sábado, 10 de dezembro de 2011
E do nevoeiro saiu D. Quixote
Quero, finalmente, Sancho, que me narres o que tiver chegado aos teus ouvidos; e hás-de mo dizer sem amplificar o bem, nem ataviar o mal em coisa alguma; que é de vassalos leais dizer a seus senhores a verdade como ela é, sem que a adulação a acrescente, ou qualquer outro vão respeito a diminua; e quero que saibas, Sancho, que, se aos ouvidos dos príncipes chegasse a verdade nua, sem os vestidos da lisonja, outros séculos correriam, outras idades seriam consideradas mais de ferro que a nossa; sirva-te este aviso, Sancho, para que, discreta e bem intencionadamente, me digas as coisas verdadeiras que souberes acerca do que te perguntei......"
Trecho de "D. Quixote", Miguel Cervantes
Ilustração do cubano Juan Carlos Pedreira
sexta-feira, 9 de dezembro de 2011
Amizade na Empatia Divergente - Almada Negreiros
O tempo de cada qual é o justo para si. Não é dado a ninguém a ocasião da polícia do tempo de outrem. De modo que à porta da nossa intimidade havemos de pôr a admiração por aquele que vai entrar, tanto em quanto diverge como em quanto coincide connosco. Por outras palavras: não vale mais o nosso mistério do que o de outro qualquer. Só o mistério chega inteiro ao fim."
in 'Textos de Intervenção'
O Perfil do Monstro de Arundhati Roy
Para abrir o apetite para a sua obra nada como começar, talvez por este livro. Para quem não a conhece este pode ser um primeiro passo.
O seu mais recente livro, “O Perfil do Monstro”, editado em Portugal pela Bertrand, é uma série de entrevistas que buscam compreender de onde vem as perspectivas de Roy, a vida antes da fama ou a lógica do seu activismo. Os diálogos seguem facilmente da política para o pessoal, explorando a relação entre a sua formação e o seu sistema de crenças. Seja a discutir o imperialismo americano, a insurgência maoísta, a conexão com os princípios fundamentais de Roy é nua e crua. A entrevista mais reveladora de todas é a última, realizada em março de 2008. Roy fala sobre si mesma como pessoa, a escritora e a celebridade e de todas as negociações privadas e públicas do que é a vida de uma activista que gosta de romancear.
"Eu insisto no direito de ser emocional, ser sentimental, ser apaixonada", diz numa das entrevistas. São estas afirmações que levam a que exista dois tipos de sentimentos bem demarcados em relação a Roy: amor e ódio. A verdade é que o mundo precisa, nós precisamos de Roy e de muitas pessoas como ela. E este livro, em poucas palavras, é por isso e para esses.
quinta-feira, 8 de dezembro de 2011
Némesis... Assim o li
I´ll be seeing you, aqui cantada por Billie Holiday, é uma canção muito popular na América, escrita por Irving Kahal em 1938 e uma das mais badaladas no mundo do Jazz.
Porque trouxe esta música à baila? Quem leu Némesis de Philip Roth entenderá de imediato. Desde já porque faz parte da história - passada em plena 2ª Guerra Mundial, corria o ano de 1944.
Mas não... Este não é um romance vivido nos focos da guerra. As batalhas e questões que aqui se aprofundam são outras. O nosso personagem, apesar de ter idade para ir combater, não está apto. Um problema de visão afasta-o.
Sem ter conhecido a Mãe - falecida no parto - e afastado do Pai (um vigarista irresponsável), o Sr. Cantor é educado pelos Avós. E torna-se num atleta pleno de força e vitalidade.
Professor de educação física e responsável pelas actividades desportivas dos miúdos nos campos de treino da escola, assiste a uma «guerra» travada pela população local de Nova Jérsia contra um surto de epidemia de poliomielite.
As mortes dos mais pequenos vão-se sucedendo. Umas atrás das outras. Num dia, o nosso personagem assiste com alegria ao desempenho vigoroso de uma criança numa actividade física. Três dias depois, recebe um telefonema a confirmar que a mesma pessoa caiu numa cama de hospital e morreu.
Depressa se levantam suspeitas de onde veio o foco. Culpam-se grupos de outras etnias, culpam-se restaurantes, culpa-se o sol abrasador, culpa-se o centro de actividades desportivas... Sem qualquer tipo de lógica ou razão. Procuram-se culpados. A população vive em pânico.
O nosso professor abandona a localidade. Vai dar aulas para um acampamento de Verão. Até que surge o primeiro caso de pólio. E surge a questão: "Fui eu que a trouxe?"
