sábado, 6 de dezembro de 2014

Só uma graça antes de irmos dormir...

Encontrado na página Improbables Bibliothèques, 
Improbables Librairies. A não perder por nada! 

Tarde com poema de Helder Magalhães


um dia escrevo à minha mãe
o poema com a menina
que ela gostaria de ter dado à luz.
há-de riscar-lhe os vestidos
e costurá-los...
com as mãos que só ela sabe
sentá-la no colo e coser-lhe as flores
dos versos
entre as madeixas dos cabelos
com as mãos que só ela sabe.
há-de fazer
crescer o pano do vestido
refazer as bainhas sempre que preciso
e o sorrir dos botões
pelo ventre das casas
com as mãos que só ela sabe.
um dia escrevo à minha mãe
o poema com a menina
que ela gostaria de ter dado à luz.


(dista um palmo, a amplitude do peso que suportas, outubro de 2014)

Poema de Helder Magalhães
Fotografia de mário venda nova
Música de Pink Floyd
Publicado no facebook por Lia Branco



Foto frase do dia: Manoel de Barros

A Língua Morta de - Renata Correia Botelho

Renata Correia Botelho, "Avulsos, por causa" (Língua Morta)

A Lenda de Nogard - Capítulo 1 – Lanças e Folhas

Capítulo 1 – Lanças e Folhas

Ele sabia que era noite. Mais porque os ferreiros não batiam mais seus malhos e a taverna soltava fumaça do que pelos céus em si. Os dias andavam mais curtos ultimamente. Era quase impossível distinguir algum momento entre o meio-dia e o anoitecer, e para uma criança isso era uma mera condição do tempo. Nogard era um garoto grande para sua idade, tinha cabelos curtos e negros, vestia uma capa e um colete tão surrados quanto podiam estar antes de rasgarem por completo, e carregava dois elmos, algo estranho para uma criança carregar com tanta pressa. Nogard passou pelas ruas estreitas perto da Taverna do Velho Lumber-meio-nariz. Caminhava com dificuldade pois os dois elmos que carregava eram muito maiores do que ele achava que fossem, tropeçou umas três vezes antes de colocar um deles na cabeça. O chão ainda estava meio barrento pelas chuvas, empata-ferros Merlon as chamava, isso porque os ferreiros da província de Ferro Forte odiavam a chuva. Dizia-se em Ferro Forte que enquanto chovia espíritos das águas enchiam os ares com sua presença e enfraqueciam as espadas, fazer uma boa espada durante um temporal era tão raro quanto ver um Dragão. Quando passou pela taverna já estava ralado, cansado e enlameado, Arwen você me paga, por que eu tenho que buscar isso? Se Merlon me pega estou frito.

Nogard tinha dez anos, nascera durante a Ultima Grande Guerra, mas não era um Guerreiro por Nascença, esse prestigio era conferido apenas aos guerreiros de Pontas de Lanças. Sua mãe era uma costureira de Chifre do Dragão e seu pai um Ferreiro de Ferro Forte. Durante a batalha, após a debandada dos Dragões, todas as mulheres foram enviadas para o norte, para ficarem em segurança na cidade de Elmo de Gelo, foi ali que ele nasceu, a vários dias da batalha, portanto não era agraciado pelo Nascimento da Batalha. Sua mãe veio para Ferro Forte quando ele tinha dois anos e infelizmente veio viúva. Nogard não conhecia nada alem dos campos, das muralhas de Pescoço dos Homens e do Rio de Ferro, as histórias que o decadente Merlon lhe contava eram a única informação sobre a história de todo o reino de Andor, e isso era feito às escondidas da sua mãe. Serena abominava a guerra e todas as peças que a vila produzia para o reino, a guerra tinha levado aquilo que era mais precioso para ela e ela não deixaria isso ocorrer novamente.

