sábado, 29 de setembro de 2012

Que faz ter vontade de ler para um burro?

"Ler não é chato. Chato é ser burro!", disse em Junho, num festival literário algures no Brasil, o escritor de livros juvenis Pedro Bandeira.

Talvez a sua voz tenha atravessado o Atlântico e ecoado até ao Porto. Talvez tenha ressoado levemente no meu ouvido enquanto, envolvida no projecto Peregrinos da Leitura, contemplava a multidão nos jardins do Palácio de Cristal e o meu olhar pousou nos burricos de Miranda. Certo é que, para espanto dos outros elementos da equipa, agarrei no cajado do Clube de Leitores e anunciei: "Vou ler para um burro!"

"Posso ler para o burro?", perguntei à tratadora. O olhar com que me brindou foi digno de registo, mas não recusou. Meti a mão na bolsinha que trazia a tiracolo, recheada com poemas e sublinhados, e, ao acaso, tirei uma folha. "Saramago. Vou ler-lhe Saramago, um trecho de 'Ensaio Sobre a Cegueira', pode ser?"



"O cego ergueu as mãos diante dos olhos, moveu-as, Nada, é como se estivesse no meio de um nevoeiro, é como se tivesse caído num mar de leite, Mas a cegueira não é assim, disse o outro, a cegueira dizem que é negra, Pois eu vejo tudo branco, Se calhar a mulherzinha tinha razão, pode ser coisa de nervos, os nervos são o diabo, Eu bem sei o que é, uma desgraça, sim, uma desgraça, Diga-me onde mora, por favor, ao mesmo tempo ouviu-se o arranque do motor. Balbuciando, como se a falta de visão lhe tivesse enfraquecido a memória, o cego deu uma direcção, depois disse, Não sei como lhe hei-de agradecer, e o outro respondeu, Ora, não tem importância, hoje por si, amanhã por mim, não sabemos para o que estamos guardados, Tem razão, quem me diria, quando saí de casa esta manhã, que estava para me acontecer uma fatalidade como esta. Estranhou que continuassem parados, Por que é que não andamos, perguntou, O sinal está no vermelho, respondeu o outro, Ah, fez o cego, e pôs-se a chorar outra vez. A partir de agora deixara de poder saber quando o sinal estava vermelho."

O burro nem pestanejou, sequer atormentado pelas moscas que lhe pousavam sem cessar. Ficou impávido e sereno. Nem os cliques de várias máquinas fotográficas em nosso redor o tiraram da sua placidez. Chamava-se Tó, nome de porco, e Saramago veria nisso decerto alguma ironia. Seria talvez ainda parente afastado do burro de Abraão, em "Caim", e estivesse habituado ao estilo oral do escritor, sem separação entre diálogo e acção.

Já eu saí dali de sorriso em riste - depois de crianças e adultos, cegos e doentes, em público e em privado, cara a cara e atrás de um microfone, passei a ter no currículo também o estranho prazer de ter lido para um burro.

Instantes depois olhei para trás, talvez na vaga esperança de ver o burro piscar-me o olho. Vejo-o antes pinotear e querer seguir o seu próprio caminho, arrastando atrás de si os outros burricos que estavam ali perto. E quero acreditar que o burro não voltará a ser o mesmo.


Fotos Pedro Ferreira


Citando Mr. Oscar Wilde


*Esta é uma foto que anda a circular pelo Facebook. Desconheço a sua origem. De qualquer forma, é retirada de Lady Windermere's Fan, 1892, Act I

a-ver-livros: acordar assim com Paul Honatke

Acordar assim
com as últimas das tuas palavras
tatuadas 
na alma

e páginas por ler
e páginas por ler
e páginas por ler

* para conhecer mais sobre o pintor americano Paul Honatke siga
o link  www.facebook.com e espreite os vários álbuns de pintura

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

«A poesia dos números»... Seguida do conto «O blog e as redes sociais»

São 21:41h quando começo a escrever.

Hoje ficou batido mais um recorde. Nunca um mês foi tão concorrido. Quinze mil páginas abertas é obra! Se dividirem 15 mil por 30 dias, dá uma média de 500. Quinhentas? Continuo a ficar parvo com o peso desta brincadeira. E o mês ainda não terminou...

