajudava-o a pensar. A sentir o sonho.
- Ora, conheces mais alguém que tenha a sorte de poder tocar as estrelas?
- Conheço.
- Quem?
- Nós!
O sorriso dela incendiara ainda mais a noite, pondo em risco o fardo de palha seca, onde os corpos nus se estendiam, como se esperassem que o luar os guiasse, como em tempos guiara os audazes marinheiros por um mar desconhecido
Mas a palha não ardeu
Pois se já não tinha ardido
Sob o calor dos seus corpos
Nenhum incêndio
Jamais
A queimaria!

- Por mim – ouviu-se ele a dizer – dava tudo para poder parar o tempo. Neste preciso momento. Mesmo que o meu corpo esteja fora do teu e a tua voz soe a mais de dois palmos da minha orelha, porque sei, agora, que estamos juntos e somos felizes.
- Estaremos sempre juntos…
- Mas talvez nem sempre sejamos felizes…
A felicidade é como um fogo
Que por maior que seja
Acaba por se extinguir
Um dia – pensa.
A noite tem o cheiro dela. Tem o cheiro a rosas e a chuva, um aroma de terra molhada que lhe traz à lembrança o orvalho de suor que lhe cobria a pele depois
Depois…
Percorria-lhe a pele com a língua, as curvas e os recantos, todos e tão poucos, enquanto ela gargalhava, enquanto os risos dela o faziam arder mais e mais
O sabor de uma mulher
O sabor da mulher que amamos
É mais doce do que
Mel
Mais, muito mais…

A saudade é como um sonho em pleno pesadelo,
Angustia-nos tanto, que sonhamos todos os pesadelos
Ansiosos por jamais despertar.
A saudade, sentimento controverso e indesejado,
Por nos lembrar o que desejamos
Cravando-nos na alma a dor do que não se tem… e se deseja,
Espécie de Sinfonia do Amor

Que soa indefinidamente…

a-ver-livros: desculpas

Falas e falas e falas
e não ouço mais do que
o bater compassado
do coração que ainda tens

algures
entre as convicções
e as remodelações emocionais
que te vão servindo
de desculpa




Ana Almeida


* para saber mais sobre o pintor David Dalla
siga o link http://www.daviddallavenezia.com/english/home.html

Gonçalo Viana de Sousa - O Flâneur das Sensações



Continuamos com as impressões de Gonçalo, o nosso flâneur, do seu livro Cadernos de Nicosia.
Desta vez, realidade e ficção misturadas até ao ponto final mais remoto.
Afinal, vivemos factos ou mentiras necessárias?


"Noites de Tchaikovsky" (Piano concerto n.1 )

Algo estranho parece acontecer sempre que escuto Piotr Tchaikovsky. É o piano saltitando entre os dedos nervosos e finos do pianista que actuou esta noite no Teatro de Nicosia. Não sei se será do piano ou dos instrumentos de sopro, mas toda aquela melopeia romântica e líquida fez-me percorrer as margens do Neva. Encontro-me na varanda do meu quarto de hotel em Nicosia e percorro as avenidas de S. Petersburgo em Novembro. Efraim acompanha-me, com a sua barba rala e o sempre chapéu bonacheirão. A neve abunda pelas ruas e pelas pequenas ilhas. Viajo no espaço e no tempo. Julgo ver, ao longe, num dog-cart elegante e colorido, o conde Vronski falando com Lévin enquanto o príncipe Oblonski bebe longos tragos de vodka.
Encontro-me dentro das palavras de alguém famoso, num mundo que não foi por mim criado nem pensado. Viajo entre Moscovo e Petersburgo pelo comboio. As gares atulhadas de caixotes e de moços de fretes, senhoras com luvas e rendas e sombrinhas.
A neve existe como uma força implacável.  Um ou outro camponês carregam os caixotes dos senhores e das madames da primeira classe. Teodoro? Mujiques?
Ao fundo, uma senhora alta, de porte elegante, com uns olhos penetrantes e um belo cabelo negro, comprido e com certeza perfumado, entra numa das carruagens. Efraim tenta acompanhar o meu passo acelerado até ao encontro desta senhora. Passo por um dos guardas da estação e pergunto-lhe quem era a tal madame portentosa e com uns olhos que enfeitiçam. O guarda, ruivo e todo encafuado no seu fato azul escuro, responde-me que é a princesa Karenina. Agradeço-lhe a informação, entregando-lhe uma nota de cinco rublos. Efraim olha-me de lado após esta acção.
São duas da madrugada, Tchaikovsky existe com muita força e perco-me em ficções desnecessárias. Da varanda do meu quarto, em Nicosia, a esta hora, não se ouve mais que os últimos vagabundos dos bares e dos clubes. Os homens do lixo em breve começarão a sua ladainha. Ainda se nota o calor. Efraim dormita no chaise-longue. Sempre nos permitimos viver um com o outro sem qualquer noção ou pretensão de classe. Isso, diria Sena, são coisas de “cretino”.
A minha soda está no fim, o ar fresco da noite finalmente é leve. No horizonte, talvez a promessa de mares e de viagens em paquetes luxuosos e espaçosos.
Contudo, prefiro o meu quarto a esta hora da noite em que Tchaikovsky e Efraim me acompanham.
Volto àquela gare. Esforço-me para alcançar a carruagem da princesa Karenina. Ainda a consigo alcançar. Ainda conseguimos, menino, diz-me Efraim que por momentos me pareceu João da Ega a correr.
Fecho os olhos, as imagens sucedem-se como num filme que se colocou a andar para trás a uma velocidade estonteante.
Estou novamente no quarto. Visto a camisa e saio para as ruas de Nicosia. Efraim dorme que nem um santo barroco.
Na avenida da Universidade sento-me num banco. Tenho vontade de fumar a alma, mas são altas horas da madrugada e o mais sensato é não continuar com a escrita.
Do outro lado da rua, Tchaikovsky sorri só para mim, caminhando com o seu passo largo, loiro e travadinho.
O piano enceta as notas finais. Abro os olhos e estou na varanda do meu quarto.
A vida é bela e plena com estas pequenas ficções (des)necessárias!


quarta-feira, 18 de junho de 2014

Poema à noitinha... Adília Lopes

Arte Poética

Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer

*Adília Lopes, in Um Jogo Bastante Perigoso

Azul-Cego


Com todo o medo que tenho, tijolo a tijolo, pedaços de medo sólidos e cúbicos, como se a brincar com legos, um brincar cantar a tentar espantar o medo, construí um elefante.
Tenho medo suficiente para construir um elefante, o maior mamífero terrestre, largo, lento, pesado, ambulante, orelhudo e trombudo.
Um elefante não mete muito medo.
Um medo que fermentou, São Vicente te acrescente, São Mamede te levede, São João te faça pão, um medo pão que se alimenta a si próprio, pão-pavor alimento malsão dos meus dias.
Um medo que se fez e cresceu, inchou, levedou, saiu do meu corpo, do meu ventre, abalou, terraplanou, queimou a terra, começou ervilha, cordão umbilical, península, fez-se uma ilha, lembra um navio, uma embarcação que tudo abarca, o mar grande tão pequeno a segurá-lo delicadamente entre os dedos de água.
Cuidado não caia o menino.
O meu medo menino, como os meninos gosta de brincar, de intimidar.
O meu medo navio a deslizar, a errar pelo meu corpo, tudo errado, a obscurecer o azul do mar, o azul do céu, o azul dos olhos meus.
Um azul-escuro-quase-negro, um azul-cego.
O medo na ponta dos meus dedos, os meus dedos a evitar o teu corpo.
O meu medo elefante, ambulante, segue indistinguível na manada, larga, lenta, pesada, segue indistinguível entre todos os mamíferos, apesar de vazio ou cheio de medo, não a mesma carne, não o mesmo tutano no osso, apenas a mesma pele, parece a mesma pele, porque a mesma espessura, a mesma resistência ou a mesma lama a camuflar imperfeições e defeitos.
Perfeito é o amor mesmo quando feito de defeitos.
Só o amor afoga o medo e, em passo lento, o meu medo vai, estranhamente sem medo.
Vai e deixa-me só, estranhamente sem medo.
Aliviada e leve.
Capaz de voar.
Capaz de tudo.
É tão difícil perceber o perímetro, o peso, o volume, a forma, a densidade, a espessura, a consistência, o recheio, o cheiro, perceber o que é tudo.
O azul-cego, cegas as pontas dos meus dedos.
Enquanto nada é nada.
Nada é simples e leve, eu, aliviada e leve.
Uma leveza de pássaro, não sei porquê cegonha.
Sei porquê.
Porque um pássaro desengonçado, porque uma evidente tendência para fazer o ninho em chaminés, em torres de igreja, em postes de alta tensão, em desafio.
O mundo sem chão, a casa sem cão.
Dizem que quem tem medo compra um cão.
Eu tive um cão, morreu velho e cego, o desgosto foi tão grande que o medo encolheu, ficou pequeno, voltou a medrar, a amedrontar, o medo dentro de casa, a circular sem trela, dentro do corpo, habitante, inquilino, gatuno, a casa em risco, o corpo em risco, o coração o isco, e os pulmões a paz, quando me deixam respirar.
A casa suspensa, lembra um navio, um elefante nas nuvens.
A casa pendente do céu, das manhãs de vento, das tardes de chuva.
E nem ventos, nem chuvas, o céu sempre azul.
Azul-claro ou azul-escuro-quase-negro.
É sempre Verão, o Verão é por definição eterno, e as cegonhas são pássaros de uma só estação.
Será possível migrar do medo?
Será privilégio de pássaro?
Será?
E se eu abrir os braços e saltar?
Será?

Raquel Serejo Martins