Nogard chegou ao limite da vila, a fumaça da Taverna ainda estava muito volumosa, o que queria dizer que não era muito tarde. Havia um bosque de onde os ferreiros retiravam lenha e ele entrou ali, em meio a tropeções e choramingos. Nogard conhecia bem aquele bosque, buscava lenha ali por muitas vezes durante o dia, era o ajudante do ferreiro mais velho e pobre de toda Ferro Forte, Merlon. Caminhou até uma clareira rodeada por longos pinheiro e então viu sua adversária. Estava sentada sobre uma pedra coberta de musgo embaixo de uma árvore tão volumosa que podia-se dormir em seu tronco, tinha os joelhos próximos ao queixo com uma cara que revelava a sua impaciência. Estava mexendo algumas folhas secas com um galho quando viu o garoto se aproximar.
- Nossa, pensei que não vinha mais, você demorou tanto que quase comecei sem você. - disse Arwen emburrada saltando da pedra e caminhando em direção a um saco que Nogard não tinha visto, até então.
Pelos dragões, ela trouxe aquilo tudo?
- Arwen, estava pensando melhor e acho que não devemos fazer isso. – disse Nogard coçando a cabeça.
- Do que esta falando Nog? Planejamos isso a dias, estou com muita energia, e além de tudo devolveremos isso ao velho Merlon antes de ele terminar sua caneca de cerveja. – disse Arwen fuçando no saco sujo.
Nogard era mais novo que Arwen dois anos e isso em nada o agradava. Ele queria parecer um homem feito e não fazer aquilo naquela noite parecia ser uma atitude bem adulta.
- Mas eu conheço ele Arwen, ele sabe tudo o que tem ali, cada elmo cada espada...
- Lanças. – disse Arwen.
- O que você quer dizer com...
- Lança! – gritou Arwen e arremessou uma lança de madeira e ferro aos pés de Nogard.

Invadir a fundição de Merlon e roubar seus itens já era problema o bastante para Nogard, mas ver os desenhos nas laminas das lanças e reconhecer que eram as encomendas do Lord Grum, senhor de Pontas de Lança, foi assustador.
- Espere Arwen, você não entende, essas lanças são...
Seus choramingos foram interrompidos pela primeira estocada de Arwen. Nogard rolou por baixo da lança e pegou a sua, não era a primeira vez que faziam treinos de lanças, apesar de que lanças de galhos com laminas de folhas não eram a mesma coisa que as grandes lanças dos Guerreiros por Nascença. E ele percebeu isso no momento em que pegou a lança.
- Ei, isso esta pesado demais, não consigo nem levanta-la. – disse tentando equilibrar a lança com a maior firmeza possível.

Arwen já estava com um sorriso que Nogard sabia ser de brincadeira.
- Não acredito que vai fugir, ainda mais lutando contra uma garota, por acaso é alguma espécie de Covarde Alado? – disse Arwen, referindo-se ao nome pelo qual os Dragões de Andor eram conhecidos.
- Em primeiro lugar os Dragões não são covardes, Merlon me disse que eles tiveram um motivo para não lutar, um motivo que os homens não entendem – disse sorrindo e colocando o enorme elmo na cabeça -, e em segundo lugar, não fujo de meninas.
Começaram a lutar. Lutar era um pouco demais para uma menina de doze anos e um garotinho com dez, os risinhos e os choramingos faziam mais barulho do que as lanças, os elmos, e os escudos de folhas. Arwen golpeou os pés de Nogard mas ele deu um pequeno salto e escapou do golpe. O garoto correu de encontro a amiga tentando abarroa-la com o escudo, afim de desequilibrar a garota. Com a lança pesada e o elmo grande demais, Arwen se desequilibrou. A manobra funcionou, mas Nogard perdeu seu escudo. Caíram rindo sobre o macio musgo da pedra. Uma chuva de folhas, que outrora foram o escudo de Nogard, caiam sobre eles. Então a lança perfurou a árvore tão rapidamente que fez ela vibrar. O golpe foi tão forte que mais folhas caíram sobre eles. Nogard não sabia o que o espantava mais. Se era o fato da lança arremessada ter balançado uma arvore tão grande ou o fato do velho Merlon estar parado ao lado do saco de equipamentos, com sua caneca de cerveja na mão e cara de poucos amigos.

