sábado, 24 de maio de 2014

love calls you by your name

Lovers, de Jarek Puczel
Fonte: Pinterest

"De sobressalto, o nosso nome é chamado pelo amor. Como um cão ou um criado. Vamos tão apressados que mal damos com o caminho. Isto na escuridão das noites inteiras que passaram as nossas almas.
Depois chamamos nós por ele. Quando desapareceste era o meu passatempo preferido."

O Amor é Fodido, de Miguel Esteves Cardoso

Haiku

"O mundo
tornou-se
uma cerejeira em flor"*
Ryôkan

 *Poema Haiku: é uma forma poética de origem japonesa.



Haiku, palavra viva situada no interior da própria vida.

(...) um poema deve revelar num mesmo movimento o imutável, o infinito, a eternidade que nos escapa e o efémero da matéria de que tudo é feito. É, assim, um momento sublime da existência que se revela num haiku. Este é um momento único, tão brilhante e rápido como um relâmpago.

Nasce no interior do silêncio e é para o silêncio que tende. 

O haiku tem uma duração vital, ele deve ser pronunciado no tempo de uma respiração. A vida e o mundo respiram, o poeta respira em consonância. E este sopro que sobressalta a consciência é o próprio poema. Por isso não é, não pode ser discursivo. É um instante que não tem prolongamento. Uma forma à velocidade da luz.

No entanto, ainda que extraordinariamente visual, é uma forma de dizer o silêncio de fundo que atravessa as coisas e os seres do mundo. Retirada do silêncio primordial pela palavra que o nomeia, a realidade estremece, e é este movimento infinito que o poeta pretende alcançar e nele se instalar. Os conteúdos serão os da tradição da alma japonesa.

Em As cigarras vão morrer,
Haiku: uma antologia


Casa do Sul

Snobidando: Cecília Meireles

E Assim Passamos a Tarde, Cecília Meireles 

E assim passamos a tarde
conversando coisas banais,
da superfície do mundo.

E estamos cheios de mistérios
que não comunicamos.
E assim morreremos, decerto.
E não dais por isso.



Acompanhe a página da Livraria Snob no Facebook. Abre brevemente, em Guimarães. Pode lá encontrar isto e muito mais.

Emílio Miranda, dia 24

Palavras assim-assim
Dizem verdades assim-assim…
Evita-se uma guerra sem a cobiça da terra
E ganha-se o céu no dia em que se morreu…
Mentiras que tu e eu sabemos
E ainda não morremos.
É ridículo pensar-se que tudo
Acontece
Porque disso se faz alarde.

Uma cidade é triste quando anoitece
E nem sempre é alegre quando amanhece
Às vezes é tarde,
Simplesmente…
Simplesmente
Às vezes é tarde!

Emílio Miranda 


Foto: Cláudia Miranda

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Poema à noitinha... Nauro Machado

Abre-me as Portas, Mãe

Abre-me as portas, mãe, enquanto as estrelas
buscam em mim agora a treva infinda,
sem luz alguma no meu olhar a vê-las
nessa cegueira a ser da altura vinda.
Assim, mãe, invado tua noite, a sabê-las
eternamente em pó na luz que é finda
só para mim, que vou comigo pelas
manhãs nascendo todas cegas ainda.
Como fazê-las ser de novo vivas?
Como, se nunca delas fui um conviva
às vidas feitas festas para as vistas?
Para arrancá-las da morte onde as pus,
quero essa noite, ó mãe, roubada à luz
do céu que, embora cega, tu conquistas.

*Nauro Machado, in O Cirurgião de Lázaro

foto tirada daqui.

Uma boa ideia?

Merci à Frédéric Vermeulen...Un tramway bibliothèque en République Tchèque.

Encontrado na página Improbables Bibliothèques, 
Improbables Librairies. A não perder por nada!

O duplex de Hamlet

retirado daqui.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Poema à Noitinha... Cecília Meireles

A Velhice Pede Desculpas

Tão velho estou como árvore no inverno,
vulcão sufocado, pássaro sonolento.
Tão velho estou, de pálpebras baixas,
acostumado apenas ao som das músicas,
à forma das letras.

Fere-me a luz das lâmpadas, o grito frenético
dos provisórios dias do mundo:
Mas há um sol eterno, eterno e brando
e uma voz que não me canso, muito longe, de ouvir.

Desculpai-me esta face, que se fez resignada:
já não é a minha, mas a do tempo,
com seus muitos episódios.

