terça-feira, 31 de dezembro de 2013

ALA ...que é poesia II



O poema tem o meu nome e não é para mim. Pena, porque é lindo.
Cruzei-me talvez duas ou três vezes com António Lobo Antunes, creio até que sempre nas feiras do livro. Olhei-o, troquei talvez duas meias palavras. Sei que uma vez o vi sorrir. Nunca o entrevistei, creio que não calhou. Talvez um dia. Talvez não.

É assim que continua a aventura de juntar aqui todos os poemas de ALA, que andam dispersos por aí, em discos. Principalmente em discos. Como este "Ana", a que Vitorino dá música no disco "Eu Que Me Comovo Por Tudo e Por Nada". É dedicado a Jorge de Sena. Porquê não sei. Sabem? Afinal, a mulher da vida de Sena chamava-se Mécia.

É com ele que atravessamos a noite longa entre 2013 e 2014. Que a vossa travessia seja doce. Encontramos-nos amanhã, do lado de lá. 

Ana Almeida

 
Ana (dedicado a Jorge de Sena)

O mar não é tão fundo que me tire a vida
Nem há tão larga rua que me leve a morte
Sabe-me a boca ao sal da despedida
Meu lenço de gaivota ao vento norte
Meus lábios de água, meu limão de amor
Meu corpo de pinhal à ventania
Meu cedro à lua, minha acácia em flor
Minha laranja a arder na noite fria


António Lobo Antunes

Para verem o video sigam o link
http://www.youtube.com/watch?v=Vy3tktctOPQ

Bom ano, amigos

JORGE LUIS BORGES FIM DE ANO
Nem o pormenor simbólico de substituir um dois por um três nem essa vã metáfora que convoca um lapso que morre e outro que surge, nem o cumprimento de um processo astronómico atordoam ou minam o planalto desta noite e obrigam-nos a esperar as doze irreparáveis badaladas, A causa verdadeira é a suspeita geral e confusa do enigma do Tempo; é o assombro em face do milagre de que apesar de todos os acasos, de que apesar de sermos as gotas do rio de Heraclito, perdure em nós alguma coisa: imóvel, alguma coisa que não encontrou o que procurava.

*Obrigado Ana Ribeiro

Ciclo Pessoa: «Dorme Sobre o Meu Seio»

Caricatura: Hugo Enio Braz

Dorme Sobre o Meu Seio

Dorme sobre o meu seio,
Sonhando de sonhar...
No teu olhar eu leio
Um lúbrico vagar.
Dorme no sonho de existir
E na ilusão de amar.

Tudo é nada, e tudo
Um sonho finge ser.
O ‘spaço negro é mudo.
Dorme, e, ao adormecer,
Saibas do coração sorrir
Sorrisos de esquecer.

Dorme sobre o meu seio,
Sem mágoa nem amor...

No teu olhar eu leio
O íntimo torpor
De quem conhece o nada-ser
De vida e gozo e dor.


*Fernando Pessoa, in Cancioneiro

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Ciclo Pessoa: «Grandes Mistérios Habitam»


Grandes Mistérios Habitam

Grandes mistérios habitam
O limiar do meu ser,
O limiar onde hesitam
Grandes pássaros que fitam
Meu transpor tardo de os ver.

São aves cheias de abismo,
Como nos sonhos as há.
Hesito se sondo e cismo,
E à minha alma é cataclismo
O limiar onde está.

Então desperto do sonho
E sou alegre da luz,
Inda que em dia tristonho;
Porque o limiar é medonho
E todo passo é uma cruz.


*Fernando Pessoa, in Cancioneiro

ALA... que é poesia I

Não é que eu ame António Lobo Antunes acima de qualquer outro. Não é isso. Longe disso. É apenas que o redescubro a cada esquina, ora numa crónica que podia ser poema, ora num poema que alguém cantou. Sim, poesia. 

Que ALA também é poesia - embora nem um livro para o provar.

Há dias em que diria que ele é apenas poesia. Dura, cheia de esquinas e calçadas íngremes, horas de chuva e uma nesga de sol, folhas caídas de um plátano longevo e um cardo.

