Eu era miúda e "O Meu Pé de Laranja Lima" teria dez, onze anos de publicado, pouco menos do que eu teria de vida, quando apareceu lá em casa. Devorei-o. Se fechar os olhos consigo ver a árvore que a minha imaginação plantou na minha memória. Curiosamente, agora que releio a sinopse do livro do brasileiro José Mauro de Vasconcelos, apercebo-me de que nunca mais recordei que o livro inclui um português, que se tornaria grande amigo do pequeno Zezé.
E porque falo nisso agora? Porque depois de uma primeira adaptação cinematográfica em 1970, três novelas baseadas no livro, uma versão em banda desenhada editada na Coreia do Sul, surge agora um novo filme realizado por Marcos Bernstein, entre outras coisas, roteirista do aclamado "Central do Brasil". Primeiro foi exibido durante o Festival do Rio, ainda no ano passado, e estreou ontem nas salas comerciais.
Para quem já não recorda o enredo, 'pico' da wikipédia um pouco da sinopse:
"Este livro retrata a história de um menino de cinco anos chamado Zezé que pertencia a uma família muito pobre e numerosa. A mãe trabalhava numa fábrica, o pai estava desempregado e, como tal, passavam muitas dificuldades, pelo que eram as irmãs mais velhas que tomavam conta dos mais novos; por sua vez, Zezé tomava conta do irmãozinho mais novo, Luís.
Zezé era um rapazinho muito interessado pela vida, adorava saber e aprender coisas novas, novas palavras, palavras difíceis que o tio Edmundo lhe ensinava. Contudo, passava a vida a fazer traquinagens pela rua, a pregar partidas aos outros e muitas vezes acabava por ser castigado e repreendido pelos pais ou pelos irmãos, que passavam a vida a dizer que ele era um mau menino. Todos estes factores faziam com que Zezé não encontrasse na família o carinho e a ternura que qualquer criança precisa. Somente de sua irmã Glória, a quem carinhosamente chama 'Godóia'.
Ao mudarem de casa, Zezé encontra no quintal da nova morada um pequeno pé de laranja lima. Inicialmente, a ideia de ter uma árvore tão pequena não lhe agrada muito, mas à medida que vai convivendo com a pequena árvore e ao desabafar com esta, repara que ela fala e que é capaz de conversar consigo, tornando-se assim a sua grande amiga e confidente, aquela que lhe dava todo o carinho que Zezé não recebia da família. O menino teve também um grande amigo no português Manuel Valadares."
Para esta noite de sexta-feira - ou, quem sabe, para a manhã de sábado, depois de uma saída que descomprima do stress da semana - deixo-vos primeiro o trailer de apresentação do filme, depois uma pequena entrevista com José de Abreu, o actor que veste a pele de Manuel Valadares, o Portuga, na qual revela a forma como fugiram à figura estereotipada pela qual os portugueses são ainda identificados no Brasil.
Ah. E se tiverem curiosidade em reler o início do livro "O Meu Pé de Laranja Lima" está aqui, na rubrica Primeiro Parágrafo. Bom fim-de-semana. E boas leituras, pois claro!
sábado, 20 de abril de 2013
Orlando - como li Virginia Woolf
Orlando - uma biografia é obrigatório. Não só por ser magistralmente escrito por Virginia Woolf - também ela uma força em si suficiente para dar um romance (ou um filme, como é o caso de The Hours - um filme realizado por Stephen Daldry e baseado no romance de Michael Cunningham); mas também porque é uma história única e que fica para sempre marcada na memória de quem passa por ela.
*in Orlando - uma biografia. Publicado pela Relógio D'Água.
Orlando vive mais de 300 anos. Parte deles como homem, parte deles como mulher. E em ambos (M e F) há a partilha de um gosto comum: a literatura. A vida de Orlando flui pela história. Percorre a época Isabelina e a Vitoriana, ao longo de toda a Idade Moderna. Sempre questionando os hábitos culturais, sempre prestando atenção às letras.
«O carvalho» é o poema que acompanha toda a vida de Orlando homem e Orlando mulher. Obra que atormenta e persegue o(a) nosso(a) herói (heroína). É numa estadia na Turquia que se dá a grande transformação. Orlando simplesmente nasce um dia mulher. Mas não estranha muito. Prossegue a sua vida e regressa às suas grandes propriedades na Grã-Bretanha, anos mais tarde (e quase como se nada fosse). A verdade é que quem o conhecia também não estranha esta mudança. Orlando mantém as suas qualidades, os seus medos e anseios inalterados.
