sábado, 27 de dezembro de 2014

O pôr-do-sol de Helder Magalhães

venho de ver o sol a pôr-se
além horizonte
tão longe que nem sei onde fica
como a terra que agora calcorreias
e eu encandeado ...
adentra-me o fogo do incêndio
que transpunha a janela do quarto
e se alastrava
pela geografia do teu corpo
que as minhas mãos
ainda
percorrem no silêncio da lonjura
como se o acto do amor lhes
permanecesse.


*Helder Magalhães

Foto: Rodrigo Ferrão

A língua morta de Mário Cesariny a Luís Pacheco

MÁRIO CESARINY A LUÍS PACHECO

Lx. 1966

Meu Caro...

Gostei mais da tua carta que do texto que me enviaste a propósito da Cidade Queimada, embora este fosse, ou fosse a fingir, de altamente elogiativo: Corrijo: na tua boca, na tua maneira, ele é realmente elogiativo. Está lá o velho programa que traçaste para os teus mais próximos: cadeia, ou hospital. Tua ânsia, velha, que sempre te fez sobrepor-te, adiantar-te, esmerar, por conta própria, os serviços policiários. Conheço isso. Todos os presidiários falam de si mesmos e dos colegas como da classe aparte, ou a única que importa considerar. Estive preso, cá e lá, mas, muito pior que isso, tive cinco anos de liberdade vigiada que deram cabo de mim. Lembro-me de que nessa altura tu achavas graça a uma expressão do Lima: o poeta que vai à revista. O poeta foi à revista e matou-se aí. Ou mataram-no. Ficou uma coisa esquisita, de onde sai o excesso de pânico que me atravessa quando novas hipóteses se põem. Excesso, digo bem. E adiante. Por isso tenho memória de velha. De elefante. Não acho que sejam velhas coisas, estas. Nem tu. De enternecer, enfim, o preocupares-te com o tal teu amigo que diz que eu estou uma merda e com o G. Cruz que diz que eu perdi as imagens coitado. Olha, não te preocupes. Alguma coisa me diz que os meus poemas, com imagem ou sem, são a merda do pássaro. Essa os lambuza e ocupa, sejam más sejam fortes as cagadas. Quanto ao pássaro propriamente dito -- o canto -- ninguém viu. Acho que não o podem ver.

Não me defendas. É pouca a paternidade: Ramos-Rosa-Gastão-Cruz que pões na tua carta. Estes e outros foram todos beber a um que dizia isso com mais graça: o Luiz Pacheco. Assinado por ti, fui um pobre diabo, um que pinta com merda, uma barata em ascensão para as coroas, um que está bom para saldos, não quer ir para a cadeia, lembrarás o resto. Quando um dia foi possível reeditar o Lisboa, cujas primeiras edições já não existiam, o horrível crime foi punido: pediu oito tostões à mãe para o eléctrico e foi à editora.

É a isto que na tua carta chamas «verdade histórica»? Homenagem, querido, faço-te esta: a de tentar acreditar que tu acreditas nisso. Que é possível haver uma verdade para o dia 16 -- verdade com tal força de verdade que chega para assassinar em duas forças de linha o amigo mais próximo -- e haver outra correctiva da primeira ou mesmo, se preciso, sua antítese para o dia 18. Será verdade que acreditas nisso? Será possível que haja essa verdade? O assassinato da família do Kafka e a reabilitação do Kafka?

Para mim, era-me impossível viver, ou morrer, se tivesse de chamar a isso verdade. Que é o que te acontece. E tu dizes: justiça! Horror dos horrores.

Assentemos pois nesta verdade: deixa-os dizer o pior, e o pior do pior. Não intervenhas, ficas caricato. Nada disso me ocupa, nem sequer incomoda. Golpe fundo foram os teus ataques, duplamente mortais para o nosso convívio: se justos -- o poeta na «decadência» -- de uma crueldade desnecessária; se injustos -- o poeta a braços com um amigo louco -- de uma crueldade de louco.