Decidi juntar aqui - sob o lema ALA ... que é poesia - os poemas que andam espalhados e cantados por aí por nomes como Vitorino, Carlos do Carmo e Cristina Branco.. De alguns só encontrei letras e nada de vídeos. Uma aventura de recolha que só 2014 saberá onde me vai levar. Um bom projecto para começar o novo ano, não acham?

Ana Almeida

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Para começar, o Bolero do Coronel Sensível Que Fez Amor em Monsanto.
Vitorino gravou-o em 1992 no disco "Eu Que Me Comovo Por Tudo e Por Nada". Mas destaco aqui uma versão mais recente, uma cover da banda A Naifa, surgida agora em Novembro último, no disco "As Canções d'A Naifa". Disponível fica ainda uma outra versão, pela banda Boitezuleika.

Bolero do Coronel Sensível Que Fez Amor em Monsanto

"Eu que me comovo
Por tudo e por nada
Deixei-te parada
Na berma da estrada
Usei o teu corpo
Paguei o teu preço
Esqueci o teu nome
Limpei-me com o lenço
Olhei-te a cintura
De pé no alcatrão
Levantei-te as saias
Deitei-te no banco
Num bosque de faias
De mala na mão
Nem sequer falaste
Nem sequer beijaste
Nem sequer gemeste,
Mordeste, abraçaste
Quinhentos escudos
Foi o que disseste
Tinhas quinze anos
Dezasseis, dezassete
Cheiravas a mato
À sopa dos pobres
A infância sem quarto
A suor, a chiclete
Saíste do carro
Alisando a blusa
Espiei da janela
Rosto de aguarela
Coxa em semifusa
Soltei o travão
Voltei para casa
De chaves na mão
Sobrancelha em asa
Disse: fiz serão
Ao filho e à mulher
Repeti a fruta
Acabei a ceia
Larguei o talher
Estendi-me na cama
De ouvido à escuta
E perna cruzada
Que de olhos em chama
Só tinha na ideia
Teu corpo parado
Na berma da estrada
Eu que me comovo
Por tudo e por nada
"

António Lobo Antunes



Para ver este video siga o link http://www.youtube.com/watch?v=fnkLU5f9cSU



Missa Erudita - Marcos Foz

Dita a missa o padre em latim
os abecedarianos acenam que sim,
contentes por não assimilarem enfim,
uma única afirmação da oração.

Ouvidos que não escutam
são mais amigos da canção
dos que entendem e sofrem perigo
que na sua fé haja circuncisão.

Engarrafam-se palavras vis,
atiram-se às águas sagradas de superior sapiência
purificadora e dotada de paciência
característica singular dos deuses.

Exércitos atravessam rios a pé
com as águas acima do joelho,
sem calma aparente ou ponderado conselho
atiram no fedelho e seu evangelho,
que sangra.

Na guerra de nada vale música ou poesia
a memória recalca a heresia,
só sabem os dedos o sabor monstruoso
de premir e suprimir
a condição do ser,
independentemente do que se era.

O padre que mude de idioma
para aquando do anúncio de infortúnio,
haja menos passeios matinais.

*Marcos Foz


a-ver-livros: som, silêncio e Meghan Stratman

Há um pássaro 
que estala 
na manhã fria
não sabe outro cantar
há um homem
que espera a morte
em silêncio
dentro de um carro parado
falta-lhe a voz
para apressar a ida
para junto dos que ama

Ana Almeida

* para saber mais sobre a ilustradora americana Meghan Stratman
siga o link http://bunnypirates.carbonmade.com/

domingo, 29 de dezembro de 2013

Visita ao mundo do Nobel da literatura, Churchill

Como sabem, Winston Churchill ganhou o prémio Nobel da literatura, corria o ano de 1953.

Londres tem vários museus de guerra e o Churchill War Rooms foi alvo de uma das minhas visitas. Além das salas onde o governo reunia durante a II Grande Guerra, os quartos dos ministros, as salas de comunicação e estratégia... o museu dedica o seu espaço à figura de Churchill.