Este homem acaba por descobrir que tinha a doença. E sobrevive. Carregando toda a debilidade que a doença marcou nele. Nas costas sente o peso de achar que foi responsável por inúmeras mortes, abandona a sua noiva (porque prefere que ela procure a felicidade noutro lado e não junto a um deficiente motor), questiona o Divino, isola-se nas suas tristezas e melancolia.
Um homem que já foi capaz de lançar o dardo a uma grande distância, cheio de energia e vitalidade... e agora sente-se um foco de difusão de uma doença cruel, que ceifou vidas de muitas crianças saudáveis sem nenhum critério. Sem qualquer explicação. Este homem perde todo o amor próprio... Condena-se a viver com esta amargura e culpa.
Quando falei com Ubik (responsável por ter escolhido este título no mês de Novembro), referi que "Roth monta sempre personagens interessantes e enredos muito cinematográficos. Sobretudo porque caracteriza sempre lindamente os espaços que as personagens habitam. E, mais importante, as emoções que sentem."
Ubik respondeu-me: "Sabes, eu gostei. Mas não é um gostei gostei. É um vou gostando. Já o li há duas semanas e continuo com a deglutição. Digestão pesada."
Respondi: "Sim, acho que esse é sempre o efeito de Roth. Marca de uma forma pesada. Qualquer pessoa que leia uma história dele leva o livro por mais algum tempo. Digestão pesada, abalo de consciência, estalada seca! É isso que adoro: a sensação de prolongamento do prazer de leitura... que Roth faz como poucos."
Fica o nosso convite: leiam Roth. Até qualquer livro...
quarta-feira, 7 de dezembro de 2011
Arundhati Roy: E um segundo livro?
“There's so much noise in the world, so why add to it? In my case, I only write when I can't not", afirmou Arundhati numa entrevista dada em Janeiro deste ano a Ian Jack, do ‘The Guardian’. Qualquer coisa como: “Já existe tanto ruído no mundo, porquê criar ainda mais? Por mim, só escrevo quando não posso mesmo deixar de o fazer”.
Aos 50 anos, 18 depois de ter agarrado leitores em todo o mundo com o seu livro de estreia, a senhora Roy respondia sobre um eventual segundo livro de ficção, que assumia já ter começado. Em Junho seguinte era Stephen Moss, também do ‘The Guardian’, que queria saber dos eventuais progressos nesse sentido. “Tenho trabalhado no segundo livro, sim”, respondeu – “com uma gargalhada”, precisa o jornalista. “Mas não tenho muito tempo para isso. Sou uma pessoa muito pouco ambiciosa. Que interessa se há ou não outro livro a caminho? Não vejo as coisas nessa perspectiva. Para mim, nada valeria não ter ido àquela floresta.”
Arundhati referia-se às três semanas que passou com a guerrilha do movimento maoista na floresta de Dantewada, no coração da Índia, onde acontece a luta da população indígena que resiste contra as tentativas governamentais de deixar passar o “desenvolvimento” corporativo, assente nos recursos minerais da região. Noutra entrevista revelaria como recebeu um bilhetinho dactilografado por baixo da porta principal de casa, em Deli, a convidá-la para esta aventura. Nesta fala das noites passadas no “hotel de mil estrelas”, elogia “a ferocidade e a grandeza daquela pobre gente que resiste” e garante que viver na floresta a fez sentir “como se tivesse espaço suficiente no seu corpo para todos os órgãos”, o que quer que isso queira dizer.
O seu entusiasmo com esta nova causa – e o desafogo de ter vendido seis milhões de cópias de “O Deus das Pequenas Coisas” em todo o mundo, o que a deixou rica, mesmo dando imenso dinheiro para várias causas – torna a perspectiva de um segundo romance cada vez mais longínqua. Mas não apenas por isso. Se calhar, dá-se que Arundhati é, na verdade, tudo menos uma escritora de ficção. Afinal, “O Deus das Pequenas Coisas” sugou tanto do que foi a sua realidade – da mãe carismática mas dominadora ao pai cultivador de chá e alcoólico, que saiu de cena quando era ainda miúda; passando pela adolescência em que saiu de casa para viver a vida. Quem sabe anda a coleccionar temas para esse tal segundo livro. “Eu não tenho temas. A ficção é demasiado bela para ser apenas sobre um assunto. Deve ser sobre tudo”, disse a Moss. Desculpa para esconder a pressão de estar à altura do que já foi um Booker Prize? “Não somos crianças para sentirmos necessidade de sermos sempre os melhores e ganhar prémios. Trata-se apenas do prazer de fazer algo. Eu não sei se vou escrever um bom livro, mas estou curiosa sobre como e o que escreverei depois de todo este percurso. Os meus editores sempre souberam que não ia surgir aqui uma fábrica de livros. Fui muito clara nessa questão. Eu fiz algo. Deu-me prazer. Agora estou a fazer outra coisa.”