*Por Marco Antonio Febrini Júnior

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sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Foto frase do dia: Lee Smith


Eu poético «Não, sim, nim»

Não, sim, nim

não negues o meu direito à solidão,
as multidões não a combatem.
não negues o meu direito ao sossego,
o som da chuva basta.
não negues o meu direito ao poema,
que eu faço o que quero com as palavras.

não negues.
não.

afirma o meu direito ao amor,
que eu tenho muito para dar.
afirma o meu direito à alegria,
porque já guardei todas as lágrimas.
afirma o meu direito à liberdade,
que eu vivo preso à fatalidade das rotinas.

afirma.
sim.

talvez consideres o meu direito à dúvida,
que eu movo-me pelas questões.
talvez queiras dar espaço ao sonho,
ele é o último a morrer.
talvez me possas dar a mão,
dois somos mais fortes do que um.

talvez.
nim.

Rodrigo Ferrão

Foto: Leonor Ferrão

Poesia em matéria fria: Leminski e escrever

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quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Como conheci Gonçalo - IV

Então eu não existo!, respondeu-me Gonçalo.
Gonçalo parecia desiludido com as minhas afirmações e perguntas, questionando-me acerca da existência dos seus familiares e dos amigos destes.
Oiça, meu jovem, continuava aquele que seria o flâneur já o sendo há bastante tempo, eles existiram tanto como nós existimos. É tão real a foto de meu avô com Carlos Fradique Mendes e a correspondência que trocaram como estas tílias que se encontram à nossa frente.
Meu avô ficou muito amigo de Fradique Mendes a partir dessa inesperada tarde sobre o Nilo.
De tão amigos que ficaram, meu caro jovem, meu bisavô deu o nome de Carlos a meu avô que nascera nesse mesmo ano em Outobro: Carlos Viana de Sousa. Um homem que viveu uma longa e complexa vida! Só viria a falecer em 1965, poucos anos antes da minha vinda para esta que já foi, outrora, a Vetusta e Veneranda Universidade de Coimbra. Gonçalo falava da Universidade com um certo sorriso saudoso e, ao mesmo tempo, angustiado, entristecido. Talvez aquele “outrora” fosse para o nosso flâneur um traço de Decadência, coisa decente em gerações mais antigas e delicadas, mas que, a meus olhos, surgia como algo démodé e ao mesmo tempo atualíssimo, vulgo síndrome da geração dourada, perdida, escolham o termo psicologista mais adequado os leitores, pois eu já fiz a minha decisão.
Mas como é que é possível não haver registo algum de Carlos Fradique Mendes para além da Correspondência que este teve com Eça e algumas outras personalidades? Como é possível que tudo esteja perdido?
Nada se perdeu, jovem. Tudo ou quase tudo foi parcialmente queimado. As poucas fotos que sobraram, assim como correspondência inédita, encontram-se por Lisboa, em Sampetersburgo, em Angola, e no espólio da minha família.
Cada vez ficava mais absorto com estas afirmações daquele que seria o meu flâneur. No entanto, deixei-o falar livremente, como um pássaro que planeia altos voos pelas manhãs de março, quando ainda se sente o orvalho nas pontas das folhas mais delicadas. Meu bisavô e meu avô guardaram, religiosamente, alguma correspondência e duas fotos desse grande maganão, dizia Gonçalo com um esgar de olho um pouco infantil para o seu prelúdio da idade dourada (quanto a esta última expressão, à época não seria capaz de a escrever com esta desenvoltura e à-vontade, visto que foi graças a este nosso flâneur que aprendi a criar muitas destas paisagens mentais que se desfiam em palavras que soam a algo definitivo).
Depois de Gonçalo ter terminado o seu longo falar acerca de Fradique e o bisavô e as aventuras e peripécias por que passaram em Paris, em Londres e em Viena (não interessa, por ora, fazer relato dessas histórias pois não vêm ao caso), lancei uma pergunta que de inocente só tinha o facto de o não ser: quer então dizer que o senhor me pode mostrar alguma dessa correspondência!
O nosso homem olhou para mim e sorriu, pronta e positivamente respondendo, é claro que sim, jovem frenético. Foi a primeira vez que Gonçalo me chamou jovem frenético, uma das suas epítotes preferidas quando fala comigo.
Claro que lhe posso mostrar toda essas correspondência, mas não hoje meu jovem, nem agora, pois parto esta madrugada para o País de Gales. Fique com o meu contacto. Gonçalo retira do bolso do seu belo casaco, chic, um cartão ainda mais elegante, de um azul marinho líquido, com umas negras letras que diziam: Gonçalo Viana de Sousa, Coimbra, Portugal, Mundo. Mais abaixo continha a morada, sita na Rua do Brasil, aliás, residência ainda hoje oficial do nosso flâneur. O facto de me dar aquele cartãozinho comportava em si toda uma cerimónia que me levava até aos finais do século XIX, até que ao longe se ouve uma vez com um exótico sotaque chamando pelo “sinhor Viana de Sousa”. Era o formidável Efraim, o constante butler, que num passo rápido, meio travadinho e nervoso, acenava e chamava pelo nosso homem, com medo que este chegasse atrasado a um jantar que havia marcado com o senhor bispo de Coimbra, à época o D. Albino Cleto.