Depois olho para outros números. Desde que começou a contar, o blog foi visto 182 553 vezes. 99356 em Portugal, 35356 no Brasil e 17418 nos Estados Unidos. E agora... Bem, agora os meus olhos param na lista dos países que mais nos visitam: a 9.ª posição da Ucrânia e a 10.ª da Eslovénia! Sim, 780 vezes já visto na Eslovénia - alguém me explica o fenómeno?

Quando eu lançar este apanhado em jeito de comemoração, serão 1420 os posts publicados (desde o dia 5 de Maio de 2010 - que parece, na minha memória, como se fosse ontem). O Clube de Leitores tem 1024 comentários. E são 310 as pessoas que seguem o blog.

Depois deixo estes números e abro a porta das redes sociais. E aí continuo a espantar-me. A esta hora (21:59h) o grupo Livros no Facebook conta com 4129 pessoas. A página Clube de Leitores - da qual nunca fizemos grande campanha de mobilização - tem já 465 "likes". A grande surpresa acontece quando abro o Twitter... A página @ClubedLeitores já deixou 486 tweets e tem 243 seguidores. E nunca foi anunciada.

São 22:08h e tenho um sorriso na cara. Este espaço nunca precisou de muletas, patrocínios ou de "cunhas". Conta só com a energia, o amor e a alegria de um bando de loucos por livros e letras. Podem acreditar, dá muito trabalho. Mas é todos os dias compensado com mais alguém que nos chega. Não importa a forma como aterra. Desde que seja para ficar...

São 22:14h. Só me ocorre dizer: continuem a chegar, tragam mais e mais amigos nesta longa festa.

São 22: 20h e, em nome de todos os que levam este nome mais longe, agradeço.


 [Os 6 minutos entre a penúltima e última frase correspondem à revisão de todo o texto] ;)

*A foto vem do telemóvel da Ana Almeida, na nossa participação no último Bairro dos Livros.

1º Parágrafo: Cândido


Cândido Munafò nasceu numa gruta, que se abria vasta e profunda no sopé de uma colina de olivais na noite de 9 para 10 de Julho de 1943. Nada mais fácil que nascer numa gruta ou num estábulo, naquele Verão e principalmente naquela noite: na Sicília assolada pelo 7.º Exército americano do general Patton, pelo 8.º Britânico do general Montgomery, pela Divisão alemã Hermann Goering, por qualquer disperso e quase desaparecido regimento italiano. E foi mesmo nessa noite, sinistramente iluminado o céu da ilha por petardos multicolores e sulcadas as cidades de bombas, que desembarcaram os exércitos de Patton e de Montgomery.


* Tradução de José Colaço Barreiros

a-ver-livros: suspensa com Winnie Meisler

Suspensa daquela linha
que não consigo parar 
de ler
e reler
e voltar a ler

Aquela linha 
além da qual não consigo passar

Suspensa daquela meia dúzia
de palavras
que custo a entender
- ou finjo
quando na verdade
são tudo o que sei

* para conhecer mais sobre a pintora dinamarquesa
Winnie Meisler siga o link  www.meisler.dk

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

O Fernando Pessoa lá do escritório onde trabalho...

Fernando Pessoa anda em tantos sítios que começo a pensar se ele não será o Deus da literatura... À saída do escritório onde trabalho tem um quadro. Hoje tirei a fotografia. E trouxe-vos o conteúdo! (o trecho é a exacta cópia do original).


«Procure o sr. Cabral do Nascimento ter sempre este facto tão presente, que não saiba que o tem presente - que uma obra de arte, por dispersa que seja a sua realisação detalhada, deve ser sempre uma cousa una e organica, em que cada parte é essencial tanto ao todo, como ás outras que lhe são annexas, e em que o todo existe syntheticamente em cada uma das partes, e na ligação d'essas partes umas ás outras. Comprehendido isto até á inconsciencia. Sinta isto até não o sentir. E, sentido e comprehendido isto até com o corpo, despreze todo o resto. Salte por cima de todas as logicas. Rasgue e queime todas as grammaticas. Reduza a pó todas as coherencias, todas as decencias, e todas as convicções. Feita sua aquella, a unica regra de arte, pode desvairar á vontade, que nunca desvairará; pode exceder-se, que nunca poderá exceder-se; pode dar ao seu espírito todas as liberdades, que elle nunca tomará a de o tornar um mau poeta.
O resto é a literatura portugueza.»