Desculpai-me não ser bem eu:
mas um fantasma de tudo.
Recebereis em mim muitos mil anos, é certo,
com suas sombras, porém, suas intermináveis sombras.

Desculpai-me viver ainda:
que os destroços, mesmo os da maior glória,
são na verdade só destroços, destroços.

*Cecília Meireles, in Poemas (1958)

Editorial Presença lançou «O Livro do Perdão» de Desmond Tutu e da sua filha Mpho


O Livro do Perdão
O caminho para a Reconciliação Consigo e com os Outros


Sinopse: O Livro do Perdão foi escrito pelo Arcebispo e Prémio Nobel da Paz (1984) Desmond Tutu em coautoria com a filha, Mpho, sacerdote da Igreja Episcopal. Expõe as verdades simples sobre o significado do perdão. Todos precisamos de saber como concedê-lo e recebê-lo, e de tomar consciência de que perdoar é a maior dádiva que podemos oferecer a nós mesmos quando nos sentimos injustiçados. Segundo uma perspetiva inovadora, explica como se processa o ciclo do perdão e os quatro passos para lá chegar. Todos nós, sem exceção, podemos passar pela experiência emocional e profundamente terapêutica de perdoar e ser perdoados. Um livro que inspirou práticas pioneiras e bem-sucedidas em países que passaram por graves conflitos internos.

«O perdão é muito simplesmente a maneira de trazermos paz a nós mesmos e ao mundo.»


P.V.P.: 13,90 € 
Data de Edição: 2014
Nº de Páginas: 240
Editora: Editorial Presença

*informação disponibilizada pela Editorial Presença

Gonçalo Viana de Sousa: o Flâneur das Sensaçõs





"A poesia nem sempre é o caminho, mas, por vezes, os desvios são muito mais saborosos", afirma Gonçalo Viana de Sousa nos seus Apontamentos mefistofélicos.
Afinal, o que somos nós capazes de ver?
No vosso regaço, mais um poema deste nosso Flâneur.



Revejo


Revejo-me e não me revejo
Nessas portas vermelhas que se abrem,
Mas logo se fecham.
Percorro-te com o olhar.
Vejo-me a circular por cima
Do teu corpo, eu e os outros pedestres.
A velocidade com que
Me matas civilização,
Ainda não imprimiu força suficiente.
Impões uma sensação de preenchimento
Que logo se dissipa.
Uma pressão desconfortável.
O vosso choro tem compasso
Musical descompassado
Crio uma base da vida na contradição
Que revejo, revejo.
As conspirações, a história irreal,
Tudo me parece mais claro agora,
Simples distracções da vida.
As ideologias não fazem sentido.
Uma teia sarcástica concebida pelos
Génios do mundo.

Enfado, cansaço.

a-ver-livros: salva-me

Afogo-me nas chamas
do teu silêncio
o etanol a rasgar-me as veias
cheias
de palavras por dizer
lambidas pelo
que sobra dos cheiros
da nossa pele
no frio ardente dos mosaicos.
Salva-me

Ana Almeida

* saiba mais sobre o artista belga Jan De Maesschalck
seguindo o link www.zeno-x.com/artists/JDM/jan_de_maesschalck

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Poema à noitinha... Lêdo Ivo

Condição para Aceitar

Que a morte me lembre
um mar transparente,
só assim a aceito:
silêncio final
dentro de meu peito,
perfeição de vagas
brancas e caladas,
paisagem abolida
no horizonte raso
do mar sem coqueiros,
vazio do mundo
após a palavra
que quis dizer tudo
e não disse nada.

*Lêdo Ivo, in A Noite Misteriosa

Foto frase do dia: Aldous Huxley


Diane Setterfield - mais uma autora para conhecermos

P.V.P.: 18,50 € 
Data de Edição: 2014
Nº de Páginas: 408
Editora: Marcador

SINOPSE

Esta é a História de William Bellman, que começa no momento em que, ainda rapaz, brinca com os amigos no meio rural inglês. William impressiona os companheiros ao matar uma gralha-calva com uma fisga. Os anos vão passando e William continua a impressionar. É um jovem de sucesso, tem jeito para os negócios, chega ao cargo mais elevado de uma fiação local, casa-se e tem quatro filhos inteligentes, e espera que a vida lhe continue a correr de feição.