Despedimo-nos com um até breve. Fiquei a mirar aquele interessantíssimo homem que andava com uma elegância e graciosidade de um príncipe bávaro. Fechei o meu livro, sorri e o céu continuou universalmente igual e indiferente.

a-ver-livros: da perda

Só te perco
porque te tenho enrodilhado nas pregas do coração
só te perco 
porque te quero entrançado nas minhas pernas
noite dentro
só te perco
porque te trago perdido
no labirinto do que sou
perco-te

porque te tive
não fizera eu este pacto
com o diabo que sou
jamais o vento rasgaria
esta estrada
no meu peito

Ana Almeida

* para saber mais sobre o sul-americano Aldo Jeffrey
siga o link http://aldojeffrey.com/

«Pretérito Perfeito» na Snob, em Guimarães


O Clube de Leitores tem o prazer de anunciar que vai ter dois dos seus membros em Guimarães para apresentar o livro «Pretérito Perfeito»! Raquel Serejo Martins (autora do livro), Rodrigo Ferrão e Suzana Costa vão estar todos presentes numa sessão já neste Domingo (dia 7), pelas 21:30h.

Tragam amigos até à Livraria Snob,  na Rua D.João I 210A R/C, em Guimarães.

Convidem os vossos amigos para o evento no facebook: https://www.facebook.com/events/733723243376731/?sid_reminder=8191602462927355904

Foto frase do dia: Carlos Ruiz Zafón


A Língua Morta de - Hugo Williams

Hugo Williams, Última semana
Tinta da China

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

A segunda pele da Acácia Mimosa - Ana Gil Campos esta sexta, na cidade da Maia


Olá! Tenho muito gosto em vos convidar para a apresentação do romance A Segunda Pele da Acácia Mimosa na Biblioteca Doutor José Vieira de Carvalho, na Maia, no dia 5 de Dezembro, sexta-feira, pelas 21 horas. Até ao dia do evento publicarei aqui algumas novidades da apresentação e será um espaço público de partilha de ideias entre todos os convidados e participantes. Convido-vos também a convidarem os vossos amigos que gostariam de convidar para a apresentação do livro.

*Ana Gil Campos

 
 A apresentação contará com a presença da autora, Rodrigo Ferrão (Clube de Leitores) e Marta Pinho Vieira.

É do borogodó: Então, adeus!

"Isto aconteceu na Bahia, numa tarde em que eu visitava a mais antiga e arruinada igreja que encontrei por lá, perdida na última rua do último bairro. Aproximou-se de mim um padre velhinho, mas tão velhinho, tão velhinho que mais parecia feito de cinza, de teia, de bruma, de sopro do que de carne e osso. Aproximou-se e tocou o meu ombro:
— Vejo que aprecia essas imagens antigas — sussurrou-me com sua voz débil. E descerrando os lábios murchos num sorriso amável: – Tenho na sacristia algumas preciosidades. Quer vê-las?

Solícito e trêmulo foi-me mostrando os pequenos tesouros da sua igreja: um mural de cores remotas e tênues como as de um pobre véu esgarçado na distância; uma Nossa Senhora de mãos carunchadas e grandes olhos cheios de lágrimas; dois anjos tocheiros que teriam sido esculpidos por Aleijadinho, pois dele tinham a inconfundível marca nos traços dos rostos severos e nobres, de narizes já carcomidos… Mostrou-me todas as raridades, tão velhas e tão gastas quanto ele próprio. Em seguida, desvanecido com o interesse que demonstrei por tudo, acompanhou-me cheio de gratidão até a porta.

