sábado, 18 de agosto de 2012

Poema à noitinha... Cesário Verde

Manias

«O mundo é velha cena ensanguentada.
Coberta de remendos, picaresca;
A vida é chula farsa assobiada,
Ou selvagem tragédia romanesca.

Eu sei um bom rapaz, - hoje uma ossada -,
Que amava certa dama pedantesca,
Perversíssima, esquálida e chagada,
Mas cheia de jactância, quixotesca.

Aos domingos a déia, já rugosa,
Concedia-lhe o braço, com preguiça,
E o dengue, em atitude receosa,

Na sujeição canina mais submissa,
Levava na tremente mão nervosa, 
O livro com que a amante ia ouvir missa»

   
*«O livro de Ceśario Verde» é uma edição póstuma que reúne os poemas do escritor. Está publicado em várias edições

Um dia estive com «O Santo Guloso», as autoras e muitos amigos na Fnac de Gaia

Foi no final da manhã do dia 26 de Fevereiro que me juntei à Ana Paula Oliveira e à ilustradora Helena Veloso. Deixei a promessa de falar um pouco de como correu a apresentação do livro «O Santo Guloso» e de toda a atmosfera que nos rodeou. O tempo passou, passou... Mas só agora recupero algumas das coisas que disse (não tudo). Simples reflexões da minha experiência de livreiro.

E, claro está, também falei do livro das autoras... 

Fica o essencial:



"Na minha profissão sou muitas vezes solicitado a aconselhar leituras. Para todas as idades. No caso dos livros para os mais pequenos e jovens, tenho por princípio questionar exaustivamente o cliente. As idades são importantes. Ser rapaz ou rapariga interessa, depende da fase de crescimento onde se encontra. Se tem ou não hábitos de leitura. É essencial investigarmos, enquanto livreiros, que livros gostam de ler, qual foi o último que leram, se estão a fazer alguma colecção... Os seus gostos pessoais, etc... etc...

Nem sempre é fácil ser um educador de leitura. Às vezes dou por mim a aconselhar livros às crianças e a esbarrar na intransigência dos pais. Mas acredito que o processo de escolha de um livro infantil deve envolver pais e filhos. Não o que os pais impõem como seus gostos.


Hoje a oferta é muito maior e há imensos livros para escolher. Este sector não pára de crescer.

Altura para reflectir naquilo que os nossos pais liam. As aventuras de Emilio Salgari ou de Enid Blyton. Quem não se lembra da Condessa de Ségur ou de «As Mulherzinhas» de Louise May Alcott? E a minha geração dos quase 30? Continuamos a ler alguns destes clássicos. Juntamos os livros de «Uma Aventura», ofereciam-nos muitas enciclopédias juvenis (de história, ciências, mundo animal...), e os quadradinhos da Disney (Tio Patinhas, Donald e Mickey), «A Turma da Mónica» e a «Mafalda». «Asterix», «Tintin»... 

Qual é, então, a diferença destes dias para o 'hoje'?

Creio que a resposta está na quantidade de livros que se produzem ou traduzem. Acredito que a televisão trouxe imensas personagens aos livros. E também o contrário: os livros transformaram algumas personagens em verdadeiras estrelas de televisão. Quase todas as semanas conheço um herói novo. É, na verdade, um mundo complicado de acompanhar. 

Outra diferença essencial é o crescimento e a qualidade da ilustração. Hoje ela é reveladora da apreciação que se faz de um bom livro. Exemplos não faltam, como Danuta Wojciechowska. Mas também de autores que são escritores e ilustradores das suas obras. O português Afonso Cruz ou o australiano Shaun Tan

O 'presente' do livro infanto-juvenil não é só uma experiência de leitura. Passa, cada vez mais, pela apreciação de uma pequena peça de arte. Tem a dupla função de conquistar as crianças, mas também os pais. 

Fica o meu apelo: interessem-se pelo que lêem os vossos filhos. Leiam com eles. Só assim teremos leitores no futuro. Uma casa sem livros é uma casa sem graça. E sem graça são as pessoas que lá vivem. 


