sábado, 1 de agosto de 2015

Dorme, meu amor, que o mundo já viu morrer mais - Maria do Rosário Pedreira

Dorme, meu amor, que o mundo já viu morrer mais
 
Dorme, meu amor, que o mundo já viu morrer mais
este dia e eu estou aqui, de guarda aos pesadelos.
Fecha os olhos agora e sossega — o pior já passou
há muito tempo; e o vento amaciou; e a minha mão
desvia os passos do medo. Dorme, meu amor —
a morte está deitada sob o lençol da terra onde nasceste
e pode levantar-se como um pássaro assim que
adormeceres. Mas nada temas: as suas asas de sombra
não hão-de derrubar-me — eu já morri muitas vezes
e é ainda da vida que tenho mais medo. Fecha os olhos
agora e sossega — a porta está trancada; e os fantasmas
da casa que o jardim devorou andam perdidos
nas brumas que lancei ao caminho. Por isso, dorme,
meu amor, larga a tristeza à porta do meu corpo e
nada temas: eu já ouvi o silêncio, já vi a escuridão, já
olhei a morte debruçada nos espelhos e estou aqui,
de guarda aos pesadelos — a noite é um poema
que conheço de cor e vou cantar-to até adormeceres.


*Maria do Rosário Pedreira, in «O Canto do Vento dos Ciprestes»
Gótica, 2001
 

Foto frase do dia: J. A. Langford


A felicidade... construi-la é a nossa obrigação

Encontrado na página For Reading Addicts

sexta-feira, 31 de julho de 2015

Fora de mim nada alcanço, dentro de mim nada me basta

Todos os dias me tenho reencontrado, isto como se estivesse andado perdido, perdido dentro do mundo, e a cada hora melhor entendo os diálogos que, mesmo em silêncio, tenho travado comigo mesmo. O problema é que para me aproximar do que sou tenho-me distanciado dos outros. Os outros são, no fundo, aquilo que não faço mas que tanto quero fazer

Cada vez de mais longe os vejo, estão tão distantes do que são mas cada vez mais próximos uns dos outros e por esse motivo vejo-me revestido por uma fina camada de inveja por não haver modo de me conseguir aproximar dessa proeza. Talvez se reencontrem uns aos outros, talvez assim lhes baste a existência porque talvez de outra forma não valha a pena existir. Vejo-os como poetas uns dos outros, escrevem-se e são escritos, partilham-se em cada momento e afinal de contas constroem-se sobre sorrisos e verdades que nada de autoritário têm, e assim são tão felizes

E eu que não tenho passado de um rapazito ignorante e de prosas cada vez mais pobres, limito-me a sobreviver dentro de um rochedo com escasso de céu onde não há meio de conseguir passar para o lado de fora. A verdade é que cada vez melhor conheço esse rochedo, já me é quase de leitura óbvia, já poucos segredos me guarda e por isso a minha vida não passa de uma obra prima de desassossegos de onde nada erra nem onde nada consegue, infelizmente, entrar

Fora de mim nada alcanço, dentro de mim nada me basta

A vida tem-me mostrado diversos lugares. A princípio entusiasmo-me com a aparência que apresentam mas afinal não mais são que uma dimensão utópica porque mal me vejo consciente do que sou concluo que não passam de uma sequência de passados que nunca chegaram e de futuros quase invisíveis

Estou condenado a existir desta malfadada forma, reencontrando-me todos os dias com aquilo que sou mas afastando-me todas as horas daquilo que nunca consegui ser