Podemos ver algumas das suas pinturas, retratos de quando era criança, vários discursos e viagens, os principais marcos históricos do líder, entre tantos outros aspectos. E, claro está, uma secção com os livros que produziu, com destaque óbvio para as suas Memórias da II Guerra Mundial.

As fotografias não são as melhores, mas abro-vos o apetite com os livros e as frases que me ficaram. Espero que gostem!








Rodrigo Ferrão 

Então queres ser um escritor? - Charles Bukowski

se não sai de ti a explodir
apesar de tudo,
não o faças.
a menos que saia sem perguntar do teu
coração, da tua cabeça, da tua boca
das tuas entranhas,
não o faças.
se tens que estar horas sentado
a olhar para um ecrã de computador
ou curvado sobre a tua
máquina de escrever
procurando as palavras,
não o faças.
se o fazes por dinheiro ou
fama,
não o faças.
se o fazes para teres
mulheres na tua cama,
não o faças.
se tens que te sentar e
reescrever uma e outra vez,
não o faças.
se dá trabalho só pensar em fazê-lo,
não o faças.
se tentas escrever como outros escreveram,
não o faças.

se tens que esperar para que saia de ti
a gritar,
então espera pacientemente.
se nunca sair de ti a gritar,
faz outra coisa.

se tens que o ler primeiro à tua mulher
ou namorada ou namorado
ou pais ou a quem quer que seja,
não estás preparado.

não sejas como muitos escritores,
não sejas como milhares de
pessoas que se consideram escritores,
não sejas chato nem aborrecido e
pedante, não te consumas com auto-
— devoção.
as bibliotecas de todo o mundo têm
bocejado até
adormecer
com os da tua espécie.
não sejas mais um.
não o faças.
a menos que saia da
tua alma como um míssil,
a menos que o estar parado
te leve à loucura ou
ao suicídio ou homicídio,
não o faças.
a menos que o sol dentro de ti
te queime as tripas,
não o faças.

quando chegar mesmo a altura,
e se foste escolhido,
vai acontecer
por si só e continuará a acontecer
até que tu morras ou morra em ti.

não há outra alternativa.

e nunca houve.


(tradução por Manuel A. Domingos)

«A Rapariga que roubava Livros» - as primeiras palavras


MORTE E CHOCOLATE

Primeiro as cores.
Depois os humanos.
É geralmente assim que vejo as coisas.
Ou, pelo menos, tento.

EIS UM PEQUENO FACTO
Vocês vão morrer.

Para falar francamente, estou a tentar mostrar-me prazenteira acerca deste tópico, embora a maioria das pessoas sinta dificuldade em me acreditar, por muito que eu proteste. Por favor, confiem em mim. Eu posso definitivamente ser prazenteira. Posso ser amável. Agradável. Afável. E isso só nos A's. Só não me peçam para ser simpática. Simpatia não tem nada a ver comigo.

REACÇÃO AO FACTO 
ACIMA MENCIONADO
Isso preocupa-os?
Peço-lhes - não tenham medo.
Sou seguramente justa.

*Consulte o livro no site da editorial Presença: A Rapariga que Roubava Livros

sábado, 28 de dezembro de 2013

Cronicando pela Ásia... último dia no rio e chegada a Luang Prabang

Atravessando o Mekong,
06 de Maio 2009


De manhã cedo a aldeia acordou carregada de estrangeiros. Chegou a hora de partir para mais um dia nas águas do rio Mekong. Chegaremos a Luang Prabang, quando o sol se pôr. Até lá, ocupo o tempo com os livros que carrego e deixo o corpo adormecer de quando em quando. A humidade é elevada, o calor tórrido. O pouco dinheiro que tenho foi investido na compra de água. Esse meio litro teria que ser suficiente até à minha chegada. E comida... bem, segui apenas com o pequeno almoço.


Continuo espantado com o serviço de recolha de passageiros. Não há paragens. As pessoas aparecem na margem do rio e acenam. Ficam curiosas ao ver-nos, há um fascínio enorme por nós. Essas imagens viajam comigo ao longo de toda a aventura. Por vezes esqueço-me que represento sustento... é normal que não me tirem a vista de cima.