A minha pergunta -- era uma pergunta o que te fazia ao enviar-te o teu postal de há 8 anos, -- não é ao acaso. Tenho um livro a sair, «A Intervenção Surrealista». Dentro em breve, as provas. Como é de obrigação, surges nele. Há no livro documentos bem mais antigos do que as tuas campanhas contra mim. E não estão nada velhos. Em nada. Por isso perguntava: que faço eu com isto? Se achas que envelheceu, que já não é verdade, é uma resposta, com linguagem tua. Se achas verdade histórica, além de esquisito, é pouco. E é de lado.

Dúvida, é isto: incluo, não incluo o teu artigo sobre o meu «Picto-Abjeccionismo»? Sei que o retiraste do teu livro, mas: achas que podemos fazer isso? É, com o artigo do Virgílio, a única coisa que apareceu na Imprensa.

Se incluo, vais ouvir coisas horríveis, porque te dou resposta. Se não incluo, voltamos ao mesmo: que faço eu com isto?

A tua verdade histórica é a merda.

Diferente na minha neste ponto: é possível que a minha vida tenha dado cabo de mim, ou eu cabo de mim nela; o amor que tenho à vida fez-me sempre evitar dar cabo da vida dos outros. Não «enterrei» ninguém sempre até à última quis a vida dos outros. Tu incluído. A tua pressa em dar cabo dos outros, diz-me que vida é. E que espécie de cabo. Sempre até à última quis a vida do António Maria Lisboa. Mesmo nas edições que dele fiz. Toda a égloga fúnebre afastada. «Não se trata de um homem que vai morrer»... E do teu medo de perder o que ainda não perdeste dos textos do Lisboa, não terá culpa alguma o próprio Lisboa. Se tens medo de perder o que ainda não está perdido, põe em lugar seguro, ainda há alguns. Mas acaba com a chantagem insinuada na tua carta. Se quer fazer-se uma edição decente, ideia de luxo excluída, digo decente, colaborarei com gana. Se quer fazer-se uma edição despachativa só porque tu podes perder o resto, mando-te já à merda, a ti e à edição. Falando com o Victor, parece já conseguida uma certa concessão da parte da editora: farão um livro integrado na colecção mas em formato maior e maior cuidado gráfico.

Dizes que no ano passado te salvei a vida. Se é verdade, fico contente. Salvá-la-ia muitas vezes mais, se pudesse. Conforte-te saber, se não puder repetir-se, que da única vez que tive dinheiro meu, o reparti contigo, quanto pude. E que fiz o meu melhor para que outros fizessem algo parecido. E fizeram, mesmo pouco parecido. Há muito anos que joguei em ti, a favor teu, não como editor -- por mais que isso te ofenda -- não, também não, como a louca dos papelinhos que trazia a cidade divertidíssima e para quem o papelinho e a sua função, diversa, contava muito mais que a verdade. Qualquer verdade. Da qual verdade o burgo não queria. Tu também não. Joguei, eu, no que tinhas de melhor. «O senhor não é palhaço, o senhor é escritor». Estas linhas do Lisboa, cantei-tas várias vezes, em vários tons. Soube isso no teu texto dos Doutores, Salvação, e Menino, que continua a ser para mim o texto lúcido que, em literatura, a época forneceu. Soube-o de novo, com imensa alegria, na publicação do Teodolito. Diante de um texto tal hão-de curvar-se, sem querer, todos os merdas do literato lisboeta. E, o que é mais: pela primeira vez encontrava a tua humanidade, a tua forma natural de sorrir -- tens o sorriso mais bondoso, espanta-te, de quantos vi a tentar abrir os lábios: sai quase sempre careta, lá o diz o Lautréamont -- diante das calamidades. Melhor: eras o homem que se confessava isso, homem, e em que mundo assim, de que maneira! Nada a ver com os teus papelinhos acusatórios, de boa ou má esguelha, para a vida ou para a morte dos outros. Creio que não piorei o texto publicando-o com as «emendas» ou «chaves» que tu próprio aceitaste. Acho mesmo que ficou melhor, o que decerto te ofende. Outros textos tens parido de igual, ou maior altura? Este o Luiz Pacheco que conheço, o único que de facto existe e posso amar, mesmo conservando na gaveta, como conservo, e não esquecendo, não são para esquecer, feridas abertas. Em corpo frágil.