Gonçalo Naves

Gonçalo Viana de Sousa - O Flâneur das Sensações



Meu Querido José

Escrevo-lhe a horas tardias, quentes e abafadas. Coimbra está horrível, com este calor e este céu baixo, pesado e cinza. O calor nunca foi bom conselheiro. Nem para a guerra nem para a paz, quanto mais para a vida! Se pensar incomoda como andar à chuva imagine o preço a pagar por pensar debaixo destas temperaturas dantescas! E as noites que se queriam frescas, airosas, líquidas e musicais, tornaram-se baças, opacas, densas, espessas, desconfortáveis.
Só o facto de pensar nestas palavras e ter de escrevê-las cansa demasiado.
Sentir calor incomoda tanto como pensar. Escrever é suar para dentro, jovem das árias ebúrneas. Deixei Wagner de lado, por uns tempos, pois o Maestro é feito de flores debutantes e árvores outonais, não deste calor cesáreo, legionário e mediterrânico. Céus, como o calor nos ensandece!
Soda e limão e muito gelo e o desejo de noites frescas e sumarentas.
Segue num caixote imaginário, a abarrotar de gelo, mais umas quantas impublicáveis palavras desses Cadernos de Nicosia. Deixo-lhe em mãos, ainda que nesta primeira parte o não pareça, algumas impressões acerca da religião e dos deuses e de todo esse infinito celeste, passando pela arte e pelos jornalistas, que já eram no século XX a mala-posta de mala sempre feita.
Espero receber como resposta uma missiva carregada com as frescas águas dos lameiros da sua terra, dos regatos, das montanhas e do silencioso e pensativo rio, o Tâmega dos segredos de Pascoaes.
Efraim borrifa-se com água dos fiordes, na tosca tentativa de sentir algum nórdico arrepio, mas o único arrepio que sente é o da desilusão da água morna e o da carteira mais vazia. Pobre semita.
Aguardo a sua resposta e alguma dessa sua prosa sempre escondida em véus de Maya, em vasos de Confúcio.
Um abraço estético e metafísico deste

Seu

Gonçalo Viana de Sousa



Saio do hotel num passo monumental e ruidoso. Os sapatos são o prolongamento dos meus pés e da minha alma, que, passo a passo, marca ruidosamente os passeios destes jardins de ouro acastanhado.
Entro numa igreja qualquer, não me lembro do nome, Efraim. A porta da igreja está fechada devido ao calor que se faz sentir nas ruas, no ar e na pele. Há um pequeno papel em inglês que diz push, convidando os turistas, como eu, a entrar e a levar com o sagrado pelos olhos adentro. Ou com a beleza das abóbadas e dos arcos e dos altares e das iluminuras.
Sento-me num banco remoto, num canto maio alumiado por velas coptas. A igreja é fresca e o céu não tem fim. Um suave cheiro a incenso paira no ar enquanto um leve gorgolejar de canto gregoriano se espalha pelo espaço. Outros turistas vão tirando fotos, olhando para os arcos e para as abóbadas com a boca aberta e o olho em riste na sua máquina fotográfica. O Divino tornou-se cobrável e turistável em Nicosia. E eu que sempre pensei que Nicosia era um país navio, Efraim, Mas este pensamento teria que ser dissipado, pois não há lugar no mundo em que a proporção de turistas e de crentes num espaço sagrado não seja equivalente. Por cada fotografia tirada se ouve um padre-nosso, por cada olhar embasbacado e de boca aberta é desfiado um rosário, por cada vela ou pauzinho de ervas aromáticas um canto gutural é entoado, por cada porta, portão, portinhola rangente que abre uma prostração solene, silenciosa e memorável.
A religião está para o turista como a arte está para os jornalistas. Havemos de chegar ao tempo dos jornalistas na arte, em que tudo é notícia, em que tudo o que é notícia é perene, efémero, oco. Se o viajante, o peregrino do século XVIII viajava para se encontrar e para se formar enquanto ser humano, os turistas do século XIX viajavam pelo simples prazer de o poderem fazer, aproveitando cada paragem para tirar os seus apontamentos artísticos, ao mesmo tempo que já sonhava com as glórias do high-life do seu país. Vê o Dâmaso, Efraim, ou o próprio Ega!, para não falarmos de Carlos Eduardo.
Os turistas deste nosso século XX viajam para esquecer a história e o passado. O objectivo é sair do lugar que nos pertence, esquecer o estático e partir em busca do passado dos outros, pois o passado dos outros faz-nos apagar a sombra do nosso passado e da nossa história, como pessoas e como pátrias escangalhadas por imperialismo de bigode e suíças à la Strauss.