— Volte sempre — pediu-me.
— Impossível — eu disse. — Não moro aqui, mas, em todo o caso, quem sabe um dia…    — acrescentei se nenhuma esperança.
— E então, até logo! — ele murmurou descerrando os lábios num sorriso que me pareceu melancólico como o destroço de um naufrágio.
Olhei-o. Sob a luz azulada do crepúsculo, aquela face branca e transparente era de tamanha fragilidade, que cheguei a me comover. Até logo?… “Então, adeus!”, ele deveria ter dito. Eu ia embarcar para o Rio no dia seguinte e não tinha nenhuma idéia de voltar tão cedo à Bahia. E mesmo que voltasse, encontraria ainda de pé aquela igrejinha arruinada que achei por acaso em meio das minhas andanças? E mesmo que desse de novo com ela, encontraria vivo aquele ser tão velhinho que mais parecia um antigo morto esquecido de partir?!…

Ouça, leitor: tenho poucas certezas nesta incerta vida, tão poucas que poderia enumerá-las nesta breve linha. Porém, uma certeza eu tive naquele instante, a mais absoluta das certezas: “Jamais o verei.” Apertei-lhe a mão, que tinha a mesma frialdade seca da morte.
— Até logo! – eu disse cheia de enternecimento pelo seu ingênuo otimismo.
Afastei-me e de longe ainda o vi, imóvel no topo da escadaria. A brisa agitava-lhe os cabelos ralos e murchos como uma chama prestes a extinguir-se. “Então, adeus!”, pensei comovida ao acenar-lhe pela última vez. “Adeus.”

Nesta mesma noite houve o clássico jantar de despedida em casa de um casal amigo. E, em meio de um grupo, eu já me encaminhava para a mesa, quando de repente alguém tocou o meu ombro, um toque muito leve, mais parecia o roçar de uma folha seca.
Voltei-me. Diante de mim, o padre velhinho sorria.
— Boa noite!
Fiquei muda. Ali estava aquele de quem horas antes eu me despedira para sempre.
— Que coincidência… — balbuciei afinal. Foi a única banalidade que me ocorreu dizer.— Eu não esperava vê-lo… tão cedo.

Ele sorria, sorria sempre. E desta vez achei que aquele sorriso era mais malicioso do que melancólico. Era como se ele tivesse adivinhado meu pensamento quando nos despedimos na igreja e agora então, de um certo modo desafiante, estivesse a divertir-se com a minha surpresa. “Eu não disse até logo?”, os olhinhos enevoados pareciam perguntar com ironia.
Durante o jantar ruidoso e calorento, lembrei-me de Kipling. “Sim, grande e estranho é o mundo. Mas principalmente estranho…”
Meu vizinho da esquerda quis saber entre duas garfadas:
— Então a senhora vai mesmo nos deixar amanhã?
Olhei para a bolsa que tinha no regaço e dentro da qual já estava minha passagem de volta com a data do dia seguinte. E sorri para o velhinho lá na ponta da mesa.
— Ah, não sei… Antes eu sabia, mas agora já não sei."

- Lygia Fagundes Telles -

* Texto extraído do livro “FIGURAS DO BRASIL 80 AUTORES EM 80 ANOS DE FOLHA”, Editora PUBLIFOLHA. – FOLHA DE SÃO PAULO pág. 129 E 130. E escolhido pela Penélope Martins para esta rubrica.


** anjo de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1730-1814).

Foto frase do dia: Malala Yousafzai

Poesia em matéria fria: o coração de Leminski

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terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Poema à noitinha... Vinicius de Moraes

A Mulher que Passa

Meu Deus, eu quero a mulher que passa.
Seu dorso frio é um campo de lírios
Tem sete cores nos seus cabelos
Sete esperanças na boca fresca!

Oh! Como és linda, mulher que passas
que me sacias e suplicias
Dentro das noites, dentro dos dias!

Teus sentimentos são poesia
Teus sofrimentos, melancolia.
Teus pêlos leves são relva boa
Fresca e macia.
Teus belos braços são cisnes mansos
Longe das vozes da ventania.

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!

Como te adoro, mulher que passas
Que vens e passas, que me sacias
Dentro das noites, dentro dos dias!

Porque me faltas, se te procuro?
Por que me odeias quando te juro
Que te perdia se me encontravas
E me encontrava se te perdias?