Depois de uma jornada de sono, acordo surpreendido por uma série de barcos. As crianças saltam de um lado para o outro e ajudam os pais a trocar mercadorias ali em pleno rio. Pois bem, os barcos são lojas de comércio e faz-se ali negócio.



Fascina-me também a presença de um barco casa. Por momentos imagino a vida assim. Para sempre. A minha casa é o barco e a viagem não tem destino. Da minha janela não vejo a mesma paisagem. Terei sempre um amanhecer diferente. Alegro-me com a possibilidade da vida poder ser assim. Mas não sei se teria coragem.


Do lado direito do rio surgem umas escadas que conduzem até a um templo no interior de uma gruta. Como teria gostado de parar e vê-lo. Mas aparentemente o barco seguia a todo o vapor e o bilhete não incluía mais paragens. Ficou uma foto das escadas e de alguns crentes que vieram espreitar os barcos.


O pôr do sol anuncia a chegada ao destino. Vejo-me a chegar a uma cidade milenar, as árvores carregadas de flores laranja, os barcos cuidadosamente alinhados. Espera-me a cidade dos templos mais antigos da região, património mundial da humanidade.

Encontro facilmente um sítio onde dormir, bem bonito e confortável. Pouso as tralhas, tomo banho e saio para jantar numa rua de restaurantes com ar colonial francês. Percebo que aqui as coisas são um pouco mais caras que na Tailândia. Possível sinal de isolamento, possível sinal de sofrimento.



A cidade é linda! E amanhã será dia para grandes explorações. Recolho ao quarto, feliz por mais uma jornada.

Rodrigo Ferrão 

Snobidando: Ana Paula Inácio

Ana Paula Inácio

Acompanhe a página da Livraria Snob no Facebook. Abre brevemente, em Guimarães. Pode lá encontrar este e muitos outros textos.

Quem sente o mesmo?

Encontrado na página Improbables Bibliothèques, 
Improbables Librairies. A não perder por nada! 

Tiago na toca e os Poetas: Carminho, Tiago Bettencourt e Florbela Espanca


X

Eu queria mais altas as estrelas,
Mais largo o espaço, o Sol mais criador,
Mais refulgente a Lua, o mar maior,
Mais cavadas as ondas e mais belas;

Mais amplas, mais rasgadas as janelas
Das almas, mais rosais a abrir em flor,
Mais montanhas, mais asas de condor,
Mais sangue sobre a cruz das caravelas!

E abrir os braços e viver a vida:
- Quanto mais funda e lúgubre a descida,
Mais alta é a ladeira que não cansa!

E, acabada a tarefa... em paz, contente,
Um dia adormecer, serenamente,
Como dorme no berço uma criança!

*Florbela Espanca


MANIFESTO:

[...são os poetas que me fizeram começar a escrever. Eram no fundo os livros que tinha lá em casa e versões de fados que oiço desde que comecei a ouvir fado.Fui lendo o que tinha lá por casa. Fui roubar uns livros à biblioteca do meu pai. E depois fui marcando nos livros os vários poemas que gostava até ficarem dez. Depois mais duas ou três versões...] (Tiago Bettencourt).
NOTA: As receitas da venda do disco revertem para a associação solidária "Ajuda-me a Ajudar", por tal,se gostam,comprem o disco...
(publico o disco/livro na integra,com foto da poetisa Florbela Espanca)

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Fim-de-tarde do Marcos

O sentimento de pertença é
uma anedota. Quem pensa que tem
é motivo de chacota.
Todo o sentimento humano é
como homem de chapéu de palha;
coração ao Sol, cérebro em malha.

