
"Metade Maior", o mais recente romance de Julieta Monginho, é uma
obra-prima de ironia, de sensibilidade, de subtileza. Tecido de pequenos
traços - mas traços indeléveis na memória e no fascínio dos leitores -
este é um livro que dá eco a uma multiplicidade de vozes, de
gargalhadas, de melancólicos murmúrios também. Como um grande circo
chegado da infância de cada um de nós, como a memória de um épico
Fellini.
A vencedora do Grande Prémio de Romance e Novela
APE/IPLB 2008, com "A terceira mãe", vem ao Porto apresentar a sua mais
recente obra. Para aguçar o apetite aqui fica o convite e um excerto do texto lido,
na sessão de lançamento do livro em Lisboa, pela autora
«Tal como o mundo, este livro começou com uma maçã. Partida amorosamente
em duas metades desiguais. Quem parte e reparte e não fica com a maior
parte tem a arte da justiça sábia, a que dispensa o positivismo e a
aritmética, por ser conduzida pelo amor.
Começou, depois, quando
ouvi falar dos buracos que por aí vão, no centro da cidade. Disse-me
Teresa Espírito Santo, então Presidente da CPCJ de Lisboa Centro:
"Abre-se um buraco e sai uma família inteira, às vezes várias famílias
todas juntas". E eu fui lá ver. Espreitei labirintos, subi e desci
escadas. Subi os degraus encerados da pensão que um homem sobe na
primeira frase do livro.
Esta frase criou um movimento que por
sua vez criou personagens e foram elas que criaram a história. Não
reivindico o lugar passivo do escritor (aliás penso que é uma treta),
mas desta vez o que fiz foi tentar interpretar o universo que nasceu da
interacção entre elas.
Quando pela primeira vez percorri a Av.
Almirante Reis, que é o ponto de referência real desta avenida
imaginária - da pacatez da Praceta João do Rio até à babilónia do Martim
Moniz - fiquei deslumbrada pela diversidade em expansão, pelos
infinitos enredos que pareciam estar ali com o propósito de que alguém
os escrevesse.
Fez-me lembrar uma ocasião, há alguns anos,
enquanto almoçava no Museu Reina Sofia, quando vi aquela profusão de
cores, maneiras de vestir, de falar, de olhar, dos visitantes.
Lembro-me
de ter comentado: daqui a uns anos vão estar todos misturados, mulatos
de olhos em bico, olhos azuis e franjas negras, caras pálidas coroadas
de penas, uma festa. Como sabemos agora, era um sonho irresponsável e
muito acima das nossas possibilidades.
Na Avenida Almirante Reis,
este sonho começou a desenrolar-se ao contrário. O movimento de expansão
começou a regredir, o espaço das pessoas começou a encolher. Sempre que
lá voltava via cada vez mais buracos e cada vez mais gente a
desaparecer dentro deles. Gente que pouco a pouco vai perdendo
mobilidade, sendo despojada até do desejo de deslocação.
O sonho
da expansão da diversidade ficou lá atrás, como um ex-futuro que hoje
nos parece interdito, sacrificado por um desígnio que sentimos demente e
injusto.
A ilusão da aritmética não se confunde com a justiça nem pode substituí-la.
"A
justiça não existe. A justiça existirá se nós a praticarmos", disse o
filósofo Allain. "A justiça não faz a felicidade, mas nenhuma felicidade
dispensa a justiça", diz o filósofo André Compte-Sponville. A justiça
procura-se através da palavra que afirma o direito, sem nunca deixar de
interrogar a fragilidade e a contradição do humano, acrescento eu.
As
personagens deste livro debatem-se, como nós, com o encolher do espaço e
a distorção do movimento, num tempo confuso, veloz mas sem objectivos,
desencontrado da medida humana. Todas sonham que cada dia é o primeiro e
nunca será último. Se isso será fim ou princípio é o que vamos ver.»