Dizem que este romance revela o lado íntimo de Virginia Woolf e que grande parte da história se baseia na sua própria vida. Além de considerado um dos melhores livros de literatura escritos é também um dos mais importantes e mais citados na história da escrita das mulheres e de estudos do género.
Pela minha parte só vos tenho a dizer: partam nesta aventura. Não vão querer parar.
Um perfeito fidalgo como Orlando, diziam, não precisava de livros para nada. Ele que deixasse os livros, diziam, para os paralíticos e os moribundos. Mas o pior ainda estava para vir. Porque quando a doença da leitura toma conta do organismo, a tal ponto o debilita que o torna presa fácil desse outro flagela que mora no tinteiro e supra na pena. O infeliz dedica-se à escrita.*
sexta-feira, 19 de abril de 2013
Poema à noitinha... João Miguel Fernandes Jorge
Há Momentos que Resulta tão Difícil Chegarmos a um Sentimento
Há momentos em que do fogo sobe para a noite
há momentos que resulta tão difícil chegarmos a um
sentimento.
Descubro uma figura que já não
sei seguir. Há momentos
eu vejo o que se senta à minha frente o amável corte
de cabelo o severo intento tomado como correcto
rosto onde a plenitude era possível. Rosto onde o
passado é a tarde de verão a pequena cidade onde o
sol pode dizer-se cai no campo rosto de passados ou
uma tarde de verão para ter tempo.
*João Miguel Fernandes Jorge, in Direito de Mentir
há momentos que resulta tão difícil chegarmos a um
sentimento.
Descubro uma figura que já não
sei seguir. Há momentos
eu vejo o que se senta à minha frente o amável corte
de cabelo o severo intento tomado como correcto
rosto onde a plenitude era possível. Rosto onde o
passado é a tarde de verão a pequena cidade onde o
sol pode dizer-se cai no campo rosto de passados ou
uma tarde de verão para ter tempo.
*João Miguel Fernandes Jorge, in Direito de Mentir
Palavras caras - por Manuel Monteiro
Palavras
Caras
Deve o escritor utilizar palavras consabidas ou revitalizar palavras menos conhecidas? Certo é que grandes monstros literários habitam os dois paradigmas, tornando a discussão permanentemente renovável.
O debate é antigo.
Deve o escritor utilizar palavras consabidas ou revitalizar palavras menos conhecidas? Certo é que grandes monstros literários habitam os dois paradigmas, tornando a discussão permanentemente renovável.
Um dos metadiálogos literários sobre o tema pertence a Faulkner e a Hemingway.
He [Ernest Hemingway] has never been known to use a word that might send a reader to the dictionary.
Poor Faulkner. Does he really think big emotions come from big words? He thinks I don't know the ten-dollar words. I know them all right. But there are older and simpler and better words, and those are the ones I use.
Um dos princípios do jornalismo é o de que entre dois sinónimos a opção do escrevente deverá recair no sinónimo mais comummente utilizado, de modo que o público seja o maior possível. Bem sei que literatura e jornalismo são coisas bem distintas, mas, feliz ou infelizmente, muitos jornalistas migram para a ficção transportando essa ideia.
É verdade que a leitura de um texto com palavras caras é menos fluida. Ou o leitor pura e simplesmente ignora tais palavras e não vai ao dicionário, deixando zonas brancas na compreensão do texto (a adivinhação pelo contexto é, regra geral, um embuste), ou pega no dicionário ante cada palavra que desconhece ou consulta-o depois de sublinhar um conjunto de palavras na obra. A quebra da fluidez pode afastar leitores, mas não deixa de ser um argumento vicioso – a fluidez do entendimento aumenta na proporção directa do estudo de textos em que tropeçamos mais vezes. Quanto mais lemos, quantas mais palavras caras consultamos nos dicionários, menos vezes temos de o fazer. Percebemos isto facilmente quando nos iniciamos no estudo de uma língua estrangeira. Era o próprio Lenine que afirmava que não era a arte que devia descer ao povo, mas o povo que devia ascender à arte.
Aqui, entramos num ponto essencial. Qual o problema de as palavras irem morrendo? Não é verdade que umas entram e outras saem? Porque devemos a todo o custo tentar preservar palavras que ninguém conhece? Porque quanto mais palavras temos cá dentro, mais chaves de decifração do mundo e do humano possuímos. Não só isso. Mesmo quem não defende a tese de que não há sinónimos perfeitos e de que portanto cada palavra, pelo seu étimo, pela sua conotação, transporta um significado único; mesmo quem não subscreve tal ideia concordará que o escritor munido de mais palavras dispõe de mais instrumentos para trabalhar a plasticidade, a beleza e a musicalidade da língua.