*Marcos Foz

Autorretrato com Chapéu de Palha
Vincent van Gogh

Eu poético: «Memória»

Memória

de ti recordo o calor do abraço
o beijo de boa noite
a mentira do pai Natal
ou da fada dos dentes.

lembro o que disseste no meu primeiro dia de aulas
e no último;
no meu primeiro amor
e no segundo. e no terceiro…
e nos outros que tive.

reparo agora que tinhas razão:
a vida foi feita para recordar
foi feita para celebrar
foi feita para chorar.

porque para sentir alegria,
carregamos tristeza.

e porque a saudade
só existe para quem tem memória.

Rodrigo Ferrão

Foto: Rodrigo Ferrão

a-ver-livros: suspensão e Marina Jijina

pára tudo
suspende os dias
o curso dos rios
trava as marés
no seu vai-vem
detém a respiração 
dos plátanos
interrompe os sonhos
sustém o passo estugado
do tempo

há um amor e uma tragédia
à espera na esquina
e quero saborear 
a expectativa

Ana Almeida

* para saber mais sobre a pintora russa Marina Jijina
siga o link www.marinajijina.com

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

"No Caminho, com Maiakóvski" por Eduardo Alves da Costa


Eis o fanzine Flanzine

Eis o fanzine Flanzine, um “hino ao Facebook”

O pudim Flanzine nasceu no Facebook e por lá continua. Para ver de três em três meses
Texto de Amanda Ribeiro • 09/10/2013 - 15:03

A Flanzine, diz quem a fez, tinha “tudo para correr mal”. Contra ventos e marés, contra “as leis de Murphy e Keynes”, a revista nasceu, da Internet para o papel, para não se “perder num enorme universo de lixo virtual”. Um “percurso inverso” que, lá no fundo, significa uma coisa: “Um hino ao Facebook.”

A começar pela parentalidade, como nos conta João Pedro Azul (na foto), um dos encarregados de educação, a partilhar a custódia com Luís Olival, autêntico “rei do Facebook”, natural de Mangualde. Os dois conheceram-se via Zuckerberg há uns anos — e assim se têm mantido. É que a Flanzine materializou-se sem os ideólogos alguma vez se terem conhecido pessoalmente. A mesma receita para muitos dos colaboradores — o primeiro número conta com nomes como Álvaro Silveira, Cláudia Lucas Chéu, Rogério Nuno Costa, Vicente Alves do Ó, Vítor Rua, Susana Moreira Marques e Raquel Ribeiro (jornalistas/colaboradoras do PÚBLICO).

Com formação em teatro, João passa hoje grande parte da semana atrás de uma banca que vende queijos e outras iguarias no Mercado do Bom Sucesso, no Porto. Assume-se como um “facebookiano” convicto. Vê a rede social como uma “ferramenta criativa”, uma “montra” para as suas ideias. E tem encontrado outros como ele. Foi ao observar esta rede de contactos que decidiu lançar um desafio a Luís Olival: “E se entre os nossos amigos do Facebook criássemos um fanzine?”

Assim foi. Em Setembro, graças ao reembolso de IRS de João Pedro, o fanzine Flanzine (não se nota que o passatempo preferido dele é “brincar com as palavras”, pois não?) ganhou corpo. “Raramente utilizámos o e-mail. Houve até quem nos entregasse os trabalhos pelo Facebook.” Os textos e as ilustrações versam sobre um tema: Mala. Uma resposta ao “incentivo à emigração por parte do primeiro-ministro e da corja”. Em Dezembro, sai a segunda com um “tema natalício”: o Medo. Não é preciso dizer que o humor negro é ma marca de água. Entram novos colaboradores (como Valério Romão e Filipe Homem Fonseca), mantêm-se outros (Vítor Rua vai ser publicado em fascículos porque João não indicou, a princípio, uma limitação de caracteres), promete-se mais diversidade, por exemplo, com a publicação de fotografias. Toda a gente pode tentar participar — a selecção está a cargo da gerência.

