Prefácio para um livro de poemas
Conheci um homem que possuía uma cabeça de vidro.
Víamos - pelo lado menos sombrio do pensamento - todo o sistema planetário.
Víamos o tremelicar da luz nas veias e o lodo das emoções na ponta dos dedos.
O latejar do tempo na humidade dos lábios.
E a insónia, com seus anéis de luas quebradas e espermas ressequidos.
As estrelas mortas das cidades imaginadas.
Os ossos (tristes) das palavras.
A noite cerca a mão inteligente do homem que possui uma cabeça transparente.
Em redor dele chove. Podemos adivinhar uma chuva espessa, negra, plúmbea.
Depois, o homem abre a mão, uma laranja surge, esvoaça. (...)
Mas aquele que se veste com a pele porosa da sua própria escrita, olha, absorto, a laranja.
A queda da laranja provocará o poema?
A laranja voadora é, ou não é, uma laranja imaginada por um louco?
E um louco, saberá o que é uma laranja?
E se a laranja cair? E o poema?
E o poema com uma laranja a cair? E o poema em forma de laranja?
E se eu comer a laranja, estarei a devorar o poema? A ficar louco?
E a palavra laranja existirá sem a laranja?
E se a laranja voará sem a palavra laranja?
E se a laranja se iluminar a partir do seu centro, do seu gomo mais secreto, e alguém a (esquecer) no meio da noite, servirá (o brilho) da laranja para iluminar as cidades há muito mortas?
E se a laranja se deslocar no espaço- mais depressa que o pensamento, e muito mais devagar que a laranja escrita - criará uma ordem ou um caos?
O homem que possui uma cabeça de vidro habita o lado de fora das muralhas da cidade.
Foi escorraçado. (E) na desolação das terras, noite dentro, vigia os seus próprios sonhos e pesadelos.
Os seus próprios gestos - e um rosto suspenso na solidão.
Onde mora o homem que ousou escrever com a unha na sua alma, no seu sexo, no seu coração? (...)
Onde está a vida do homem que escreve, a vida da laranja, a vida do poema - a Vida, sem mais nada - estará aqui? Fora das muralhas da cidade? No interior do meu corpo? (...)
Al Berto
Michal Luczak