P.S. -- Na folha publicitária que o Victor Tavares te fez, leio que te consideras velhote. Não te preocupes. Nem te defendas tanto. Parece mal. Será manobra, também. Não me preocupo. Preocupa-me -- outra vez!! -- o destino dos inéditos. Exceptuada a raiva, que permanece, vi-te sempre abandonar tudo, todos. Em que nome, não se percebe bem. Aceitemos que no do teu registo, L. Guerreiro Pacheco. Não é assim tão feio. Fiquemos aqui.

in Jornal do gato, [s.l.]: ed. autor, 1974.
 

Quem quer um carro assim?

Encontrado na página Improbables Bibliothèques, 
Improbables Librairies. A não perder por nada! 

Foto frase do dia: Anna Quindlen


sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Poema à noitinha... Tamen

Devagar te Amo
Devagar te amo, e devagar assomo
os dedos à altura dos olhos, do cabelo
dos anéis de outro turno, que é só meu
por querê-lo, meu amor, como a ti mesma quero
nos tempos de passado e sem futuro.
Devagar avanço um dealbar de dias
que vida seriam - mesmo que morto, à noite,
eu voltasse amargurado mas presente,
calado e quedo, e devagar amando.


*Pedro Tamen, in Rua de Nenhures

Campanha original de Natal

Merci à Sabine PERNOD
"Librairie du Québec", à Paris.

Encontrado na página Improbables Bibliothèques, 
Improbables Librairies. A não perder por nada! 

Snobidando: Manuel António Pina

O QUARTO

Quem te pôs a mão no ombro,
a faca que te atravessou o coração,...
são feridas alheias, talvez algo que leste;
entretanto partiste
para lugares menos iluminados
e corações menos vulneráveis,
pode perguntar-se é o que fazes ainda aqui
se já cá não estás.
A hora havia de chegar em que
nos perderíamos um do outro.
E acabaríamos necessariamente assim,
mortos inventariando mortos.
Morrer, porém, não é fácil,
ficam sombras nem sequer as nossas,
e a nossa voz fala-nos
numa língua estrangeira.
Apaga a luz e vira-te para o outro lado
e acorda amanhã como novo,
barba impecavelmente feita,
o dia um sonho sólido onde a noite se limpa e se deita.


*Manuel António Pina, Como se Desenha uma Casa, Assírio & Alvim, 2011
 
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Foto frase do dia: Mark Twain


quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Eu poético: «joyeux noël»

joyeux noël

é natal e eu cumpro as obrigações
do
meu
tempo.

faço os votos,
compro prendas,
rasgo o papel,
visto a roupa,
como,
bebo,
como mais,
bebo mais.
tiro a roupa,
verifico o talão de troca,
agradeço,
sorrio,
relaxo
e sinto o conforto da lareira.
desfaço as entradas,
o peru,
a sobremesa,
tomo o café,
vejo o filme,
arrumo os papéis,
despeço-me
e vou para casa.

é natal e os pobres cumprem as solidões
do
meu
tempo.

acordam,
atiram a manta para trás,
dão um trago na água,
passam na padaria
e mendigam um pão.
depois vão às portas da igreja
- missa do meio-dia -
estendem a mão
e sentem o peso dos tostões a cair.
mais tarde encostam a cabeça ao sol,
recordam infâncias
e passados que jamais serão futuro.
consta que salivam
quando pensam na comida que sobra
nos lares
e na família
que
não
têm.

é natal e as crianças famintas cumprem a sobrevivência
do
meu
tempo.

não sabem o que é neve,
árvores com bolas
e luzes.
e o que são brinquedos?
não compreendem quem foi jesus,
nem muito menos sabem quem é
o inexistente
pai natal.
no seu mundo não cabem bacalhaus, filós
e sonhos:
nem os doces
nem o amanhã.
só querem que a mãe
lhes possa dar calor mais um pouco,
só querem que a papa de farinha
chegue para o dia,
só querem que as moscas
lhes deem descanso,
só querem que a morte
não os venha buscar
tão
cedo.

feliz natal.
merry christmas.
feliz navidad.
joyeux noël.

