Como prometido, ainda que com umas horas de atraso (ou engano propositado?) eis a segunda parte do conto
Lágrimas de Abril , de Gonçalo, o Flâneur das sensações azuis.
Agora acompanhas-me, dás-me a tua delicada mão que
sente a minha pele já fria e próxima da morte. Tornei-me numa sombra que vive
pela tua luz irradiante. A minha doença sempre a tentar fugir de ti, mas eu
ainda sou mais forte que a minha doença, o meu amor por ti, Maria Adelaide,
ainda é invencível, será sempre invencível, mesmo depois de a morte poisar as
suas asas negras sobre mim. Porque a minha força é a tua força, e essa força é
inesgotável, inabalável, incansável, incrível.
A
enfermeira diz para me levares para o quarto porque tenho de descansar, mas eu
não quero. Eu quero que me leves até ao pátio do hospital para poder saborear
um pouco deste ar de Fevereiro. Penso escutar Brahms.
Leva-me
até lá fora, Maria Adelaide, tenho de ver o sol e o céu que tanta falta me estão fazendo.
Vamos, Maria Adelaide. Com certeza que o
horizonte já deve ser verde e os lameiros já devem estar cheios de água; com certeza
que os bosques já estão com um novo aroma e que os pássaros já começam a chilrear sem tanta
timidez.
Porque
o mundo é fora deste hospital, Maria Adelaide. Tu sabes que eu sei que o mundo
é lá fora e sorris para mim como se tudo fosse sempre novo. E é sempre novo,
contigo a meu lado.
Gosto muito de ti.
Porque
eu quero ir lá fora respirar o mundo e beber um pouco deste Fevereiro que não
pode ser sempre doentio. E tu sabes que eu preciso beber o mundo. Tu sabes. Há
uma ordem, um equilíbrio que não pode deixar de existir simplesmente.
Tu
sabes.
Vamos, Maria Adelaide, antes que o dia
se esgote. Tu sabes. Vamos, Maria Adelaide, vamos ver os choupos e todas as
árvores do mundo. Vamos ver as montanhas e o quarto onde nos criam, mentindo. Vamos
visitar o mundo todo que fica para lá destas portas e destas palavras.
Porque,
como lágrimas, somos força invisível em cada mês, em cada estação; como o céu,
somos uma imensidade poderosa, viva, infinita. O nosso silêncio é a fúria das
ondas do mar sem fim que é o nosso amor.
Vamos,
Maria Adelaide. Vamo-nos amar sem fim.
Março. Março é a Primavera a nascer. Como
tu, Maria Adelaide, no dia do nosso casamento.
Parece
que não me vão deixar sair deste hospital nunca mais.
Com
certeza que os teus alunos devem estar a estranhar este longo período de
ausência. Eles já devem saber. Que interessa isso? Dizes-me com um sorriso
enquanto me beijas a testa pálida.
O
hospital é sempre a mesma coisa. (Descrição do hospital com laivos Realistas) Sempre
palidez, sempre cal, sempre gente a entrar e a sair. Há toda uma indiferença
por cada doença que se encontra em cada sala, em cada quarto, em cada esquina,
em cada cadeira. É cada um por si. E tu comigo. Sempre comigo, Maria Adelaide.
Sempre.
Tu
sabes tão bem como eu que vou morrer. Tu sabes. Eu sei. E finges ter esperança,
na esperança que eu acredite em ti. E eu sempre acreditei em ti, Maria
Adelaide. Sempre.
Os
médicos sempre a dizerem-te para eu não fazer nada, para repousar, para
descansar, e eu com uma vontade imensa de ver a Primavera nascer em cada manhã,
lá fora, no mundo que agora parece muito distante. No mundo que agora é uma
manhã de Março.
Eu
com uma vontade maior que uma lei. Uma vontade enorme de ver as amendoeiras em
flor, o rio a correr docemente, as flores a desabotoarem cada botão que é um
segredo para todo o mundo que é uma grande indiferença.
Depois
de eu morrer, vais-me continuar a amar?
Eu sempre a querer ver o mundo que era
fora daquele hospital, daquele quarto, mas os médicos não deixavam, o tempo não
deixava. A minha vontade era correr contigo a meu lado, voltarmos a ser felizes
em Paris e em todo o mundo, mas os médicos não deixavam, o tempo não deixava.
Tu
a sorrires para mim era um antídoto, uma paz que atravessa o sangue e as veias.
Os nossos beijos, Maria Adelaide, eram fogo que queimava por fora e por dentro.
As nossas lágrimas eram sangue que fervilhava em cada veia, em cada palpitação.
Crescíamos
dentro das coisas íntimas como ramos de árvores interiores que se espalham pelo
corpo que há dentro de cada homem, de cada vontade, de cada sonho. Crescíamos
dentro dos segredos e do silêncio que há em cada peito, em cada gesto que
carrega um significado.
A
nossa pele era um rio de memórias sem fim. Os nossos corpos eram uma noite
estrelada e romântica.
Que vais fazer à nossa casa? Vais
vendê-la? Vai deixar de ser Casa? Talvez
a nossa Casa seja o nosso amor, as
paredes que sustentam todo o nosso querer. Por isso, nunca seremos refugiados
ou sem-abrigo, porque nos temos um ao outro. Sempre. És a minha Casa.
Talvez.
O hospital cada vez mais pálido, mais
frio, mais sensabor. A tua mão sempre a aquecer a minha mão. O teu sorriso a
aquecer-me por dentro. A tua esperança sempre a dar-me forças, onde já não
havia tempo nem lugar para a força. Acentuar o trágico. (Racine teria desviado
o olhar).
Tu,
Maria Adelaide, amas-me sem fim, eu sei.
Tenho
medo que te esqueças de mim, depois de morrer. Tenho medo de me tornar numa
memória distante, vaga, que seja uma poeira, um pó de uma estante, uma
fotografia escondida. Tenho medo que tenhas medo de voltar a falar de mim.
Tenho medo que venhas a esconder o nosso amor que nunca acabará.
Tenho
medo que me esqueças.
Porque há forças mais poderosas que o
tempo. Há momentos mais eternos que o infinito. Há vidas, Maria Adelaide, que
se tornam intemporais nos outros.
Diz-me,
Maria Adelaide, o teu amor por mim vai ser uma arca sem chave, sem tesouro lá
dentro? Vais esconder as nossas fotografias? Vais queimar as minhas roupas? Vais
ter medo de falar de mim e do nosso amor?