Fernando Pessôa
Sensacionista.

1º Parágrafo: A República dos Corvos


São Vicente, para ser São Vicente e entrar na História como entrou, teve necessidade de dois corvos para o acompanhar que, por sinal, lhe foram sempre fiéis até hoje. Ora, duma ave como esta, tão convivente e tão enigmática, conta-se muita coisa. A própria Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, depois de muitos rodeios, afirma que o corvo é velhaco e ladrão, e isto, bem entendido, com a devida consideração pela agudeza e pela independência no trato que toda a gente lhe reconhece.


a-ver-livros: cordel e Delia Brown

Leio por desfastio 
enquanto te espero
- em vão -
no velho bar 

Os bancos vermelhos
já não cheiram à nossa ânsia
e tu não chegas

Viro a página
ouço uma voz em fundo
que desejo a tua

e nem uma palavra fala de ti
neste romance de cordel

* para conhecer mais sobre Delia Brown,
pintora de Los Angeles, EUA, siga o link www.deliabrown.net

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

In O Homem que Gostava de Cães


Dar até que doa, e não fazer política nem pretender prerrogativas com essa acção, e muito menos praticar a enganosa filosofia de obrigar os outros a aceitar os nossos conceitos do bem e da verdade por (acreditarmos) serem os únicos possíveis e por, além disso, deverem estar-nos agradecidos pelo que lhes demos, mesmo que não o tivessem pedido. E embora soubesse que a minha cosmogonia era de todo impraticável (e que diacho fazemos com a economia, com o dinheiro, com a propriedade, para que tudo isto funcione? E que merda fazemos com os espíritos predestinados e com os filhos da puta de nascença?), satisfazia-me pensar que talvez um dia o ser humano pudesse cultivar esta filosofia, que me parecia tão elementar, sem sofrer as dores de um parto ou os traumas da obrigatoriedade, por pura e livre escolha, por necessidade ética de serem solidários e democráticos. Masturbações mentais minhas…




1º Parágrafo: A Caixa Negra


Caro Alec,
Se não destruíres esta carta no momento em que reconheceres a minha letra no envelope, isso provará que a curiosidade é mais forte do que o ódio. Ou que o teu ódio precisa de um combustível novo.


* Tradição de Miguel Serras Pereira.

a-ver-livros: sonhos e Alexander Demidov

Deitas-te a meus pés
e as páginas passam a ser almofadas
recheadas de sonhos

e frutos
e nuvens
e acreditares


e palavras como as que nunca me disseste

* para conhecer mais sobre o artista Alexander Demidov,
da Bielorússia, siga o link artdemidow.narod.ru

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Poema à noitinha... Álvaro de Campos

Às Vezes Tenho Idéias Felizes

«Às vezes tenho idéias felizes,
Idéias subitamente felizes, em idéias
E nas palavras em que naturalmente se despegam...

Depois de escrever, leio...
Por que escrevi isto?
Onde fui buscar isto?
De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu...
Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta
Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?...»


*Fernando Pessoa definiu assim o seu heterónimo: «Nasceu em Tavira da Serra Grande, teve uma educação exemplar de Liceu; depois foi para Glasgow, Escócia, estudar engenharia naval. Numas férias fez a viagem ao Médio Oriente de onde resultou o Opiário. Agora está aqui em Lisboa em inactividade.»

1º Parágrafo: A Alma das Ruas


Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é partilhado por todos vós. Nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos une, nivela e agremia o amor da rua. É este mesmo o sentimento imperturbável e indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste às idades e às épocas. Tudo se transforma, tudo varia — o amor, o ódio, o egoísmo. Hoje é mais amargo o riso, mais dolorosa a ironia, Os séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua.