Entretanto, o pudim vai correndo o país. Foi apresentada no Circular em Vila do Conde, terra-natal de João Pedro, onde alguns dos colaboradores se conheceram. Idem, idem, aspas, aspas para Lisboa, onde a revista foi apresentada na passada sexta-feira na livraria XYZ. Para já, não se registou qualquer “aparição” de Luís Olival, qual D. Sebastião de Mangualde. Noutro dia, a Flanzine foi parar às mãos de Vasca Graça Moura. João Pedro avistou-o ao longe e correu no seu encalço. “Ele agradeceu e apresentou-me a pessoa que estava ao lado: o professor Nuno Júdice.” Feedback? Não houve. “Se calhar, não tem Facebook...”

*Jornal Público: http://p3.publico.pt/cultura/livros/9508/eis-o-fanzine-flanzine-um-hino-ao-facebook


O fanzine doce

Mas ao contrário dos fanzines em papel, onde as diferentes ideias chocavam e deflagravam nas suas capas, na web as ideias ficam muitas vezes sós e esquecidas, ou então vão sendo lentamente empurradas para o fundo da página, do ecrã, e da consciência
Texto de Jorge Palinhos • 23/12/2013 - 10:36Share on facebooShare on emMore Sharing 

Diz que é o número dois de Dezembro de 2013, a capa do exemplar do "Flan Zine" que tenho nas mãos, e que o seu tema é o medo. É uma publicação pequena, em formato A5, de uma impressão cuidada num papel de qualidade, com um design sóbrio, quase todo a preto e branco, exceto nas páginas centrais, cujas fotos e ilustrações rebentam em cor. Na ficha técnica diz que é uma "Receita de João Pedro Azul e Luís Olival", com edição de João Pedro Azul, e a sua lista de colaboradores e temas é eclética, com nomes conhecidos e desconhecidos da ficção, da poesia, do teatro, do ensaio, da ilustração e da fotografia.

Talvez não seja totalmente diferente das páginas literárias e de arte que povoam hoje a web, mas a impressão, o formato, a ironia, levaram-me para a memórias dos fanzines dos anos 70 e 80, que emergiram no fluxo das novas tecnologias de impressão, mais baratas e acessíveis, que faziam crer que qualquer um podia espalhar as suas ideias ao mundo.

E durante algum tempo tentou-se. Para todas as áreas — na música alternativa, na BD, no esoterismo, na poesia, na filosofia, na política, na ficção de género — havia gente a escrever e a publicar notícias, ideias, boatos e delírios, em fanzines que se empilhavam em bares e lojas para comprar e levar.

Eram publicações mal impressas, mal paginadas, com gralhas e ilustrações borratadas, fixadas em papel mau, mas que fervilhavam de entusiasmo e de urgência. E os seus autores viviam para as fazer, para colaborar nelas ou para as trocar. Eram espaços de liberdade e partilha. Depois veio a internet e surgiram os blogues, os sítios e as webzines que as substituíram. Eram mais fáceis, mais baratos e supostamente mais universais. Mas, num meio virtual, tornou-se mais difícil acreditar na real existência e compromisso que implica um fanzine em papel como o "Flan Zine".

Um dia, no meio da febre dos fanzines, um amigo contou-me que tinha sonhado que todas as pessoas do mundo estavam na rua a trocar papéis — fanzines — entre si. Esse sonho tornou-se hoje realidade no Twitter, no Facebook e noutras redes sociais, onde cada pessoa é um distribuidor ou redistribuidor de informações e ideias. Mas ao contrário dos fanzines em papel, onde as diferentes ideias chocavam e deflagravam nas suas capas, na web as ideias ficam muitas vezes sós e esquecidas, ou então vão sendo lentamente empurradas para o fundo da página, do ecrã, e da consciência.

*Acompanhe a página da Flanzine no Facebook. 

Poema de Natal de Emílio Miranda

Prece

Aproxima-se o dia
Em que sentados à mesa lembraremos a nossa fartura
Tanta fome dos outros devia calar-nos tanto apetite

Apenas uma ceia de palavras... mesmo que ditas para dentro...

(sobretudo ditas para dentro)

Deveria ser suficiente para (nos) saciar todas as fomes.

Emílio Miranda 

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

O Natal de David

Ladainha dos Póstumos Natais


Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito


David Mourão-Ferreira

Poema de Natal por Vinicius de Moraes

"Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente."