Muito pouco se falou de Ferreira Gullar, prémio Camões em 2010. Aliás, quando saiu o veredicto, correu um certo espanto no mundo livreiro: o que havia deste autor brasileiro para mostrar?
Estranho - para um poeta, crítico de arte, biógrafo, tradutor, memorialista e ensaísta. Que conta com uma vasta obra e 80 anos de vida. Será que as pontes entre nós e o povo brasileiro não andam, ainda, um pouco desligadas?
Pergunto, como pode este nome ganhar o maior prémio da Lusofonia e tanta gente o desconhecer? Ou não haver nada disponível para ler neste país? Só muito recentemente se começa a ver alguma coisa...
Hoje deixo um pouco dele, num poema oferecido por uma amiga. Lamentavelmente, também pouco sei de Ferreira Gullar. Recentemente, saiu 'Rabo de Foguete - Os Anos de Exílio' e 'Poema Sujo' - um dos grandes poemas deste autor.
Venham conhecê-lo comigo. Em breve discutimos um pouco a sua obra...

Metade
Que a força do medo que eu tenho,
não me impeça de ver o que anseio.
Que a morte de tudo o que acredito
não me tape os ouvidos e a boca.
Porque metade de mim é o que eu grito,
mas a outra metade é silêncio...
Que a música que eu ouço ao longe,
seja linda, ainda que triste...
Que a mulher que eu amo
seja para sempre amada
mesmo que distante.
Porque metade de mim é partida,
mas a outra metade é saudade.
Que as palavras que eu falo
não sejam ouvidas como prece
e nem repetidas com fervor,
apenas respeitadas,
como a única coisa que resta
a um homem inundado de sentimentos.
Porque metade de mim é o que ouço,
mas a outra metade é o que calo.
Que essa minha vontade de ir embora
se transforme na calma e na paz
que eu mereço.
E que essa tensão
que me corrói por dentro
seja um dia recompensada.
Porque metade de mim é o que eu penso,
mas a outra metade é um vulcão.
Que o medo da solidão se afaste
e que o convívio comigo mesmo
se torne ao menos suportável.
Que o espelho reflita em meu rosto,
um doce sorriso,
que me lembro ter dado na infância.
Porque metade de mim
é a lembrança do que fui,
a outra metade eu não sei.
Que não seja preciso
mais do que uma simples alegria
para me fazer aquietar o espírito.
E que o teu silêncio
me fale cada vez mais.
Porque metade de mim
é abrigo, mas a outra metade é cansaço.
Que a arte nos aponte uma resposta,
mesmo que ela não saiba.
E que ninguém a tente complicar
porque é preciso simplicidade
para fazê-la florescer.
Porque metade de mim é platéia
e a outra metade é canção.
E que a minha loucura seja perdoada.
Porque metade de mim é amor,
e a outra metade...
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