* João do Rio, pseudónimo de João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, (Rio de Janeiro, 5 de Agosto de 1881 — 23 de Junho de 1921), jornalista, cronista, tradutor, como jornalista contribuiu para mudar a forma de fazer jornalismo, como repórter profissional constitui um novo tipo de jornalista, numa actividade então considerada menor e secundária, feita por pessoas com tempo livre disponível.

a-ver-livros: à distância com Silas Stoddard

Ergui o rosto para ti
beijaste-me a testa

tal como vinha no livro
das promessas de amor 
e de todos os sonhos

* para conhecer mais sobre o artista Silas Stoddard siga o link silasstoddard.com

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Poema à noitinha... Jorge de Sena

Amo-te Muito, Meu Amor, e Tanto

«Amo-te muito, meu amor, e tanto
que, ao ter-te, amo-te mais, e mais ainda
depois de ter-te, meu amor. Não finda
com o próprio amor o amor do teu encanto.

Que encanto é o teu? Se continua enquanto
sofro a traição dos que, viscosos, prendem,
por uma paz da guerra a que se vendem,
a pura liberdade do meu canto,

um cântico da terra e do seu povo,
nesta invenção da humanidade inteira
que a cada instante há que inventar de novo,

tão quase é coisa ou sucessão que passa...
Que encanto é o teu? Deitado à tua beira,
sei que se rasga, eterno, o véu da Graça.»


*Jorge de Sena morreu em 4 de Junho de 1978, aos 58 anos, de cancro. Em 11 de Setembro de 2009, os seus restos mortais foram trasladados de Santa Barbara, Califórnia, para o cemitério do Prazeres em Lisboa, depois de uma cerimónia de homenagem na Basílica da Estrela, com a presença de familiares, amigos e entidades oficiais.

1º Parágrafo: A Instrução dos Amantes


Se Cláudia fosse uma rapariga dada aos delírios românticos próprios da sua idade, teria escolhido um outro cenário para princípio de paixão. Mas Cláudia trazia os ânimos desprevenidos, e deu-lhe para entontecer por Dinis no funeral de Mariana.


* Inês Pedrosa nasceu em Coimbra em 1962, A Instrução dos Amantes foi o seu primeiro romance.

a-ver-livros: e volta segunda com Tilly Strauss

Tanto faz segunda como sexta

Há um livro nas mãos 
e a alma nas nuvens

* para conhecer mais sobre a pintora americana Tilly Strauss
siga o link www.tillystudio.com

domingo, 23 de setembro de 2012

O livro que só queria ser lido



"O Livro que só queria ser lido", uma adaptação do conto homónimo de José Jorge Letria, pelos Valdevinos - Teatro de Marionetas. A Companhia de Teatro de Marionetas Os Valdevinos foi fundada em 1997, com o propósito de recuperar a tradição portuguesa do Teatro de Robertos. Integrando as antigas e diversas técnicas do fantoche de luva que chegaram até aos nossos dias pela mão de mestres bonequeiros como Manuel Rosado, António Dias ou Domingos Moura


Era uma vez um livro que teve o seu tempo, que esteve na moda, que passou de mão em mão, que teve leitores apaixonados e depois acabou na prateleira do esquecimento e da solidão; alimenta apenas um sonho: o de voltar a ser lido, que é uma forma de ser amado.

Na sua solidão, teve por companhia cúmplice uma velha máquina de escrever, também ela condenada ao esquecimento. Juntos, foram encontrando formas de ultrapassar a tristeza de se sentirem esquecidos.
O Livro que só Queria Ser Lido, é um elogio do livro e da leitura e transmite uma verdade essencial: os livros partilharão sempre connosco, pela vida fora, a magia da aventura e do saber.

Da autoria de José Jorge Letria, é um elogio do livro e da leitura e transmite uma verdade essencial: os livros partilharão sempre connosco, pela vida fora, a magia da aventura e do saber. Este conhecido jornalista, dramaturgo, poeta e autor possui uma vasta obra para crianças e jovens. O Livro que só Queria Ser Lido é recomendado para o 4º ano de escolaridade (pelo PNL) como leitura autónoma ou como leitura com apoio do professor ou dos pais.

a-ver-livros: domingo e Louis Buisseret

Não gosta de missas mas sabe rezar

Repete para dentro os poemas de domingo
no livro dilecto

* para conhecer mais sobre o artista belga Louis Buisseret (1888 - 1956)
siga o link www.aspireauctions.com/artist192-Louis-Buisseret