Foi  com imenso prazer que li «O Santo Guloso» e descobri uma lenda que não conhecia. É uma excelente história: para miúdos e graúdos. A adaptação é de Ana Paula Oliveira e a ilustração é de Helena Veloso.

Destaco a importância de dois aspectos nesta obra. Em primeiro lugar, é essencial divulgarmos as lendas e as histórias das nossas terras. Só assim perpetuamos nas gerações mais novas as nossas tradições, as crenças e os nossos valores. A nossa identidade.

O segundo aspecto que julgo importante referir é a ilustração desta obra. Este confronto da imagem com o texto estimula a nossa imaginação, transporta-nos para outros tempos, transmite-nos sensações e emoções que um texto por si só não atingiria.


Se me permitem, deixo então, a lenda muito resumidamente. Retirei-a do site da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira:

«A Festa das Fogaceiras é uma festa característica do concelho de Santa Maria da Feira que completou em 2005, quinhentos anos de história. Realiza-se a 20 de Janeiro.

Teve origem num voto ao mártir S. Sebastião, em 1505, altura em que a região foi assolada por um surto de peste que matou parte da população. Em troca de protecção, o povo prometeu ao santo a oferta de um pão doce chamado fogaça a todos aqueles que fossem mais pobres na freguesia.
Durante quatro anos a tradição foi quebrada e a peste regressou. Este acontecimento veio aumentar a devoção a uma das mais antigas tradições de Portugal.»

Muito obrigado por este convite e muito sucesso nas vendas deste livro."


*«O Santo Guloso» foi publicado pela editora Calendário das Letras. Esta apresentação foi feita no dia 26 de Fevereiro de 2012, na Fnac do Gaiashopping. A Ana Paula Oliveira ofereceu-me uma fogaça, no final da apresentação. Deliciosa!!

a-ver-livros: a mulher de cera de Connie Chadwell

Desenhas-me a lápis de cera 
no quadro negro em que me imaginas

Metes-me um copo na mão
- é sábado, não é? - 
e um livro

Derreto-me no calor 
das tuas mãos


* para conhecer melhor o trabalho da pintora texana Connie Chadwell é só seguir o link www.conniechadwell.com

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Poema à noitinha... Madre Teresa de Calcutá

Life

«Life is an opportunity, benefit from it.
Life is beauty, admire it.
Life is a dream, realize it.
Life is a challenge, meet it.
Life is a duty, complete it.
Life is a game, play it.
Life is a promise, fulfill it.
Life is sorrow, overcome it.
Life is a song, sing it.
Life is a struggle, accept it.

Life is a tragedy, confront it.
Life is an adventure, dare it.
Life is luck, make it.
Life is too precious, do not destroy it.
Life is life, fight for it.»


*Agnes Gonxha Bojaxhiu nasceu na Macedónia em 1910, filha de pais Albaneses. Foi naturalizada Indiana e beatificada em 2003 por João Paulo II, 6 anos depois de ter morrido em Calcutá.

1º Parágrafo: As Vozes de Marraquexe


Por três vezes tive contactos com camelos e todas elas terminaram tragicamente!


* Tradução de Isabel Ramalho
* Elias Canetti nasceu na Bulgária em 1905, a família emigrou  para Manchester em 1911, doutorou-se em Química em 1929


a-ver-livros: Gil Vicente encontra Jim Flora

"Antes quero burro que me carregue que cavalo que me derrube", disse Gil Vicente. 
Ou escreveu, melhor. Será que o disse alguma vez antes de o escrever? 
Será que o disse alguma vez depois de o escrever? 
Será que se citava quando, um copo extra, se fazia engraçado nos eventos palacianos de que era responsável? 
Será que o disse quando chegou ao purgatório, no meio de uma converseta com a regateira Marta Gil?


* para conhecer melhor o trabalho do ilustrador americano Jim Flora é só seguir o link www.jimfloraart.com ou o www.jimflora.com

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Poema à noitinha... Walt Whitman

Das Pessoas que Atingem Posições Elevadas

«Das pessoas que atingem posições elevadas,
cerimónias, riqueza, erudição, e similares:
para mim tudo isso a que chegam tais pessoas
afunda diante delas — a não ser quando acrescenta
um resultado qualquer para seus corpos e almas —
de modo que elas muitas vezes me parecem
desajeitadas e nuas, e para mim
uma está sempre zombando das outras
e a zombar dele mesmo ou dela mesma,
e o cerne da vida de cada qual
(a que se dá o nome de felicidade)
está cheio de pútrido excremento de larvas,
e para mim muitas vezes esses homens e mulheres
passam sem testemunhar as verdades da vida
e andam correndo atrás de coisas falsas,
e para mim são muitas vezes pessoas
que pautam as suas vidas por um hábito
que a elas foi imposto, e nada mais,
e para mim é gente triste muitas vezes,
gente afobada, estremunhados sonâmbulos
tacteando no escuro.»


*in Folhas de Erva

1º Parágrafo: Jornada de África


Estrada da Beira, Dezembro, mil novecentos e setenta: é um dia cinzento, cai uma chuva miudinha, Lázaro Asdrúbal olha tristemente as águas barrentas do Mondego, que vêm da serra carregadas de destroços. Conseguiu finalmente falar com o Chefe, teve de esperar quase quinze dias, apesar da urgência. Veio de propósito de Luanda para o informar do levantamento que se prepara no Norte da Província. Agora tem de guardar a resposta só para si: “Deixe andar, é um sacrifício necessário, só assim poderemos contar com o apoio do país e do Ocidente”. Os óculos na ponta do nariz, os esses quase assobiados. Lázaro Asdrúbal, não esquecerá a frieza, a secura e a determinação dos olhos de peneireiro com que o chefe o fitou.



* Manuel Alegre nasceu em Águeda em 1936
* Jornada de África é o seu primeiro romance (1989), momento até ao qual Manuel Alegre era basicamente reconhecido como poeta.
* Candidato à Presidência da República em 2006 e 2011, perdeu em ambas as eleições para Cavaco Silva


a-ver-livros: Javier Termenón

Não passo de um marcador de livros na tua vida, nunca o livro tão amado. 
Apenas um pedaço arrancado de mim, alongado de mim, 
quantas vezes amarrotado de mim,
entre as páginas que vais lendo com furor.

Mas sabes...
elas passam.
e eu vou continuar sempre a teu lado.


* para conhecer melhor o trabalho do ilustrador espanhol Javier Termenón é só seguir o link www.luisan.net/ilustradores ou o javiertermenon.blogspot.pt

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Por Este Mundo Acima: As Personagens


Pelos olhos de Sofia, ipsis verbis

Penso em muitas coisas enquanto as outras pessoas têm sexo com o meu corpo. Penso na matéria de história económica, penso na opção idiota por hebraico clássico, penso no dinheiro que tenho guardado. Não vejo o meu pai nos outros homens, não se trata disso. Só o vejo enquanto há dor; aí sim. Quando o corpo me dói sinto a sua proximidade de forma quase doentia.

E não tenho muitos amigos. Estes escolhi-os. Têm as suas vantagens. O Lourenço por ser político, por entender essa dimensão das coisas que, de certa forma, sempre me fascinaram. Jaime, será um caso de sucesso, tenho a certeza. Fará seja o que for. Será rico. Cheira bem, veste-se de acordo. Sei que me acha piada. Mas pouco mais. Eduardo é um pai e um filho em simultâneo, a sua ingenuidade pode matar. Precisa de mim para manter a realidade das coisas. E eu preciso de todos eles como muralha.

Pelos olhos de Eduardo, ipsis verbis

Era, afinal, filha de um militar, um grande homem que fizera a guerra em países distantes e em todos os sítios para onde o mandaram: uniforme impecável, rações limitadas, bacalhau pelo Natal, quinze dias de licença. Uma folha de serviço de fazer inveja. Era só a vida de um homem dedicado a obedecer.

Sempre me enervei com a vulgarização. Comecei a beber café com quinze anos, um gesto de adulto num corpo desgraçado de adolescente. Eu não era grande figura, já era gordo. Sempre fui. Na escola chamavam-me rabo de abóbora.

Fumava então.

Um fumador está pronto para um desafio, encara o corpo com arrogância e esquece o tamanho dos pulmões.

E a casa, esta casa onde os meus pais me conceberam, onde quase cheguei a nascer. É a minha melhor historiadora. Sabe tudo sobre mim, sobre a minha vida.

Durante semanas, apercebi-me da tensão, como se o mundo se estivesse a esticar até ao limite, cada vez mais distante e inexplicável; uma ruptura concreta.

Nunca quis acreditar que Sofia vivia em desespero. Sempre existiram pormenores que escolhi ignorar. Talvez a escrita fosse só mais um pormenor. Não sei. Para lidar com todas as vertentes da vida de Sofia, seria preciso tempo e estômago.

Uma coisa é verdade, apesar das diferenças, éramos uns dos outros: Jaime na arte, Lourenço na Politica, escrevendo nos jornais e nos blogues, Sofia salvando o mundo.

Gostava dessa ideia de sermos o tudo e o nada uns dos outros, cruzando a vida de outras pessoas, mas regressando àquela base de afecto e confiança.

Pouco antes do acidente eu era outro homem. A memória que – a que ainda me resta – é uma garantia disso mesmo.

As certezas de Jaime eram esmagadoras. Era um homem que não demonstrava qualquer espécie de receio ou insegurança. Mantinha em permanência um discurso de poder. Eu que o conhecia desde a escola primária, sabia algumas coisas, pequenas brechas que podiam revelar o avesso do que se via, mas escolhia o silêncio e alinhava com ele porque o amava. Era o meu amigo mais antigo. Jaime estava, decerto, grato pela minha discrição e por nunca falarmos de nada que fosse incriminador da sua imagem pública.

Cerro os olhos. Não o quero ver. Está tudo perdido. Preciso de me libertar, não posso ficar preso, não posso sequer gostar de Pedro. É preferível rejeitá-lo já. Os laços não se criam com rapidez, muito menos num mundo assim. Ou não, talvez seja o contrário.

Lourenço era difícil. Sofia era pior. Jaime vivia noutra dimensão. Eu, o mais equilibrado de todos. Agora só os queria de volta. Dizer-lhes as coisas que deveria ter dito.
Sofia, nunca serás feliz. Escolheste esse caminho. Vive a tristeza ao limite, como queiras, mas não culpes apenas o teu pai nem qualquer outro homem.
Lourenço, a vida não vai chegar para o que queres fazer, e vais morrer como todos nós.
A minha vida não valeria nada sem ti.

Ser-se coerente uma vida inteira, Pedro, é o maior acto de desinteligência de todos. Desiste de querer compreender e de dar rótulos.

E, quase no fim: A noiva chegou de autocarro.

Inesperadamente.
  
Ou pensavam que eu ia contar tudo!


1º Parágrafo: Memória de Elefante


O hospital em que trabalhava era o mesmo a que muitas vezes na infância acompanhara o pai: antigo convento de relógio de junta de freguesia na fachada, pátio de plátanos oxidados, doentes de uniforme vagabundeando ao acaso tontos de calmantes, o sorriso gordo do porteiro a arrebitar os beiços para cima como se fosse voar: de tempos a tempos, metamorfoseado em cobrador, aquele Júpiter de sucessivas faces surgia-lhe à esquina da enfermaria de pasta de plástico no sovaco a estender um papelucho imperativo e suplicante:
 - A quotazinha da Sociedade, senhor doutor.



a-ver-livros: coisas que detesto com Silvana Cimieri

Detesto esperar que chegue a paixão
enquanto a leio nos livros de alguém.

Detesto.


* para conhecer melhor o trabalho do artista italiana Silvana Cimieri é só seguir o link www.myspace.com/silvanacimieri

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Poema à noitinha... Paul Verlaine

Nevermore 

«Ah, lembrança, lembrança, que me queres? O Outono
Fazia voar os tordos plo ar desmaiado

E o sol dardejava um monótono raio
No bosque amarelado onde a nortada ecoa.

A sonhar caminhávamos os dois, a sós,
Ela e eu, pensamento e cabelos ao vento.
De repente, fitou-me em olhar comovente:
«Qual foi o teu mais belo dia?» disse a voz

De oiro vivo, sonora, em fresco timbre angélico.
Um sorriso discreto deu-lhe a minha réplica
E então, como um devoto, beijei-lhe a mão branca.

— Ah! as primeiras flores, como são perfumadas!
E como em nós ressoa o murmúrio vibrante
Desse primeiro sim dos lábios bem-amados!»



*Paul Verlaine nasceu em França no ano de 1844. Problemas com droga e com o álcool atiraram-no para a rua. Era viciado em absinto. Morreu novo e só, corria o ano de 1896.

1º Parágrafo: A Insustentável Leveza do Ser


O eterno retorno é uma ideia misteriosa de Nietzsche que, com ela, conseguiu dificultar a vida a não poucos filósofos: pensar que, um dia, tudo o que se viveu se há-de repetir outra vez e que essa repetição se há-de repetir ainda uma e outra vez, até ao infinito! Que significado terá este mito insensato?




* Tradução de Joana Varela
* Adaptado ao cinema, realizado por Philip Kaufman, com Daniel Day-Lewis, Juliette Binoche, Lena Olin
 


a-ver-livros: até à China com Liu Ye

Amor, ias buscar-me à China? 
Ia buscar-te ao fim do mundo. 
Amor, ias buscar-me tão longe?
Tão longe quanto for preciso.
Amor, ias buscar-me dentro de um livro?

Desculpa, não sei ler. 


* para conhecer melhor o trabalho do artista chinês Liu Ye é só seguir o link www.artnet.com/artists ou o wikipedia.org/wiki/Liu_Ye

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Alice no País das Maravilhas em stop motion


Imaginação e diversão em mais uma leitura da imortal história da Alice no País das Maravilhas, desta feita uma animação em stop-motion pela designer russa Irina Neustroeva.

1º Parágrafo: A Solidão dos Inconstantes


Lembro-me da primeira vez que o vi. Lembro-me do dia. Lembro-me da hora. Lembro-me do calor daquele dia cinzento que acabou em trovoada de Verão. Lembro-me das nuvens a empurrarem-se umas às outras. Lembro-me da água, gotas gordas, anafadas, pesadas, mornas, carregadas, a cair em subtil violência. Um fim de tarde de silêncio e trovões. Uma descarga de água sobre uma terra quase a arder. Lembro-me dos óculos castanhos de massa. Lembro-me da t-shirt verde musgo que lhe dançava no corpo. Lembro-me dos ténis castanhos, com atacadores azul-marinho, lembro-me que cheirava a terra molhada, lembro-me que tinha cortado um dedo a descascar uma maçã. Como é que é possível eu lembrar-me dos atacadores, da cor dos atacadores. Há coisas mesmo ridículas.


a-ver-livros: ao sol com Federico Jordan

Algures no mundo, as torres da igreja de San Francisco tocaram as seis e meia da manhã e um ilustrador acordou para mais um dia. Olhou-se no espelho e murmurou: a ilustração é a minha vingança. Agarrou no sol, imaginou-o lendo, e depois foi comer um leite creme.

Ou talvez não.



* para conhecer melhor o trabalho do ilustrador mexicano Federico Jordan é só seguir o link www.fjordan.com ou o blog.fjordan.com

domingo, 12 de agosto de 2012

(ao domingo) Letras Focadas

(ao domingo) Letras Focadas

“Na ponta da pena, soltam-se letras conjugadas, bem focadas, para serem percebidas”

Esta noite, escrita de Emilio Miranda. Num texto poético, uma breve autobiografia.
Leiam...vale a pena. Ilustrado por olhares meus.

Como sussurros de embondeiros
[Aos meus Pais e Irmãos]


I

A maior parte das coisas passa por nós como uma brisa, às vezes acaricia-nos o rosto e os cabelos, mas logo se perde num destino ignorado. No entanto, nada do que nos toca, desaparece sem deixar algo. Muitas vezes, só muito mais tarde nos damos conta da importância do que ficou: ou, melhor, do que passou por nós.
Somos o resultado de muitas brisas.

II

Quando me questiono acerca das inúmeras brisas que me marcaram, não posso, não consigo esquecer, aquela que me fez despertar para a vida.
Tinha um cheiro intenso a maresia, o travo salgado que reconheci, como se tivesse sido, numa outra existência, uma qualquer criatura marinha.


III

Este pensamento só o esbocei anos mais tarde, quando já era suficientemente racional para perceber que enquanto vivemos estamos permanentemente a confrontar-nos com memórias, reminiscências de que somos reféns, mas também resultado, obra de uma qualquer divindade opípara.

IV

As minhas lembranças estão repletas de aromas olfativos, mas também de aromas visuais.
Há sobretudo muita luz.
Serão as memórias história? Far-se-á a história de memórias? E de cheiros?

V

De tílias, de laranjeiras, de brisas salgadas de mar. De terra molhada, de cacimbo, de mangais ao sol, de crepúsculos e de alvoradas.
Parecem plantar-se dentro de mim, com a intensidade de sementes profundamente cravadas na memória.

VI

A Maianga é o primeiro local de que me recordo e está associado a esse inefável odor de caranguejos a cozer, numa de tarde de sábado. Como sei que era sábado, é uma incógnita, pois não passava ainda de uma criança a despertar para a consciência de mim mesmo.
Devia ter uns quatro anos, porque há ainda outras lembranças associadas à Maianga, antes de termos mudado para o Cazenga, onde o cheiro dos cadernos novos, da borracha e dos lápis de cor, com que entrei para o colégio, mal fiz os cinco anos, marcou o início desses dias.
A pasta nova foi um dos meus primeiros objetos de vaidade pessoal, mas também aquele que me confrontou, pela primeira vez, com a consciência dos marcos decisivos, que haveria de me revisitar ao longo da vida…


VII

Do colégio recordo sobretudo as cores dos primeiros desenhos: cores quentes e intensas com que imaginava o mundo tal como o via.
Uma casa, paredes retilíneas, janelas perfeitamente enquadradas, o telhado vermelho e o azul do céu. Tons de laranja, verdes macios, um paraíso de cor.
Chuvas tropicais, embondeiros com as raízes imersas em lagoas…

VIII

De-tempos-a-tempos, os «barriga de jinguba» largavam paraquedistas sobre os musseques, e pequenas avionetas faziam chover nuvens de folhetos que perseguíamos em alegre correria, ou fumigavam as águas paradas com inseticida, cujo cheiro se demorava, até ser levado por uma brisa. 

IX

Entre as lembranças mais marcantes está aquela em que regressávamos da foz do Cuanza depois de um dia de passeio.
Mortos e destroços espalhados pelo asfalto e o fantasma de um homem que chorava, alheio à ferida hedionda que lhe rasgava a boca…

X

A consciência da morte é porventura a mais forte e a que durante mais tempo perdura, sobretudo quando vem acompanhada do cheiro doce das rosas, dos cravos e das buganvílias.
Como quando a pequena Eugénia morreu.
De que valem as lágrimas quando expira alguém, ainda mais quando não se trata de uma criança normal, capaz de correr, saltar e alimentar-se pela própria mão?

XI

A noção concreta e física de que tudo pode mudar num ápice atingiu-me pela primeira vez na manhã em que entrei na padaria do bairro e escutei os relatos dos massacres nas distantes fazendas coloniais; lugares de que não suspeitava sequer a existência. Homens, mulheres e crianças tinham sido barbaramente massacrados a golpes de catana…
Abriu-se em mim uma sombria e escura porta, por onde a minha imaginação entrou vadia. Percebi então a brutalidade da vida e tive a sensação de que toda a ordem pode simplesmente ruir, numa súbita e inexplicável tempestade.
Desde essa manhã, a guerra entrou nas nossas vidas.


XII

Um dia, ao final da tarde, o pai estava na rua, talvez a fumar, quando o carro passou e metralhou a casa. Não fosse ter entrado, segundos antes, e teria sido atingido pelos tiros. A partir daí o sossego terminou. Os tiros repetiram-se e entre noites em casa dos tios e no hospital universitário (onde o pai e a mãe trabalhavam), e alguns sustos, acabamos por fugir do Cazenga e fomos viver para a António Barroso, onde ficamos até ao embarque para a metrópole.

XIII

Era inverno, quando chegamos, e através das janelas do comboio a terra era branca… e o cheiro do ar, de tão frio, mordia as narinas…
Em contrapartida, no Cazenga, ao meio-dia o chão queimava a planta dos pés e íamos calçar-nos para podermos continuar a brincar…
Andar descalços era sermos livres…


XIV

Tão livres que não havia dia em que o pai não tivesse que ir chamar-nos para o almoço…
[Não é possível ensinar o tempo, a quem não se rege por ele…]
No Cazenga, a terra era macia e até o frio do cacimbo estava longe do gelo dos invernos em Lordelo…
Chuva, frio e nevoeiro, e o cheiro acre a fumo…

XV

No verão calcorreávamos matas e ribeiras, à cata de ninhos ou banhando-nos em levadas, tanques de rega e lagoas… tão diferente dos banhos tomados na água barrenta das grandes chuvadas do Cazenga, onde éramos como girinos, chafurdando em água lodosa…
Apesar de a água correr em torneiras e haver uma banheira onde todos os dias tomávamos banho.

XVI

Em Lordelo havia apenas uma torneira na fonte onde íamos buscar a água a cântaros, e nenhuma banheira em casa… Por isso, os banhos eram escassos, sobretudo nos longos meses de inverno, sempre tomados à pressa na grande bacia de plástico, a tiritar…

XVII

Mas o frio e o nevoeiro conferiam um ar de mistério a tudo quando se avistava nos montes e terrenos que envolviam o quinteiro da casa.
Antiga, feita de pedra e estuque, com as vigas e as telhas à mostra… varandas abertas à chuva, ao vento e ao frio… mas também ao sol, nas longas tardes de verão.

XVIII

As memórias são uma espécie de lamparina que espreita por entre a bruma, nas longas noites de inverno da aldeia.
A casa ficava ao cimo da rua, um pouco antes da igreja e à direita. Ao lado, e descendo junto ao muro do quinteiro, a lembrar a muralha de um castelo, escorria o quelho que levava ao souto e à escola, de onde se avistava outra muralha, a do cemitério, que parecia mais uma fortaleza rompendo as neblinas que subiam da terra fria, para se unirem às que desciam do álgido céu cinzento.
Tudo era tão antigo que ou era de romanos ou de mouros: as minas, as pontes, os carreiros escusos, os olivais contorcidos nas encostas dos montes…

XIX

Havia cheiros novos, como o do azeite ou o do mosto, mas o que se entranhava na roupa era o oleoso e denso, do fumo… Encolhidos defronte da lareira, não havia como escapar a este persistente odor, que devia ser o que tinham os índios quando se sentavam à volta das fogueiras nos filmes de cobóis.

XX

Tantas coisas diferentes!
O capim passou a ser erva, os baixos lojas, e o alimento das vacas penso. As tabernas casas de pasto. Os campos lameiros. O chão de soalho, em vez de mosaico fresco, onde sabia tão bem deitarmo-nos nas tardes quentes de Luanda…
A mãe saía e destinava-nos as tarefas do dia. Limpar o chão era a que mais gostava de fazer. O pano deslizava no mosaico cinzento dos quartos, da sala, do corredor e da cozinha, e a casa ficava a cheirar a fresco, apesar do calor que incendiava o dia lá fora.

XXI

No quintal da casa do Cazenga o pai semeava batatas, ervilhas e tomates, nos tempos livres. Feijões, pés de gindungo e favas. E tudo nascia como por magia… Se bem que nunca me tivesse questionado acerca disso, senão quando vi o tempo que tudo demorava a crescer na metrópole. Tanta fome tinha a terra para dar tão pouco e apenas uma vez por ano! Batatas semeadas inteiras, enquanto no Cazenga bastava lançar fora as cascas das aparas.

