quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Gonçalo Viana de Sousa - O Flâneur das Sensações



Meu querido José


Cá continuo eu por Paris, cidade vítima de sombras que trazem à luz do dia o sangue dos inocentes. Mas não lhe escrevo para lhe falar dessa grande tristeza que é a maldade do homem, tão intensa quanto o amor. E, quem sabe, tão bela?
Acredito que muita tinta se tem gasto pelos jornais e por essas loucuras virtuais a propósito de França. O nosso bendito país lá segue, nesse passo lento, certo e definitivo. Para o quê? Não sabemos.
Mas não lhe escrevi para falar desse cinzento que assola a cidade da Luz, dos poetas e dos pintores.
Venho relatar-lhe uma impressão que tive há uns dias, quando vagueava pelas ruelas de Montmartre ao som do mundo. Enquanto vislumbrava um recanto de paisagem por entre umas silenciosas árvores, lembrei-lhe de um holandês, não o voador, mas o outro, aquele que tinha todas as cores do mundo dentro dele.
A certa altura do passeio, entre uma pequena livraria e uma padaria rústica que benzia o ar com aquele terno e caseiro aroma da infância de manhãs em casas trabalhadoras, onde o pão coze porque os dias são justos e o trabalho faz parte do corpo dos homens.
Como dizia, a certo ponto vejo um casal passeando, como eu, sem rumo e sem desejo dele, sem submissão a destinos preconcebidos e ponderados. Os dois caminhavam de mãos dadas, todos sorridentes, enfim, estúpidos e apaixonados. Ela alta, esbelta, de cabelo longo, ruivo e brilhante por entre a folhagem dos dias. Vestia roupas frescas e de um parisianismo elegante. Ele moreno, de cabelo curto, de cachecol e óculos de aros quadrados azuis escuros. Folheavam uns livros na tal pequena livraria. Baudelaire, Gautier e Rimbaud. Não necessariamente por esta ordem. Não necessariamente estes.
Efraim ficara para trás, numa qualquer loja onde se vendiam pequenos monstros de ferro de chocolate de várias cores, sabores, feitios e formas.
O tempo passou, e o casal seguiu o seu caminho, enveredando por ruelas que na minha juventude também foram de paixão e revolução mental. O Sacré Coeur. Outros tempos. Enquanto os observava à distância, afastando-se no horizonte, sorria com aquela experiência de homem que sabe, solitário e conhecedor das tragédias do amor, irónicas, breves e quase definitivas.
Entretanto, desci a longa escadaria do Sacré Coeur ao som dos vendilhões do templo que inundam os caminhantes de bugigangas e pechisbeques vários. Ao fundo das escadas oiço berros vindos dos lados da Basílica. Lembrei-me do jovem casal. Mas continuei o meu caminho, sem destino ou demanda ante-pensada.
Horas depois, quando caminho para o hotel à hora das estrelas e do cosmopolitismo nocturno, encontro Efraim esbaforido na entrada, vindo até mim ofegante, angustiado e nervoso, perguntando-me se estava tudo bem comigo, se não tinha passado por perigo algum. Respondi-lhe com a placidez e ironia de sempre, negando.
O nosso semita, caro José, diz-me então que houvera, nessa tarde, um assalto à entrada do Sacré Coeur, e que tinham morrido duas pessoas, um casal, ao que parecia.
Neste momento o jovem das peripécias de papel está a pensar naquilo que me ocorreu de imediato: no casal que melancólica e ironicamente fui seguindo com o olhar. Mas não, querido José, mas não foram eles as vítimas de tal delito.
Assim que Efraim me disse que se tratava de um casal de turistas chinês ou indiano abstraí-me de imediato, votando ao som das palavras do nosso semita uma indiferença baça, turva e pesada.
No final, caro jovem das alturas românticas e da bondade, quem foi mais cruel? O homem que matou duas pessoas e irá cumprir uma pena de boas dezenas de encarceramento, ou eu, que na minha universal indiferença, falso cosmopolitismo e egoísmo, não dei importância à morte de dois seres humanos que também sonhavam e amavam? Ou eu, querido José, que só teria tido um falso sentimento de pesar se os mortos tivessem sido aqueles dois jovens que avistara? Quase que desejei a morte deles para poder ter alguma empatia com aquelas duas pessoas, anónimas, como todos nós, que morreram.
Enfim, jovem dos novelos para dentro, somos, na verdade, verdadeiramente cruéis.
Um abraço deste imoral e mau, mas que também sabe o valor da amizade,

Gonçalo Viana de Sousa



A biblioteca de Lego, dentro de uma abóbora

Pour Halloween, nous étions à Dublin. Alors voici avec un peu de retard, la citrouille d'Halloween la plus cultivée!
Merci à Carolyne Vermer pour cet envoi.

Encontrado na página Improbables Bibliothèques, 
Improbables Librairies. A não perder por nada! 

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Apresentação de livro | «Todos os tempos verbais» | Rodrigo Ferrão

Olá a todos,

Lancei o meu primeiro livro de poesia há uns meses e chegou finalmente a altura de começar a apresentá-lo pelo país fora!

A primeira sessão será no Porto, já no próximo dia 28 de Novembro, sábado, pelas 18h. O local escolhido é as Galerias Lumière, na Rua José Falcão, bem no centro.

Gostaria muito de vos ver entre os presentes, se puderem passar por lá.