Rodrigo Ferrão

Foto: Rodrigo Ferrão

Foto frase do dia: Louis Aragon


Bai'má Benda - É Natal ou quê "forra"?!...

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Poesia em matéria fria: Sophia de Mello Breyner Andresen

 
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terça-feira, 23 de dezembro de 2014

É do borogodó: Anaïs Nin

“¿Cómo me ve él?”, se preguntó. Se levantó y colocó un largo espejo junto a la ventana. Lo puso de pie, apoyándolo en una silla. Luego, mirándolo, se sentó frente a él, sobre la alfombra, y abrió lentamente las piernas. La vista resultaba encantadora. El cutis era perfecto, y la vulva rosada y plana. Mathilde pensó que era como la hoja del árbol de la goma, con la secreta leche que la presión del dedo podía hacer brotar y la fragante humedad que evocaba la de las conchas marinas. Así nació Venus del mar, con aquella pizca de miel salada en ella, que sólo las caricias pueden hacer manar de los escondidos recovecos de su cuerpo.
Anaïs Nin
*** escolhido por Penélope Martins

Foto frase do dia: Anna Quindlen


Bai'má Benda - Campeom...

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segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

a-ver-livros: como?

Como é que eu digo o silêncio
como é que escrevo 
o medo
como é que pinto o eco
dessa ausência
como é que travo a espera
do que não vem 
como é que respiro
quando respirar dói 
e não se pode extirpar
o monstro
que vive cá dentro
como é que escondo 
o caudal do rio
que inunda as margens
do esgar
que finge o sorriso
como é que morro
se só sei viver?

Ana Almeida

* para saber sobre o artista português Almada Negreiros
siga o link www.cam.gulbenkian.pt/index.php?article=62496

Deixar um livro por ler...

A Língua Morta de - Pierre Reverdy

Pierre Reverdy, "Respirar pelo coração", tradução de Hugo Pinto Santos (Língua Morta)