É então que surge uma doença na sua localidade. William perde a mulher e três dos filhos. Em desespero, faz um pacto com um estranho vestido de negro. A sua filha mais velha é poupada, mas William muda-se para Londres, abre uma loja e dedica-se inteiramente ao trabalho, incapaz de reviver as memórias do passado em que conheceu a felicidade.

Diane Setterfield

Diane Setterfield
Foi Professora e é especialista em literatura francesa dos séculos XIX e XX. Vive no Yorkshire, em Inglaterra. O Décimo Terceiro Conto é o seu romance de estreia. Um livro admirável que se tornou um bestseller imediato tendo alcançado, logo na primeira semana, o topo da lista dos mais vendidos do The New York Times.
*informação disponibilizada pela editora Marcador

a-ver outros livros com Paixão

Há uma parede cá em casa - duas na verdade, convergindo na esquina - que é assim. Cita Pedro Paixão:
"Podemos viver na casa mais bonita do mundo
mas é a nossa alma, do princípio ao fim, que habitamos
"



Não é que o entenda. Ou que me identifique por aí além com o seu estilo e o seu modus vivendi.
Mas as suas palavras tendem a fazer eco dentro de mim. E esta frase, especificamente, acompanha-me há muitos anos. Para me recordar de quem sou.

Enfim. Só para vos dizer que o escritor nascido em 1956, casado e pai de um filho, que tentou ensinar filosofia e desistiu, que nunca votou na vida, anda a preparar um filme e tem dois novos livros no prelo. "O Céu na Boca" e "Uma Espécie de Amor", em pré-venda a partir de 23 de Maio na Prime Books e nas livrarias a 11 de Junho. Estou na fila.

Ana Almeida


terça-feira, 20 de maio de 2014

É do borogodó: quem ganha o passatempo?

Eis as três participações finalistas do passatempo para oferecer um livro infantil "Incrível História do Menino que Não Queria Cortar o Cabelo", da nossa Penélope Martins. Escolham a vossa favorita e ajudem-nos a decidir quem vai ganhar o prémio.

"A história de infância mais sujismunda e engraçada que me aconteceu foi eu e os meus amigos procurarmos por minhocas e parti-las ao meio só para ver que elas continuavam a mexer-se em ambas as partes! Horrível, eu sei, e não faço ideia de como era capaz!"
Daniela MP


"A história de infância mais engraçada e sujismunda que me aconteceu foi comer (mascar) pastilha elástica, escondê-la debaixo das mesas e a cada dia que passava ir lá buscá-la, voltar a mastigar e voltar a colar a pastilha na mesa, para não ficar sem a minha queridinha pastilha que eu tanto gostava. Como é que eu aguentava tanta mastigadela? Punha açúcar com a pastilha e vá lá: todos os dias estava como nova."
Paula Antão

"A história de infância mais engraçada e sujismunda que me aconteceu foi brincar tardes a fio com o meu melhor amigo nos formigueiros, enterrando e desenterrando as formigas e rebolando na terra."
Nuno Antunes 

Digam de vossa justiça até sexta-feira, vá! Basta comentarem este post (aqui no blog, na página do facebook ou também no grupo)

Poema à noitinha... Irene Lisboa

Solidão

Cai chuva, chora.
Chora, chora.
Solidão, solidão!

Já não canta o pássaro.
Calou-se a voz, a alegre, a rara.
A que se ouvia solitária.
Cai chuva.

Não sou freira e estou num convento.
A paz, o silêncio, a chuva, os claustros...
Ser freira!

O sequestro, cantar, rezar.
Cai chuva, rude e sem dor.
Tu não choras.
Sou eu que choro.

Que é do pássaro, como cantava?
Voltou, voltou. Pia!
Bendito pássaro, onde estás?
Acompanha-me, já não chove.
Solidão, melancolia.

*Irene Lisboa, in Outono Havias de Vir

foto tirada daqui.

A guerra e os livros

Merci à Florence Roussilhe Clavel.
Blitz World War II Britain.



Encontrado na página Improbables Bibliothèques, 
Improbables Librairies. A não perder por nada!

A Tinta-da-China lançou o livro de Matilde Campilho - «jóquei»

Matilde Campilho

Matilde Campilho nasceu em Lisboa em 1982. No ano de 2010 foi viver para o Brasil, e desde então mora entre o Rio de Janeiro e Lisboa. Publicou poemas nos jornais brasileiros A Folha de São Paulo e O Globo, assim como em algumas revistas online.

Jóquei é o seu primeiro livro.


