sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

A Nossa Vitória de cada Dia, por Clarice Lispector

Obrigado Clarice. Por pensamentos assim:

"Olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia. Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceite o que não se entende porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro. Não temos nenhuma alegria que não tenha sido catalogada. Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos.

Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer a sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar a nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa. Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado uma gaffe.


Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e ingénuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer «pelo menos não fui tolo» e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia."

in 'Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres'

Correntes d’Escritas 2012: Primeira Mesa

Após ter sido condecorado pelo Secretário de Estado da Cultura Francisco José Viegas, Rubem Fonseca declarou-se filho e neto de portugueses, “e com muito orgulho”, afirmando peremptoriamente: “amo a língua portuguesa”, acabando a elogiar o poeta maior, Luís de Camões.



Eduardo Lourenço, a quem a Revista Correntes D’Escrita 11 é dedicada, ressaltou, de Camões, a permanente consciência de dizer "o que precisamos para não sucumbir à tentação do pessimismo que invade páginas" num velho país onde "os tempos não são famosos" e há "grande desesperança e dúvida".

A 1ª mesa com o tema “A escrita é um risco total” foi composta por Rubem Fonseca; Ana Paula Tavares, Hélia Correia, Eduardo Lourenço e Almeida Faria e teve como moderador José Carlos de Vasconcelos, director do "Jornal de Letras".



Para Eduardo Lourenço, que é o autor da frase que serve de tema, recua aos primórdios da escrita, do Egipto à Mesopotâmia, aferindo ao escritor a imagem do “roubador do fogo” com a vida é o risco maior pois todos escrevemos as páginas da nossa vida, mas o escritor embarca numa aventura e arrisca-se em cada livro, porque escrever não é mais do que cumprir a sua vida, assim a escrita pode ser uma "cidade cheia de luzes ou um cemitério de sombras".



Para Almeida Faria, que começa por recordar o momento em que encontra numa manhã de nevoeiro sebastiânico, em plena 5ª Avenida, Rubem Fonseca e João Ubaldo Ribeiro, a realidade supera a ficção. Contudo, e nas suas próprias palavras, revela que o conflito entre a realidade e a ficção é inevitável e acredita que as personagens que cria são mais duradouras que a nossa breve passagem pelo mundo e isso é que faz valer a pena a escrita.



Ana Paula Tavares desde sempre contrariou o seu destino ou aquilo que parecia ser o destino de uma mulher nascida num recanto rural de Angola. Para Ana Paula escrever foi de facto um risco e valeu-lhe inicialmente o epíteto de pornógrafa, pois os seus primeiros poemas publicados geraram na Angola de então, pouco preparada para ler uma mulher que ninguém conhecia e que falava de amor, das paixões e do corpo com desassombro inaudito.



Hélia Correia recua às raízes, ao étimo da palavra risco que são quatro, não havendo certezas sobre qual será o étimo real. Do árabe ‘risc’, que remete para o pagamento dos soldados em função do seu desempenho, da sua “gente”, do grego, ‘risikon’ que remetia para os acasos da sorte, passando pelos étimos latinos ‘rixicare’, sugerindo o risco do combate, e ‘ressecare’ significando rasgar (por exemplo, quando os navios se ‘rasgavam’ nos rochedos), que a escritora associa à escrita.




Rubem Fonseca, que raramente dá entrevistas e tem fama de tímido, surpreendeu a plateia com a sua desenvoltura e nas suas palavras declarou-se "uma pessoa peripatética" e que não consegue falar parado. Começou a sua intervenção com um elogio à loucura, pois todos os escritores são intrinsecamente loucos e que a escrita é uma forma aceite de loucura, afirmando que todos, na mesa, são totalmente loucos, “ainda que cada um à sua maneira”. Mas não basta ser louco, diz Rubem Fonseca, “é preciso ser um pouco alfabetizado, não muito”. A inteligência não é um requisito para se ser escritor, aliás de Somerset Maugham, que afirmava conhecer dezenas de escritores e muito poucos escritores inteligentes. À loucura e à alfabetização, junta-se a motivação, “sem a qual não conseguimos sequer descascar uma banana”. A paciência é o requisito que se segue, pois tal como Flaubert é preciso encontrar a palavra certa, le mot juste, porque “não existem sinónimos; isso é conversa de gramáticos para boi dormir”. Finalmente, o último ingrediente - a imaginação. É fundamental que o escritor invente, a imaginação é elementar no acto da criação, sem ela não conseguimos sequer viver. Rubem Fonseca que começou esta mesa a elogiar Camões, termina-a a declamar o poema "Busque amor novas artes, novo engenho".