Que fazemos, afinal, nós em Nicosia?

quinta-feira, 30 de julho de 2015

O meu Pai, José Ferrão - a entrevista à RTP2

Ainda se lembram da entrevista que o meu pai, José Ferrão, deu ao Jornal Público a propósito da sua grande colecção de livros? Pois bem, parece que foi descoberta pela RTP2 - pelo programa Literatura Agora (jornalista Sara Gomes).

Para já deixo-vos um pequeno cheirinho do que podem ver brevemente. Prometo dizer-vos quando é que a entrevista vai para o ar.

Fiquem atentos!

*Rodrigo Ferrão


a-ver-livros: farrapos

São farrapos de lábios
os que te sorriem
Farrapos de olhos
Farrapos de lágrimas
Farrapos de cartas de amor
que não chegaram ao papel 
São farrapos de ódio
Farrapos de medo
Farrapos de entrega
Farrapos de mim
Postas restantes da canção
que não chegámos a cantar
Farrapos de corpo
Farrapos de pele
Farrapos de dores
que não escolhemos
Farrapos de lábios
os que ainda te beijam

Ana Almeida


* escultura/instalação de Donald Lipski

A coisa mais importante do mundo (Chico Buarque e Clarice Lispector)

A coisa mais importante do mundo - partilhado na pagina do facebook de Anabela Mota Ribeiro.

Chico Buarque entrevistado por Clarice Lispector.


quarta-feira, 29 de julho de 2015

Foto frase do dia: Lemony Snicket

Encontrado na página For Reading Addicts

Bai'má Benda: Boas Vibes...

Boas Vibes...

Não perca esta página, por nada: https://www.facebook.com/baimabenda

É do borogodó: MENINAS DE SINHÁ


MENINAS DE SINHÁ

Tive a felicidade de brincar muito de roda. Minha mãe brincava comigo e com as crianças da rua que a gente morava. Outros adultos, vizinhos, também se juntavam à ciranda. Minha avó brincava com os netos no quintal da casa dela, mesmo dia de domingo que todo mundo se juntava para comer macarronada. Meu avô fazia a gente dançar o vira para lembrar Portugal, ele tocava a consertina, cantávamos alecrim dourado naquele mesmo ritmo.

Brincar de roda era juntar cantiga, correria, mistério, verso, passa anel, lencinho na mão. Não tinha tempo de acabar aquilo. E nunca acabava.

Na volta da casa dos avós, minha mãe puxava as canções batendo palmas. O caminho era muito melhor de passar.

Eu não sei cozinhar sem cantar. Quando tenho roupa para lavar, tenho que cantar. Criei meus filhos com música e na hora de dormir, os primeiros anos de vida deles, era balanço e cantiga.

A criança que mora em mim reconhece na música um diálogo com o outro, um melhor entendimento do que eu sou.

E nesse mundo tem gente interessada em dialogar, saber do outro, pegar na mão para girar a ciranda. A história das meninas de sinhá vem para nos ensinar sobre essa capacidade humana de motivar o outro a acreditar em si mesmo através da impatia, do estar junto, lado a lado.

Esse grupo de senhoras do aglomerado do Alto da Vera Cruz, em Belo Horizonte, foi formado por dona Valdete. No vídeo, dona Valdete conta que percebeu que suas contemporâneas estavam se consumindo em depressões e uso de remédios, por isso ela teve a ideia de juntar a mulherada em noites de artesanato. Mas a ideia não resolveu o problema, o uso de psicotrópicos continuava e a infelicidade era um estado de espírito constante. Foi, então, que dona Valdete trocou o fazer artesanato pela brincadeira: juntou as meninas para cantar e resgatar memórias de infância.

Deu certo. Deu muito certo.

As Meninas de Sinhá formaram uma irmandade que já se apresentou em diversos lugares ao lado de artistas famosos – tanto quanto elas.
A leitura de mundo de dona Valdete salvou vidas. Não só daquelas mulheres mineiras afetadas diretamente pela provocação dela, mas a de todos que entram em contato com esse trabalho, bendita fonte de crescimento do amor próprio e diálogo permanente.