Foto frase do dia: Cicero

domingo, 21 de dezembro de 2014

O Senhor Costa


O Costa não tuge, nem muge, nem grunhe, nem ronca, nem mia, nem ladra, nem grasna, nem bale, nem crocita, nem relincha, nem coaxa, nem arrulha, nem pia.
Apenas anui, concorda, aceita, cala, consente.
Casado há 25 anos, desistiu de ser ele próprio há 23.
Os dois piores anos da sua vida.
Dois anos demorou a ficar convencido de que ser ele mesmo era coisa com muitos defeitos.
Depois, convencido, cansado, vencido, foi evitando ser até deixar de ser.
Desapareceu como por magia.
Onde é que está o Costa? – Olhos à esquerda, olhos à direita, a tentação dos olhos no tecto, como se o Costa pudesse estar, como cientista colado ao tecto a fazer companhia ao candeeiro, ombros encolhidos, lábios franzidos e ninguém sabia.
Que o mesmo é dizer ninguém o via (queria ver ou procurava, sobretudo rigor).
- Sim, querida!
- Claro, querida!
- É para já, querida!
- Como queiras, querida!
Ouvia-se o Costa ou só o Costa se ouvia, como que a desfolhar um malmequer, coxo, desdentado, defeituoso, e mais não se ouvia.
Assim, dia após dia, demorou dois anos, tantos dias, o Costa desapareceu, sem qualquer magia e exactamente como ela, a querida, explicou desde o princípio, como se não mais tivesse feito, a querida, do que dar estrito cumprimento aos procedimentos de um manual de instruções, o Costa um microondas, exaustor, um forno.
A querida explicou.
Não pode dizer que não explicou.
Explicou: - Tu não tens querer, tu só me queres a mim.
Enquanto ele sem prestar qualquer atenção à explicação, mau aluno, mau resultado, lhe dava mais um beijo.
Houve um tempo em que não via, nem ouvia, apenas queria, a querida, de bem-querer.
25 anos depois.
Não era preciso esperar 25 anos.
Esperou 25 anos.
25 anos depois percebe, conclui, admite, que ela estava carregada de razão, como em anos de fartura as macieiras, os galhos sobre estacas, sujeitos ao insustentável peso dos frutos.
Foi ela quem lhe fez três filhos, os dois rapazes mais velhos e finalmente a desejada menina, respectivamente o nome do avô materno, do avô paterno e Sofia porque o encontrou bonito e para incomodar uma prima que foi mãe em sincronia.
Foi ela quem decidiu tudo o resto, conclui sem vontade de explicar o que é tudo o resto.
O resto é o trabalho, a cidade, o bairro, a casa, as flores do jardim, camomilas cujo cheiro abafado não suporta, o sufoca, e que para mais lhe arreliam a sinusite, o tapete da entrada, um tapete bem-falante que calorosamente diz BEM-VINDO em Times New Roman Bold.
Já deu consigo a falar com o tapete.
Já mandou várias vezes o tapete fazer companhia ao Ramalho, e nos seus pensamentos a palavra RAMALHO também em Times New Roman Bold, o vão consolo de responder na mesma moeda, a tristeza amarga de não conseguir insultar o tapete com todas as letras de uma outra palavra.
Depois, cabisbaixo, vitória do tapete, entra em casa.
Não se sente bem-vindo.
Inventa horas extraordinárias no escritório.
Guarda romances gordos e russos nas gaveta da secretária.
É sempre o último a sair.
É posto fora do local trabalho.
O segurança a cumprir o protocolo, a circular pelas instalações vazias, quase vazias, a avisar que vão apagar a luz.
Começou a fumar.
O segurança fuma.
Fuma dois cigarros por dia com o segurança, para justificar a sua companhia, a sua presença fora de horas.
Fuma um atrás do outro. Sabe como é, a minha mulher não me deixa fumar em casa, diz que o cheiro se entranha nos cortinados.
O segurança não sabe como é, vive sozinho e não tem cortinados.
Não foi fácil conquistar a simpatia do segurança.
Sabe que ainda não conquistou a simpatia da segurança.
Depois, em casa, come o jantar frio, porém em sossego.
Come o jantar na companhia de lebres eternamente em fuga de inevitáveis galgos nos azulejos da cozinha, sente-se uma lebre, uma lebre sem fuga possível, lebre guisada, açorda de lebre, enquanto vai mastigando pensamentos fáceis de prognosticar, se fosse caçador, a tiro de espingarda, tem uma espingarda, o avô paterno deixou-lhe uma Beretta, tem uma espingarda mas não tem coragem, se tivesse, rebentava com os azulejos da cozinha, depois com os da casa de banho, depois com tudo o resto.
O resto são os cortinados, os electrodomésticos, as mobílias, o grau de dureza do colchão onde dorme, as camisas nas gavetas da cómoda, os fatos no guarda-fatos, a pasta dos dentes, o perfume, o champô, o after shave, o cão, o nome do cão e a taxativa impossibilidade de ter um gato, a cor das gravatas, a cor das peúgas, e por que regra divina as peúgas têm de condizer com a gravata, o uso de boxers, que saudades do aconchego de um par de cuecas, a roupa a vestir no dia seguinte, a cada dia seguinte, o pequeno-almoço, já não suporta papas de aveia, o jantar, o canal da TV, o seu lugar no sofá, o lugar do cão, um cão que percebendo que os dois na mesma condição subordinada, só lhe falta falar, como o tapete, passa o tempo a mostrar-lhe os dentes, o cínico!
Afinal acabou por explicar.
Precisava de desabafar, conversar não apenas consigo ou com o segurança ao qual se impinge todos os dias por vinte minutos e nem sequer são adeptos do mesmo clube de futebol, beber com companhia uma cerveja no alpendre, só é pena esta noite fria de chuva picada a vento em vez de uma noite de quente de Verão.
 
Raquel Serejo Martins





Dinheiro não é felicidade


Foto frase do dia: Lispector, sempre


Apanhei-te a ler... dia 32

F. Scott Fitzgerald
 
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