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Rubem Fonseca conquista o Prémio Correntes d'Escritas

Ana Paula Tavares, Patrícia Reis, Pedro Mexia, José António Gomes e Fernando Pinto do Amaral foram os júris do Prémio Correntes d'Escritas e decidiram atribui-lo a Rubem Fonseca pelo livro Bufo & Spallanzani.

Para quem nunca leu a obra, fica a sinopse:

«Quando chegou ao local do encontro, Guedes já sabia que Delfina não estava a dormir, como chegaram a supor as pessoas que a encontraram, devido à tranquilidade do seu rosto e à postura confortável do corpo no assento do carro. Guedes, porém, havia tomado conhecimento, ainda na delegacia, do ferimento letal oculto pela blusa de seda que Delfina vestia.»

Edição Sextante, 2011.


Aqui fica o comunicado do Júri:

"No dia 22 de Fevereiro de 2012, reunidos na sala Estela do Hotel Axis Vermar, na cidade da Póvoa de Varzim, o júri decidiu que o Prémio Literário Casino da Póvoa atribuído no âmbito da 13.ª edição do Encontro literário Correntes d'Escritas é entregue a Rubem Fonseca com o livro Bufo & Spallanzani.

Este júri atribui o Prémio a Rubem Fonseca pelo seu livro Bufo & Spallanzani, edição da Sextante, por ser uma obra reveladora da diversidade do humano, mostrando uma compreensão alargada das situações e problemas sociais.


Ao mesmo tempo, descobre-se na leitura deste livro um meta-discurso elaborado sobre a arte do romance.

Sublinhe-se também o rigor da escrita, bem como a qualidade da arquitectura romanesca.

Este livro desenvolve-se num ritmo narrativo muito sedutor na abordagem dos tipos humanos e no uso de uma linguagem coloquial."

Alguns livros sobre Zeca... No dia em que se assinalam 25 anos da sua morte

Hoje deixo apenas imagens de alguns livros. Em jeito de homenagem.

As Voltas de Um Andarilho, Assírio & Alvim


Todas as Canções, Assírio & Alvim


José Afonso - Um Olhar Fraterno, Caminho


Fotobiografias do Século XX - José Afonso, Temas e Debates


José Afonso. O Rosto da Utopia, Afrontamento


Textos e Canções, Relógio D` Água


Zeca Afonso e a Malta das Cantigas, Terramar

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

No Fantasporto também há letras... e do livro se fez filme


No Porto há Fantasporto. Já começou e, nas retrospectivas que fazem o já conhecido pré-Fantas, há uma homenagem a Bram Stocker, autor do Dracula, a propósito dos 100 anos da sua morte. O filme apresentado é "Dracula de Bram Stocker" de Francis Ford Coppola, com Gary Oldman, Winona Ryder, Anthony Hopkins e Keanu Reeves nos principais papéis.

Pelo cinema também passam os filmes e este é um dos casos. Dracula, a principal obra no desenvolvimento do mito literário moderno do vampiro. Editado por todo o mundo e em várias línguas, é considerado um clássico da literatura internacional. Um clássico de horror/ terror que apesar de bem acolhido pelo público, demorou longos anos até ver a luz da publicação. Como inspiração para vampiro escolheu Vlad Tepes III o Empalador, um nobre da Transilvânia conhecido pela sua cultura, inteligência, mas acima de tudo, crueldade. Stoker prolonga os feitos da personagem além morte, fazendo com que esta encarne num vampiro com estranhos poderes sobrenaturais.


 E é ao castelo de Vlad Tepes, nas montanhas do Cárpato, que Jonathan Harker se desloca a partir de Inglaterra, para exercer as suas funções de solicitador. Durante a viagem, depara-se com a estranha reacção dos aldeões quando lhes revela o seu destino, e o troço final transforma-se num misto de irrealidade e de pesadelo. Finalmente no castelo, em pouco tempo se vê prisioneiro do conde, assistindo a episódios macabros e conhecendo personagens sedutoras e maléficas. Psicologicamente afectado, escapa após diversas tentativas, regressando aos braços da sua doce e virtuosa noiva Mina, na terra natal. Do terror vivido duvida, pondo em causa a sua própria sanidade. Pouco tempo depois, um barco atraca em Inglaterra, no meio de uma tempestade – a bordo apenas sobreviveu um grande cão preto.

Entretanto, Mina visita uma amiga de longa data, Lucy, na proximidade do seu casamento, e verifica que esta torna ao sonambulismo típico de infância – vítima do vampiro, a jovem sucumbe à fraqueza e a caça ao Dracula inicia-se. No limiar entre a superstição e a ciência, entre o moderno e o tradicional, é visível o confronto; a passagem da crença para a tecnologia teve lugar na época Victoriana.