Há coisa de seis ou sete dias, mais uma peça no ‘The Guardian’, desta vez assinada por Arun Gupta que fala com Arundhati a propósito do movimento Occupy Wall Street. E lá surge a pergunta da praxe. Então e quando aparece o raio do novo livro de que, segundo foi revelado algures, só o seu octogenário amigo John Berger, escritor e crítico literário, já leu algumas linhas? “Não tenho uma resposta para essa pergunta. Realmente não sei”, resumiu a escritora. A Anderson Tepper, do ‘The Paris Review’, também há muito pouco tempo, Arundhati seria mais explícita. “A ficção é algo tão amorfo, nunca podemos ter a certeza de que estamos a fazer algo importante ou maravilhoso antes de termos terminado. A ficção é algo que envolve tanta gentileza, tanto carinho, que acaba por ser continuamente esmagada sob o peso de tudo o resto. Ainda não consegui entender bem isto. – mas vou conseguir, vou conseguir.” Se ela o diz...
[*] Tradução livre dos vários depoimentos.
O poema que veio da Índia
A indiana Arundhati Roy é a autora de "O Deus das Pequenas Coisas", o livro que foi escolhido para Dezembro. Dela encontrei por aí [*] um poema.
Atrevo-me a trazê-lo até vós - na versão em inglês, como me surgiu, mas também numa tradução minha, com todo o risco que isso significa. Que me perdoem, se puderem. Mas que, em inglês ou português, o apreciem.
"Nunca Esquecer
De amar.
De ser amado.
Nunca esquecer a nossa insignificância.
Nunca acostumar à violência indizível
e à disparidade da vida em nosso redor.
Procurar a alegria nos lugares mais tristes.
Perseguir a beleza até ao seu covil.
Nunca simplificar o que é complicado
e complicar o que é simples.
Respeitar a força, nunca o poder.
Acima de tudo, observar.
Tentar entender.
Nunca desviar o olhar.
E nunca, nunca esquecer."
-- & --
"Never To Forget
To love.
To be loved.
To never forget your own insignificance,
To never get used to the unspeakable violence
and the vulgar disparity of life around you.
To seek joy in the saddest places.
To pursue beauty to its lair.
To never simplify what is complicated
or complicate what is simple.
To respect strength, never power.
Above all, to watch.
To try and understand.
To never look away.
And never, never to forget."
Arundhati Roy, in The End of Imagination, 1998
[*] http://mondaypoem.blogspot.com/2010/05/never-to-forget-arundhati-roy.html
Eu escolhi "O Deus das Pequenas Coisas" - Livro do mês de Dezembro
oxímorO
Raquel Serejo Martins
terça-feira, 6 de dezembro de 2011
O Deus das Pequenas Coisas e Arundhati Roy em Dezembro
Nós, aqui no Clube, regressamos à Índia: país onde se passam histórias carregadas de magia. E de onde nunca saímos defraudados, arrisco.
"O Deus das Pequenas Coisas é a história de três gerações de uma família da região de Kerala, no Sul da Índia, que se dispersa por todo o mundo e se reencontra na sua terra natal. Uma história feita de muitas histórias. As histórias dos gémeos Estha e Rahel, nascidos em 1962, por entre notícias de uma guerra perdida. A de sua mãe Ammu, que ama de noite o homem que os filhos amam de dia, e de Velutha, o intocável deus das pequenas coisas. A da avó Mammachi, a matriarca cujo corpo guarda cicatrizes da violência de Pappachi. A do tio Chacko, que anseia pela visita da ex-mulher inglesa, Margaret, e da filha de ambos, Sophie Mol. A da sua tia-avó mais nova, Baby Kochamma, resignada a adiar para a eternidade o seu amor terreno pelo padre Mulligan. Estas são as pequenas histórias de uma família que vive numa época conturbada e de um país cuja essência parece eterna. Onde só as pequenas coisas são ditas e as grandes coisas permanecem por dizer."
Para além desta introdução que promete, ficam as palavras da crítica: "O Deus das Pequenos Coisas" é uma apaixonante saga familiar que, pelos seus rasgos de realismo mágico, levou a crítica a comparar Arundhati Roy com Salmon Rushdie e García Márquez."
Arundhati Roy foi a escolha da Carla Valério para o mês de Dezembro. Quem já o leu, aguarde pelas conclusões no início de Janeiro. Para todos os que não conhecem a história fica o convite: bem vindos a bordo!
segunda-feira, 5 de dezembro de 2011
a-ver-livros: Isto anda tudo ligado
Criou-a o escultor veneziano Livio de Marchi, arrancou-a de dentro da sua imaginação de menino com as suas mãos de carpinteiro prodigioso, talhou-a peça a peça – das pregas de uma toalha de mesa às roupas no armário e às centenas de livros, tudo em tamanho real – aceitando com delicadeza cada veio, cada nó, oferecendo-lhe a perfeição do detalhe.