Um dos princípios do jornalismo é o de que entre dois sinónimos a opção do escrevente deverá recair no sinónimo mais comummente utilizado, de modo que o público seja o maior possível. Bem sei que literatura e jornalismo são coisas bem distintas, mas, feliz ou infelizmente, muitos jornalistas migram para a ficção transportando essa ideia.
É verdade que a leitura de um texto com palavras caras é menos fluida. Ou o leitor pura e simplesmente ignora tais palavras e não vai ao dicionário, deixando zonas brancas na compreensão do texto (a adivinhação pelo contexto é, regra geral, um embuste), ou pega no dicionário ante cada palavra que desconhece ou consulta-o depois de sublinhar um conjunto de palavras na obra. A quebra da fluidez pode afastar leitores, mas não deixa de ser um argumento vicioso – a fluidez do entendimento aumenta na proporção directa do estudo de textos em que tropeçamos mais vezes. Quanto mais lemos, quantas mais palavras caras consultamos nos dicionários, menos vezes temos de o fazer. Percebemos isto facilmente quando nos iniciamos no estudo de uma língua estrangeira. Era o próprio Lenine que afirmava que não era a arte que devia descer ao povo, mas o povo que devia ascender à arte.
Para Borges, uma
palavra cara num texto era como um borrão de tinta – qualquer coisa que
encadeava a vista e que nos fazia reparar mais na palavra do que na perspectiva
global da página, do capítulo ou da obra. Não duvido de que muitos autores,
mormente numa fase imatura da sua escrita, procuram despejar uma torrente de
palavras caras (muitas vezes encaixadas forçadamente) para exibir uma putativa
erudição. O narcisismo, a sensação de vaidade do conhecimento de algo
partilhado por muito poucos, o poder de mandar o leitor fazer uma leitura
intertextual (de que a ida ao dicionário é o exemplo mais corriqueiro) se
quiser compreender a sua obra podem ser móbeis de muitos escritores na senda de
Aquilino.
Mas convém lembrar que
vivemos tempos em que o léxico utilizado (na televisão, na imprensa, na
comunicação das novas tecnologias de informação, nos próprios livros) é cada
vez mais reduzido. George Steiner afirmou que «Shakespeare usava 24 mil
palavras. Num estudo muito recente, pela companhia telefónica americana Bell, o
total de palavras usadas por 90 por cento dos americanos ao telefone é de 150
palavras». James Joyce recorreu a
mais de 30 mil palavras em Ulisses.Vasco
Pulido Valente escreveu que quando se dedicou a ler a obra inteira de Camilo
verificou que muitas palavras não estavam em dicionário algum. Porquê? Porque
um dicionário é um registo, um espelho das palavras usadas pelos escreventes e
pelos falantes. Não utilizar determinadas palavras é aniquilá-las, é contribuir
para a sua expulsão da língua.
Aqui, entramos num ponto essencial. Qual o problema de as palavras irem morrendo? Não é verdade que umas entram e outras saem? Porque devemos a todo o custo tentar preservar palavras que ninguém conhece? Porque quanto mais palavras temos cá dentro, mais chaves de decifração do mundo e do humano possuímos. Não só isso. Mesmo quem não defende a tese de que não há sinónimos perfeitos e de que portanto cada palavra, pelo seu étimo, pela sua conotação, transporta um significado único; mesmo quem não subscreve tal ideia concordará que o escritor munido de mais palavras dispõe de mais instrumentos para trabalhar a plasticidade, a beleza e a musicalidade da língua.
Um acrescento
importante. Não são apenas as palavras que morrem pela falta de uso.
Determinados significados associados às palavras morrem quando deixam de ser
empregados (quando consultamos um dicionário, percebemos que as palavras são
quase todas muito mais polissémicas do que julgamos). As almas mundas de Camões remetem-nos para um adjectivo extinto – mundo
enquanto oposto de imundo. É essa a preocupação expressa por Orwell no final de
1984, quando a novilíngua mantinha a
palavra «livre», mas já não aplicável a homens livres, permanecendo apenas para
frases como: «O cão está livre de pulgas.»
Termino com uma
confissão. Uma das coisas que mais me alimentam o espírito, provocando aquele
preenchimento interior que é a satisfação intelectual, é o de conhecer uma
palavra nova todos os dias. É o tipo de contentamento que não envelhece nem se
embota – uma delícia no corpo que não consigo transmitir em palavras.
Eis algumas. (Fonte: Houaiss.)
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