Um grande abraço,
Rodrigo


Agradecimentos: David Pintor | Ana Almeida | Ana Paula Oliveira | Helder Magalhães | Clara Amorim | Maria José Ferrão | Sara Costa Leite | Daniel Gonçalves | Teresa Castro | Filipe Soares | Galerias Lumière | RealBase

terça-feira, 17 de novembro de 2015

vigília


fere-me o brilho que emerge dos teus olhos
como que relâmpagos a romperem
clareiras na madrugada

arde-me o sangue do fio do horizonte
na vigília em que os lábios evocam o teu nome.

Helder Magalhães


Fotografia de Mariis Capela

É do borogodó: Nacos de nuvem, Maiakóvski

A série Playing with Clouds (Brincando com Nuvens), do fotógrafo Elio Pallard.

No céu flutuavam trapos
de nuvem – quatro farrapos:
do primeiro ao terceiro – gente;
o quarto – um camelo errante.
A ele, levado pelo instinto,
no caminho junta-se um quinto.
Do seio azul do céu, pé-ante-
pé, se desgarra um elefante.
Um sexto salta – parece.
Susto: o grupo desaparece.
E em seu rastro agora se estafa
o sol – amarela girafa.
1917-18 Maiakóvski
(Tradução de Augusto dos Campos)
*Escolhido por Penélope Martins, nossa ponte para o Brasil

Biblioteca, Pedro Mexia

«Quem sabe se a amizade é isso, um processo de intenções. Talvez isso justifique que a contemplação se transforme em pose, ou vice versa; que a alegria pareça bazófia; que uma vida bem vivida possa ser considerada um agravo a terceiros. Na verdade, tudo pode ser visto como uma ofensa, a paternidade, o êxito, a virilidade, e assim por diante. Porque o grande tropismo, a grande subconversação da amizade masculina, é a competição, aquela competição que faz de uns vencedores e de outros vencidos. E é isso que, em momentos de zanga ou de impaciência, transforma amigos em inimigos mortais.»

domingo, 15 de novembro de 2015

O paraíso do avessO


O paraíso era uma paragem de autocarro.
Ele subia a rua.
Ela descia a rua.
Chegavam à mesma hora, quase à mesma hora, o mesmo horário a cumprir.
Quando chegava primeiro ficava ansioso, um formigueirinho, apesar de ela nunca ter faltado a um encontro.
Como se fosse um encontro! Não mais que obrigações laborais. O suficiente para concluir, supor, que funcionária exemplar no que tocava a pontualidade e assiduidade.
Será que tocava piano, falava francês?
Bonjour mademoiselle. – Pensava que dizia. Não dizia.
Assim, derivado da assiduidade, como um figo que mirra e seca, ao longo de meses, foi transformando a ânsia em certeza e, mesmo assim, enquanto esperava, um nervoso miudinho, o coração de passo, a trote, de trote a galope, coisa que aposta faz mal ao coração e ao resto do corpo, 2 minutos, 120 segundos, 3 minutos, 180 segundos, 4 minutos, 240 segundos, nunca mais do que isso.
Questiona-se se o seu coração aguentaria mais.
Duvida.
Pelo que quando chegava depois, um sentimento alívio, chegar e encontrá-la à sua espera.
Era como se estivesse à sua espera!
Estaria à sua espera?
Mas o que deveras o encantava, acontecia, em regra, uma vez por mês.
Meses compostos apenas por dias úteis, há dias inúteis.
Acontecia, por excepção, a tal que não sei porquê dizem confirma a regra, duas vezes no mesmo mês.
E, uma única vez, a excepção à excepção, aconteceu três vezes no mesmo mês, uma ocorrência rara, que não serve de exemplo, apenas lembra um cometa.
Faz e tem a estatística controlada.
O que deveras o encanta, o tal dia imprevisível e imperscrutável em que em sincronia chegam à paragem e em sincronia se arrumam lado a lado.
Ele a subir a rua.
De tão consolado, leva um sorriso a fermentar dentro do estômago.
Ela a descer a rua.
Cena de filme pouco realizável na realidade, porque a realidade diferente dos filmes, não há ensaios, cortes e repetições, a realidade é o lugar, o momento, onde apesar do boletim meteorológico, a chuva e o sol inesperados, e tudo é apenas o que pode ser.
Se o banco estiver vazio, sentam-se lado a lado.
Podem sentar-se lado a lado.
Oferece-lhe um sorriso.
Pode oferecer-lhe um sorriso.
O sorriso, como um balão, a subir do estômago para a boca.
Ela, como se ao espelho, outro sorriso.
Bonjour mademoiselle. – Quase que diz, sem nada dizer.
Porque apesar dos sorrisos, nada pesados, leves, flutuantes como balões, nunca falaram, nem da banalidade do tempo, está um dia lindo não está, dizem que não vai chover, que o tempo assim toda a semana, que se tu ao meu lado, assim até ao fim dos meus dias.
Depois culpa o tempo ou desculpa-se com a falta de tempo.
Porque num ápice chega o 42 que a leva para o outro lado da cidade ou chega o 128 e, resignado, enfia-se nas suas entranhas.
Assim, ou ao contrário, sem regra.
Assim, de segunda a sexta: o paraíso.
Depois o inferno, o paraíso do avesso, adverso, perverso, sem poesia, sem verso.
O inferno são os Sábados e os intermináveis Domingos.
O inferno são os meses quentes de Verão, quando um ou outro de férias.
Raquel Serejo Martins

Foto: Vitorino Coragem