Por que não voltas, mulher que passa?
Por que não enches a minha vida?
Por que não voltas, mulher querida
Sempre perdida, nunca encontrada?
Por que não voltas à minha vida
Para o que sofro não ser desgraça?

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Eu quero-a agora, sem mais demora
A minha amada mulher que passa!

No santo nome do teu martírio
Do teu martírio que nunca cessa
Meu Deus, eu quero, quero depressa
A minha amada mulher que passa!

Que fica e passa, que pacifica
Que é tanto pura como devassa
Que bóia leve como a cortiça
E tem raízes como a fumaça.

*Vinicius de Moraes, in Antologia Poética

A Língua Morta de - Chellapilla Venkata Sastri

Foto frase do dia: Mark Twain

domingo, 30 de novembro de 2014

Cronicando pela Ásia... de volta a Macau

Macau,
12 de Maio de 2009

Voo da Tailândia para Macau, dizendo adeus aos dias felizes de praia, campo e aventura. Não vou mais andar de mochila às costas, não vou mais confiar o destino ao primeiro transporte que me leve de um sítio a outro. Acabou-se a pressão pelos horários; no calendário dos próximos dias apenas um local - Macau.

E é também um regresso. Tinha passado uma noite por lá, num sonho delirante, mas que foi real. Absolutamente vivido num ápice, como se fechasse os olhos e estivesse acordado cinco minutos depois.

Saído do autocarro, passo pela Universidade. Atravesso e serpenteio os prédios ao longo da água, miro a altura espantosa daquela selva. Num café consigo pela primeira vez falar português. Apesar da resposta não ter sido perfeita, vejo com agrado que me entendem. E é também ali que como uma nata - verdadeiro património português por aquelas bandas.


Desço até à entrada de um casino. Os autocarros fazem transportes directos entre os casinos da cidade. Apanho aquela boleia e sou deixado no centro. Ao meu lado aparece o Casino Lisboa e o Grand Casino Lisboa. O velho e o novo, lado a lado. O passado e o presente unidos, vizinhos um do outro.

Tiro fotos até chegar ao sítio onde durmo. Ali, bem ao lado, o edifício mais conhecido da cidade - as Ruínas de São Paulo. Miro as montras e volto a constatar que os portugueses ainda por lá andam. Se não tantos como outrora, pelo menos numa memória ou souvenir. O galo de Barcelos no Oriente é especial. Será que conhecem a lenda?


A calçada portuguesa leva-me até um jantar com portugueses, mas num verdadeiro repasto chinês. E que jantar! Esta comida não tem nada a ver com a comida chinesa que vemos na Europa. Aqui sente-se o sabor forte do gengibre, das pimentas e malaguetas, do caril. Fiquei a arder um pouco, nada que não ficasse resolvido com mais um refresco e um longo passeio.

Dali partimos para um belíssimo bar, mesmo ao lado das Ruínas de São Paulo. À noite, o esqueleto daquele edifício torna-se monumental. Aparecem mais portugueses, fala-se dos dias felizes que passei pela península da Indochina. Vemos mapas com sítios para visitar nos próximos dias... e, de repente, apercebo-me que já falta pouco para deixar a Ásia. Que saudades vou ter desta viagem, destas gentes, deste mundo eléctrico, carregado de contrastes.


Fomos ao Casino Lisboa (ao velhinho) e descemos até ao andar de baixo. Surpresa total ao perceber que, num ápice, estava num corredor escuro. Pequenos pontos de luz mostravam a cara de várias mulheres, todas elas prostitutas. O corredor terminava e as raparigas regressavam atrás, ao ponto de partida. Parámos no bar e pedimos qualquer coisa para beber. Ali ficámos uns tempos até sermos vencidos pelo cansaço. E então fomos para casa. Havia que descansar o corpo, amanhã seria um dia de grandes passeios.

Rodrigo Ferrão 

Neste dia morreu Fernando Pessoa

Diário de Notícias, 30 de Novembro de 1935




*in Maria José de Lencastre, Fernando Pessoa - Uma Fotobiografia,
Imprensa Nacional Casa da Moeda e Centro de Estudos Pessoanos, pp. 310-311

A Língua Morta de - Camões

Apanhei-te a ler... dia 29

Clark Gable
 
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