O Flâneur já conhecido por todos nós revela-nos, agora, alguns dos seus apontamentos feitos nas suas viagens pelo mundo.
Começamos por este excerto de os "Cadernos de Nicosia".
Música e o Infinito, verdades angustiantes e redentoras.
Nada me obriga a escrever ou a sentir. Nem
a vida, paixões amorosas, sonhos, desejos, segredos ardentes. Nem mesmo Deus.
Que vale, para mim, Wagner e esta sua
composição? Não sei. Um terno apego, com sabores de lareira e chocolate quente,
talvez croissants e uma manhã de céu nublado em Paris. Talvez uma sala de
mogno, novamente a lareira, as canas de pesca a um canto, uma ninfa coberta por um cobertor de peles quentes e a minha falta de desejo de humanidade. Talvez.
Que poder embriagante é este que a música tem sobre mim? Como resistir? Melhor,
como poder descrever tal estado? Como transmitir em palavras que não sejam
ténues e banais todas as cores e sensações do mundo? Uma manhã de Natal azul e
familiar, um lume de sorrisos e um embalo de vozes conhecidas. Talvez os pais
com o seu menino no colo. Talvez eu próprio e uma mulher, ou musa, acariciando
um filho que nunca pensei ter, mesmo quando a música me leva às florestas do
Danúbio, às encostas da Baviera e um sol que promete ser para sempre. Quem és
tu, Richard Wagner? Quem te deu tal poder, autoridade, para hipnotizar os
sentidos, sempre os sentidos, e libertar este divagar racional e áspero?
Quem poderia ser a minha Cosima, o nosso
pequeno Fidi? E porque escrevo eu, para ti, leitor que irás, um dia, bem mais
tarde, ler, ou não, estas argonautas impressões de um homem de meia idade e com
vontade de chorar por razão nenhuma?
Falho os meus propósitos, e tudo me
parece fazer escrever e sentir, acreditando na vida, nas paixões ardentes, nos
sonhos e segredos íntimos que nunca supus meus. Que adianta fugir, sempre e
sempre, a este hábito vagabundo de nada querer e acabar por abraçar o Absoluto?
Wagner, Wagner, Wagner! Talvez uns tons
de arabesco, ainda que subtis, para me refrescarem a memória nesta tarde de
meditabundo calor. Groselha e talvez água com gás e menta. Ou então soda, e
limão, muito limão!
Quem
precisa de uma manhã de Natal para escrever sobre o mundo e as suas paranoias?
Tudo é doentio, e, ao mesmo tempo, deslumbrante, como se tudo fosse uma
primeira vez. Homem, Deus, Mundo, Arte. É sempre um alfa, ainda que despido do
avesso. Sim, despido. Nu, como todos somos por dentro, farrapos de um universo
que nos foi entregue sem o termos pedido.
Pergunto-me
se faz sentido algum todo este acumular de palavras ao som de Wagner. Como uma
energia invisível. Cada nota a ecoar para sempre. Música a nascer. Para sempre.
O Absoluto é ensurdecedor, encantador, esmagador, eterno. Para sempre.
Fecho
o caderno, acabo de beber o refresco. Saio do hotel com o desejo do
Mediterrâneo – e Minos tão perto – com o desejo de mar antigo a cheirar a
hortelã e talvez a azeitonas pretas. Coloco o panamá. Faz calor. Nicosia é um
estado de alma. Wagner continua a fazer sentido. Só o silêncio serve para
descrever o Belo. O silêncio e o olhar. Talvez a escuridão. Wagner continua, e
continuará em mim, e em ti, e nestas palavras, enquanto houver leitores e quem
escute com os olhos e o silêncio de dentro.
Pensei
ser capaz de acreditar na humanidade. Talvez. Mas, neste momento, quero o mar,
ainda que seja como mera impressão, e o desejo de viver para sempre nestas
palavras invisíveis que abraçam a pauta, os violinos, Cosima e Fidi. Já os
vejo, ao final da linha, de gorro e cachecol. (o final será Nicosia ou o mundo
e nada me move). Neva e faz frio dentro de mim, enquanto o calor aperta, aqui,
em Nicosia.