ATÉ AS RUÍNAS PODEMOS
AMAR NESTE LUGAR

Lembro-me muito bem do tal cantor basco 
que costumava celebrar a chuva no verão 
Não ligava quase nada para as conspirações 
que recorrentemente se faziam ouvir
debaixo das arcadas noturnas da cidade 
naquela época do intermezzo lunar 
Foi já depois do fascismo, um pouco antes 
da democracia enfaixada em magnólias 
O cantor, as arcadas, o perfume e os disparos 
me ensinaram que se deve aproveitar a época 
de transição para destrinçar o brilho 
As revoluções sempre foram o lugar certo 
para a descoberta do sossego: 
talvez porque nenhuma casa é segura 
talvez porque nenhum corpo é seguro 
ou talvez porque depois de encarar uma arma 
finalmente possa ser possível entender 
as múltiplas possibilidades de uma arma. 


AVARANDADO 


Quarta nota para 
a manhã infinita: 

Afinal o grande amor 
Não garante nada mais 
Do que as 12 graças 
Desdobradas pelos 
Corredores do mundo 
Agora isso é mais 
Do que suficiente 
E apesar dos bofetões 
Do tempo invertido 
Apesar das visitas 
Breves do pavor 
A beleza é tudo 
O que permanece.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Poema à noitinha... Carlos Poças Falcão

O Riso

Por substituição das emoções a poesia
recorda uma arte escura: vagares, caligrafia
da estação que ondula, oscilação de um cálamo
a meio do branco. A natureza encurva-se,
o coração assenta de modo a ver o mundo.
Eis um dia inteiro, o trabalhar dos olhos,
a falta de sentido de iluminar a luz.
A sombra é sem esforço, a respiração respira,
encontra-se uma face, transforma-se num som,
pequenos acidentes dilatam-se no céu.
Palavras que se apagam. Pensamentos fáceis.
Se isto é poesia eu rio-me no fim:
é como estar sentado, não ter arte nenhuma.

*Carlos Poças Falcão, in Movimento e Repouso

i just don't know what to do with myself

Jorge Molder
Fonte: Pinterest


"Enquanto tu e eu, minha querida, fomos condenados um ao outro, castigados com o outro. Como a uva, que é doce e não faz mal a ninguém, está condenada à aguardente.

O que custa mais não é tanto lembrar - é não esquecer. O que é que se faz com o que nos fica na cabeça, quando já não há nada para fazer?"

O Amor é Fodido, de Miguel Esteves Cardoso

Emílio Miranda, dia 23

Respiras um dia
Para escrever duas frases
E não sabes
E não sabes
Nunca
Com que frases
Se escrevem os teus dias…

Emílio Miranda 


Foto: Cláudia Miranda

a-ver-livros: redução

Não me reduzas à tua leitura
de mim
à pequenez do teu olhar

Sou múltiplo 
e tanto e mais
do que me presumes

Ana Almeida

* para saber mais sobre o pintor canadiano Denis Chiasson
siga o link www.webstergalleries.com/artistId=8514

domingo, 18 de maio de 2014

Poema à noitinha... Alberto Pimenta

A Encomenda do Silêncio

Já reparaste que tens o mundo inteiro
dentro da tua cabeça
e esse mundo em brutal compressão dentro da tua cabeça
é o teu mundo
e já reparaste que eu tenho o mundo inteiro
dentro da minha cabeça
e esse mundo em brutal compressão dentro da minha cabeça
é o meu mundo
o qual neste momento não te está a entrar pelos olhos
mas através dos nomes
pois o que tu tens dentro da tua cabeça
e o que eu tenho dentro da minha cabeça
são os nomes do mundo em brutal compressão
como um filtro ou coador
de forma que nem és tu que conheces o mundo
nem sou eu que conheço o mundo
mas os nomes que tu conheces é que conhecem o mundo
e os nomes que eu conheço é que conhecem o mundo
o qual entra em ti e o qual entra em mim
através dos nomes que já tem
de forma que o que entra pelos meus olhos não pode
entrar pelos teus olhos
mas só pela tua cabeça através
dos nomes dados pela minha cabeça
àquilo que entrou pelos meus olhos já com nomes
e do mesmo modo
o que entra pelos teus olhos não pode
entrar pelos meus olhos
mas só pela minha cabeça através
dos nomes dados pela tua cabeça
àquilo que entrou pelos teus olhos já com nomes
e assim o que tu vês
já está normalmente dentro de ti antes de tu o veres
e assim o que eu vejo
já está normalmente dentro de mim antes de eu o ver
e tudo quanto tu possas ver para aquém ou para além dos nomes
é indizível e fica dentro de ti
e tudo quanto eu possa ver para aquém ou para além dos nomes
é indizível e fica dentro de mim
e é assim que vamos construindo a nós mesmos pela segunda vez
tu a ti e eu a mim...
construindo urna consciência irrepetível e intransmissível
cada vez mais intensa e em si
tu em ti eu em mim
no entanto continuando a falar um com o outro
tu comigo e eu contigo
cada um
tentando dizer ao outro
como é o mundo inteiro que tem dentro da cabeça
e porque é e para que é
tu o teu mundo que tens dentro da tua cabeça
eu o meu mundo que tenho dentro da minha cabeça
até que morra um de nós
e depois o outro...

*Alberto Pimenta, in As Moscas de Pégaso

Prefácio para um livro de poemas

Prefácio para um livro de poemas


Conheci um homem que possuía uma cabeça de vidro. 
Víamos - pelo lado menos sombrio do pensamento - todo o sistema planetário.
Víamos o tremelicar da luz nas veias e o lodo das emoções na ponta dos dedos. 
O latejar do tempo na humidade dos lábios.
E a insónia, com seus anéis de luas quebradas e espermas ressequidos.
As estrelas mortas das cidades imaginadas.
Os ossos (tristes) das palavras. 
A noite cerca a mão inteligente do homem que possui  uma cabeça transparente.
Em redor dele chove.  Podemos adivinhar uma chuva espessa, negra, plúmbea. 
Depois, o homem abre a mão, uma laranja surge, esvoaça. (...)
Mas aquele que se veste com a pele porosa da sua própria escrita, olha, absorto, a laranja.

A queda da laranja provocará o poema?
A laranja voadora é, ou não é, uma laranja imaginada por um louco?

E um louco, saberá o que é uma laranja?
E se a laranja cair? E o poema?
E o poema com uma laranja a cair? E o poema em forma de laranja?
E se eu comer a laranja, estarei a devorar o poema? A ficar louco?
E a palavra laranja existirá sem a laranja?
E se a laranja voará sem a palavra laranja?
E se a laranja se iluminar a partir do seu centro, do seu gomo mais secreto, e alguém a (esquecer) no meio da noite, servirá (o brilho) da laranja para iluminar as cidades há muito mortas?
E se a laranja se deslocar no espaço- mais depressa que o pensamento, e muito mais devagar que a laranja escrita - criará uma ordem ou um caos?

O homem que possui uma cabeça de vidro habita o lado de fora das muralhas da cidade.
Foi escorraçado. (E) na desolação das terras, noite dentro, vigia os seus próprios sonhos e pesadelos.
Os seus próprios gestos - e um rosto suspenso na solidão.
Onde mora o homem que ousou escrever com a unha na sua alma, no seu sexo, no seu coração? (...)

Onde está a vida do homem que escreve, a vida da laranja, a vida do poema - a Vida, sem mais nada - estará aqui? Fora das muralhas da cidade? No interior do meu corpo? (...)

Al Berto


Michal Luczak

Só mais um bocadinho de «No país da nuvem branca»

P.V.P.: 19,95 € 
Data de Edição: 2014
Nº de Páginas: 684
Editora: Marcador

«Li hoje a sua carta, com grande alegria e afeto. Também eu compreendi o caminho que nos cruzou de forma vacilante, mas Deus saberá porque uniu duas pessoas cujos mundos são tão distantes. No entanto, ao ler a sua carta, os quilómetros que nos separam parecem desaparecer mais depressa.

Será possível que já nos tenhamos encontrado nos nossos sonhos?

Ou serão talvez as experiências e os desejos comuns que nos aproximam um do outro?

Ficaria muito feliz se pudéssemos continuar a corresponder-nos. Espero que também o senhor tenha a sensação de que encontrou uma alma gémea.

Espero que, ao ler as minhas palavras, também sinta uma centelha do afecto e segurança que desejo dar... a um marido amantíssimo e, se Deus quiser, a um tropel de maravilhosos filhos no seu novo e jovem país.

Com grandes esperanças no coração.

A sua, Helen Davenport»

Apanhei-te a ler... dia 2

Salvador Dali

Encontrado na página Improbables Bibliothèques, 
Improbables Librairies. A não perder por nada!