Por um lado, utilizam-se os últimos avanços da medicina no tratamento e na perseguição do vampiro, por outro, baseiam-se em crenças populares para definir as causas da doença e para amenizar os sintomas.
As figuras heróicas são essencialmente homens, dispostos a enfrentar os piores pesadelos, mas não só – um dos papéis principais é feminino – uma mulher frágil, pura mas corajosa que inspira e incentiva a perseverança masculina.

Trailer do filme "Dracula de Bram Stocker" de  Francis Ford Coppola

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Porque hoje é Carnaval... Poemas que dão música - Chico Buarque

Acho que é muito difícil dizer: "Cada paralelepípedo da velha cidade essa noite vai se arrepiar" numa música. Mas parece não constituir qualquer problema para Chico Buarque. É o Brasil a marcar ritmo...



Fiquem com a letra de Vai Passar, música de 1984, do álbum com o mesmo nome do compositor / músico / escritor.

"Vai passar nessa avenida um samba popular
Cada paralelepípedo da velha cidade essa noite vai se arrepiar
Ao lembrar que aqui passaram sambas imortais
Que aqui sangraram pelos nossos pés
Que aqui sambaram nossos ancestrais
Num tempo página infeliz da nossa história,
passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações
Dormia a nossa pátria mãe tão distraída
sem perceber que era subtraída
Em tenebrosas transacções
Seus filhos erravam cegos pelo continente,
levavam pedras feito penitentes
Erguendo estranhas catedrais
E um dia, afinal, tinham o direito a uma alegria fugaz
Uma ofegante epidemia que se chamava Carnaval,
o Carnaval, o Carnaval
Vai passar, palmas pra ala dos barões famintos
O bloco dos napoleões retintos
e os pigmeus do boulevard
Meu Deus, vem olhar, vem ver de perto uma cidade a cantar
A evolução da liberdade até o dia clarear
Ai que vida boa, ô lerê,
ai que vida boa, ô lará
O estandarte do sanatório geral vai passar
Ai que vida boa, ô lerê,
ai que vida boa, ô lará
O estandarte do sanatório geral... vai passar"

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Correntes d' Escritas 2012 - uma brisa que nos leva até à Póvoa de Varzim


Tudo começará com o anúncio dos vencedores dos quatro prémios literários, na Sessão de Abertura, dia 23, às 11h00, no Casino da Póvoa. 

Conhecer o escritor e a obra vencedora do Prémio Literário Casino da Póvoa, no valor de vinte mil euros, é um dos momentos mais esperados do Correntes d’Escritas. Da lista de mais de 200 livros, o júri, constituído por Ana Paula Tavares, Fernando Pinto do Amaral, José António Gomes, Patrícia Reis e Pedro Mexia, escolheu estes livros como finalistas: A Cidade de Ulisses, Teolinda Gersão, Sextante; As Luzes de Leonor, Maria Teresa Horta, Dom Quixote; Adoecer, Hélia Correia, Relógio D’Água; Bufo e Spallanzani, Rubem Fonseca, Sextante; Do Longe e do Perto - Quase Diário, Yvette Centeno, Sextante; Dublinesca, Enrique Vila-Matas, Teorema; O Homem que Gostava de Cães, Leonardo Padura, Porto Editora; Os Íntimos, Inês Pedrosa, Dom Quixote; Tiago Veiga – Uma Biografia, Mário Cláudio, Dom Quixote. Na Sessão de Abertura serão anunciados, também, o Prémio Correntes d’Escritas/Papelaria Locus, sobre o qual Luís Diamantino afirmou terem recebido “trabalhos de grande qualidade e houve dificuldade em escolher o vencedor”, o Prémio Correntes d’Escritas/Fundação Dr. Luís Rainha e o Prémio Conto Infantil Ilustrado Correntes d’Escritas/Porto Editora e lançada a Revista Correntes d’Escritas 11, totalmente dedicada a Eduardo Lourenço. Do Casino da Póvoa, o Encontro segue para o Auditório Municipal onde, às 15h00, D. Manuel Clemente irá proferir a Conferência de Abertura.

O ex-líbris do Correntes d’Escritas são as Mesas de Debate, quando centenas de pessoas, acomodadas nas cadeiras, nas escadas, no chão ou mesmo em pé, partilham emoções com os intervenientes.
Participar no Correntes d’Escritas é, também, estar a par das novidades literárias. Reconhecido como uma oportunidade para a apresentação de novidades no sector editorial e livreiro, o Encontro acolhe várias sessões de lançamentos de livros, quer na Casa da Juventude quer no Axis Vermar.