Esta primeira Casa di Libri, casa dos livros, nasceu em 1990, dedicada a todas as crianças que viveram naquelas montanhas as suas infâncias, ou, como Livio, as suas férias de Verão. Construiu outra em 93 para um coleccionador privado. E outra no ano seguinte, no Japão. Consta que sonha construir dez ao todo, pelo mundo. Mas quase não dá entrevistas. O carpinteiro escultor – que já andou pelo mármore, pelo bronze e pelo vidro, mas ama a madeira e os livros – prefere mostrar obra que falar dela.
“Era uma vez uma pequena casinha no meio de uma floresta construída por um mágico brincalhão que amava livros e transformava tudo em madeira”. Nas mãos do divertido Livio, sempre de chapéu e bigodinho à Dali, a madeira ganha vida e respira humor. São dele também as grandes construções flutuantes com que adora desfilar nos canais de Veneza, para deleite dos turistas. Como o mais especial carro da cidade aquática, um Ferrari F50 em pinho. http://www.youtube.com/watch?v=Q8LdCyUtqcI
Um homem que ama livros e ama madeira. Bem, na verdade os livros são feitos de papel. E o papel é feito de árvores. Já mencionei alguma vez que isto anda tudo ligado?
Nicanor Parra, Prémio Cervantes 2011, antipoeta sempre.
Pois bem, eu acredito que devemos alargar a escala! E, com aviso prévio, roubo e transmito.
Ficam dois poemas de Nicanor Parra, Prémio Cervantes 2011.
EL PREMIO NOBEL
"El Premio Nóbel de Lectura
me lo debieran dar a mí
que soy el lector ideal
y leo todo lo que pillo:
leo los nombres de las calles
y los letreros luminosos
y las murallas de los baños
y las nuevas listas de precios
y las noticias policiales
y los pronósticos del Derby
y las patentes de los autos
para un sujeto como yo
la palabra es algo sagrado
señores miembros del jurado
qué ganaría con mentirles
soy un lector empedernido
me leo todo - no me salto
ni los avisos económicos
claro que ahora leo poco
no dispongo de mucho tiempo
pero caramba que he leído
por eso pido que me den
el Premio Nóbel de Lectura
a la brevedad imposible"
PREGUNTAS Y RESPUESTAS
"¿qué te parece valdrá
la pena matar a dios
a ver si se arregla el mundo?
-claro que vale la pena
-¿valdrá la pena jugarse
la vida por una idea
que puede resultar falsa?
-claro que vale la pena
-¿pregunto yo si valdrá
la pena comer centolla
valdrá la pena criar
hijos que se volverán
en contra de sus mayores?
-es evidente que sí
que nó
que vale la pena
-Pregunto yo si valdrá
la pena poner un disco
la pena leer un árbol
la pena plantar un libro
si todo se desvanece
si nada perdurará
-tal vez no valga la pena
-no llores
-estoy riendo
-no nazcas
-estoy muriendo"
nota: todo este post é da autoria de Ubik, membro deste blogue.
domingo, 4 de dezembro de 2011
In Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra no Mar?
Um Céu e Nada Mais, Ana Luísa Amaral
"Um céu e nada mais — que só um temos,
como neste sistema: só um sol.
Mas luzes a fingir, dependuradas
em abóbada azul — como de tecto.
E o seu número tal, que deslumbrados
leram os teus olhos, se tas mostrasse,
amor, tão de ribalta azul, como de
circo, e dança então comigo no
trapézio, poema em alto risco,
e um levíssimo toque de mistério.
Pega nas lantejoulas a fingir
de sóis mal descobertos e lança
agora a âncora maior sobre o meu
coração. Que não te assuste o som
desse trovão que ainda agora ouviste,
era de deus a sua voz, ou mito,
era de um anjo por demais caído.
Mas, de verdade: natural fenómeno
a invadir-te as veias e o cérebro,
tão frágil como álcool, tão de
potente e liso como álcool
implodindo do céu e das estrelas,
imensas a fingir e penduradas
sobre abóbada azul. Se te mostrasse,
amor, a cor do pesadelo que por
aqui passou agora mesmo, um céu
e nada mais — que nada temos,
que não seja esta angústia de
mortais (e a maldição da rima,
já agora, a invadir poema em alto
risco), e a dança no trapézio
proibido, sem rede, deus, ou lei,
nem música de dança, nem sequer
inocência de criança, amor,
nem inocência. Um céu e nada mais."
in “Às Vezes o Paraíso”