O exemplo de Dona Valdete faz parecer fácil mudar o mundo. Eu gostaria de beijar as mãos de Dona Valdete. Mãos que seguraram outras mãos para brincar de roda e deixar a magia acontecer.

Minha sabiá (esteja onde estiver), mando um beijo num sonho procê.

*É do Borogodó, por Penélope Martins (ponte para o Brasil, pois claro!)

segunda-feira, 27 de julho de 2015

A propósito de despertadores ou o Dr. Sampaio


A sua história é muito curta.
Acordava pontualmente cedo e numa cegueira de jumento de nora ou no mesmo movimento circular e repetitivo que permite e sustenta o conceito de infinito, trabalhava mais horas do que um relógio.
Não sei dizer concretamente o que fazia.
Um trabalho de secretária com computador, telefone, fax, impressora, destruidora de papel, carro com motorista, telemóvel, gravata, alfinete na gravata, botões de punho, relógio suíço de pulso.
Nunca foi à Suíça.
O relógio mais viajado do que o proprietário, sapatos italianos, sendo que em rigor sapatos manufacturados em Portugal, ao caso no concelho de Felgueiras, porém etiquetados, embrulhados num saco de flanela bordado com as iniciais de uma marca mais italiana do que o Papa e encaixotados em Itália.
Nunca foi a Itália.
Pelo que também os sapatos viajaram por mais chão do que os seus pés, sapatos impecavelmente engraxados porque engraxados a diário, desde que o dia útil, no engraxador da rua onde trabalha há vinte e cinco anos e com quem perdia à conversa mais tempo do que o necessário para engraxar um par de sapatos, talvez o único gesto, acção ou tarefa, que não sujeitava a avaliação de produtividade.
Gostava de conversar com o engraxador, às vezes da filhadaputice dos colegas de trabalho, em regra de trabalho, dos negócios, fusões e participações, das bolsas, dos mercados.
Falava com muitas palavras na língua dos camones, um excesso de palavras a terminar em –ing que faziam lembrar ao engraxador o toque dos antigos telefones fixos, animais em extinção como o lince da Malcata, ao que o engraxador, que domina a língua de Camões aos pontapés, derivado do não ter concluído a terceira classe, e dispõe de um inglês suficiente para engraxar sapatos a turistas, very typical, very typical, now you have shinning shoes, e cobrar-se o triplo, ocorrência cada vez menos frequente uma vez que os pés de visita em regra a circular calçados em sapatilhas ou sandálias, porém insuficiente para traduzir as conversas com o Dr. Sampaio, pelo que as conversas, aos seus ouvidos, uma maçada e o desconsolo de nunca uma troca de linhas sobre temas à altura, 1,94m, do engraxador, um gigante que passava desapercebido por passar os dias sentado rente ao chão, porque nunca, nada, sobre o futebol do fim-de-semana, o candidato que ganhou as autárquicas na cidade, o camisola amarela, a amante do ministro, o tempo das cerejas, a chuva dos dias, o último caso de fuga do Júlio de Matos, o preço da gasolina, pelo que o engraxador, como periquito na gaiola, sim senhor doutor, obviamente,  pois claro, com certeza senhor doutor  em tom de enfado, que o mesmo é dizer resposta nenhuma sendo que, mesmo sem respostas, o Dr. Sampaio não se cansava de falar, um monólogo de desabafos, sem prestar atenção ou perceber os suspiros de desalento do engraxador que, apesar das generosas gorjetas com que era propinado todas as Sextas, como que a desejar-lhe bom fim-de-semana e dos 25 anos de cliente fiel, bodas de prata, não gostava mais dele por isso.
Teve mulher e dois filhos, casa na praia, cão e gato, teve uma amante, em rigor teve três amantes, tantas quantas as secretárias que teve, era pragmático.
Teve um enfarte de miocárdio, tinha quase quarenta e oito anos, faltavam três dias, seria Domingo, e a única pessoa que se lembraria do seu aniversário seria o engraxador de rua onde trabalhava, por pensar a ver se amanhã não me esqueço de dar os parabéns ao doutor Sampaio, porque curiosamente fazem anos no mesmo dia.

Raquel Serejo Martins



Foto frase do dia: Wallace Stegner