O programa oficial deste ano é o seguinte:

Dia 23, quinta-feira, 17h00 – Auditório Municipal
Mesa 1: «A Escrita é um risco total» – Eduardo Lourenço
Almeida Faria, Ana Paula Tavares, Eduardo Lourenço, Hélia Correia e Rubem Fonseca
Moderador: José Carlos de Vasconcelos

Dia 24, sexta-feira, 10h30 – Auditório Municipal
Mesa 2: «O fim da arte superior é libertar» – Fernando Pessoa
Alberto S. Santos, Fernando Pinto do Amaral, José Jorge Letria, Luís Quintais, Sofia Marrecas Ferreira e Care Santos
Moderador: João Gobern 

Dia 24, sexta-feira, 15h00 – Auditório Municipal
Mesa 3: A Poesia é o resultado de uma perfeita economia das palavras
Jaime Rocha, João Luís Barreto Guimarães, Manuel António Pina, Manuel Rui e Margarida Vale de Gato
Moderador: Ivo Machado  

Dia 24, sexta-feira, 17h30 – Auditório Municipal
Mesa 4: Toda a literatura é pura especulação
Eduardo Sacheri, Inês Pedrosa, João Bouza da Costa, Manuel Jorge Marmelo, Pedro Rosa Mendes e Rosa Montero
Moderador: Bia Corrêa do Lago

Dia 24, sexta-feira, 22h00 – Auditório Municipal
Mesa 5: A escrita é um investimento inesgotável no prazer
Afonso Cruz, Ana Luísa Amaral, Júlio Magalhães, Manuel Moya, Rui Zink e Valter Hugo Mãe
Moderador: Henrique Cayatte

Dia 25, sábado, 10h30 – Auditório Municipal
Mesa 6: Da crise da escrita não se pode fugir
Carmo Neto, João Pedro Marques, Miguel Real, Sandro William Junqueira, Valeria Luiselli e Salgado Maranhão
Moderador: Onésimo Teotónio Almeida

Dia 25, sábado, 16h00 – Auditório Municipal
Mesa 7: «As ideias são fundos que nunca darão juros nas mãos do talento» – Antoine Rivarol
Eugénio Lisboa, Gonçalo M. Tavares, Helena Vasconcelos, João de Melo, Luís Sepúlveda e Onésimo Teotónio Almeida
Moderador: Maria Flor Pedroso

Dia 28, terça-feira, 18h30, Instituto Cervantes, Lisboa
Mesa 8: Traços de crise enriquecem o texto literário
Afonso Cruz, Ana Paula Tavares, Care Santos, Manuel Moya e Valeria Luiselli
Moderador: Helena Vasconcelos

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Um sublinhado de Isaac Babel...

in Contos Escolhidos


Terminada a cerimónia nupcial, o rabino deixou-se cair num cadeirão. Depois saiu da sala e viu as mesas postas ao longo do pátio. Eram tantas que a sua cauda passava para lá do portão que dava para a Rua Gospitalnaia. Cobertas de veludo, as mesas serpenteavam pelo pátio como cobras exibindo a pança feita de coloridos retalhos, retalhos de veludo laranja e carmesim que cantavam com voz grave.
As salas tinham sido transformadas em cozinhas. Uma grossa chama, uma ébria e farfalhuda chama, batia nas portas enegrecidas pelo fumo. Nos seus raios fumegantes, assavam as faces das velhas e os queixos trémulos do mulherio de seios ensebados. O suor rosado como sangue, rosado como a espuma de um cão enraivecido escorria desse monte espesso que exalava um fedor adocicado a carne humana. Três cozinheiras, sem contar com as ajudantes, preparavam o jantar da boda, sob o comando da octogenária Reizl, marreca e minúscula, tradicional como o pergaminho da Tora.
Antes do banquete, apareceu à socapa no pátio um jovem desconhecido dos convidados. Procurou por Bênia Krik. Chamou Bênia Krik à parte e falou assim:
— Olhe, Rei! — disse ele. — Tenho de lhe dizer umas palavrinhas.
Foi a ti Hana da Rua Kostétskaia que me mandou…

Manuel António Pina... em dose dupla!

"Amor como em Casa", poema de Manuel António Pina, prémio Camões.

«Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.»


E do seu último livro 'Como se desenha uma casa' (Assírio & Alvim, 2011), fiquem com este "O regresso"

«Como quem, vindo de países distantes fora de
si, chega finalmente aonde sempre esteve
e encontra tudo no seu lugar,
o passado no passado, o presente no presente,
assim chega o viajante à tardia idade
em que se confundem ele e o caminho.
Entra então pela primeira vez na sua casa
e deita-se pela primeira vez na sua cama.
Para trás ficaram portos, ilhas, lembranças,
cidades, estações do ano.
E come agora por fim um pão primeiro
sem o sabor de palavras estrangeiras na boca.»