XXII

Descolonização! Que conceito extraordinário, o que divide, fracciona, abre fendas…


XXIII

Quando chegamos apenas os nossos familiares mais próximos nos olhavam como se olha para alguém de quem se gosta, sem recear que viéssemos tirar-lhes o pouco que tinham, sem invejas nem recriminações. E aqueles que tanto defendiam a libertação dos povos das colónias e a igualdade entre os homens, independentemente da cor da pele, olhavam para nós como estranhos, como alguém que não se deseja… Durante os primeiros anos encaram-nos como uma espécie diferente de gente a quem chamavam exploradores, retornados e outras coisas mais que apenas o tempo fez esquecer. Talvez seja normal que a chegada de estranhos, nas circunstâncias em que se deu a nossa, fosse encarada como uma invasão, uma ameaça.
Mas o que parecia que nem éramos gente do mesmo povo, que não pertencíamos à grande nação imperial que começava a esboroar-se.

XXIV

Os muros do quinteiro eram ameias para assaltos e lutas de espada, palco onde os filmes da televisão se transformavam em brincadeiras arrojadas. A Flecha Negra começou a dar aos sábados e os arcos e as flechas vieram para ficar.
A metrópole era um reino maravilhoso. E sendo de facto maravilhoso, não deixava de ser povoado por coisas e histórias estranhas, como as de bruxas, de almas penadas e de maus-olhados. De tal modo eram assustadoras que o cemitério parecia vigiar-nos os passos, noite alta, quando regressávamos a casa, da venda do povo e do café, depois de a televisão fechar.

XXV

Um casal sonha e faz milhares de quilómetros para concretizar esse sonho, e 27 anos depois regressa com as mãos vazias. Mas os filhos também podem ser o melhor dos sonhos… e o pai e a mãe trouxeram quatro.
As brisas ainda sopram e soprarão enquanto a vida ditar a sua lei, como sussurros de embondeiros a lembrarem-nos que pudemos já não estar onde nascemos, mas seremos sempre desse lugar, mais do que de qualquer outro.



FIM
Texto de Emílio Miranda
Fotos de Elsa Martins Esteves

Museu do Oriente lança workshop de manga


O Museu do Oriente organizou nos dias 9 e 10 de Agosto e volta a repetir a 6 e 7 de Setembro, um workshop de manga. Os formadores – autores da revista manga Banzai – fornecem as bases para a prática do desenho manga e criação de páginas de banda desenhada.

O projecto tem a colaboração da NCreatures e para participar é necessária marcação até 30 de Agosto (para os dias 6 e 7 de Setembro).

A iniciativa insere-se no conjunto de oficinas pensadas em exclusivo para as férias de Verão dos mais pequenos no Museu do Oriente. O objectivo é sensibilizar, através de uma abordagem lúdico-didáctica das colecções, para as diferentes culturas orientais.

Workshop de manga
Workshop prático de criação de banda desenhada no estilo manga
Oficinas de longa duração – férias de Verão
Datas:

6 e 7 de Setembro
Horário:
1º dia: 10:00 – 13:00; 14:00 – 18:00
2º Dia: 10:00 – 13:00; 14:00 – 17:30

Público-alvo: Iniciados, a partir dos 12 anos (devendo os encarregados de educação dos menores assegurar o seu acompanhamento no intervalo para almoço).
Participantes: Mín.10; Max. 15
Preço: 60 euros por participante

a-ver-livros: era uma vez uma freira e Gustavo Rosa

Jorge Amado - que eu saiba, mas quem souber melhor que me desminta - nunca incluiu entre as suas personagens uma freira leitora. Esta, com pinta de quem vai para trás do altar partilhar o sangue de Deus com o sacristão, encontrei-a entre as obras de outro brasileiro, o ilustrador Gustavo Rosa.
Amado ia achar-lhe graça, quero crer. Amén.


* para conhecer melhor o trabalho do ilustrador brasileiro Gustavo Rosa é só seguir o link www.gustavorosa.com.br

Amado: o poema e a música


Consta que o poema "É Doce Morrer no Mar" nasceu em 1941 numa reunião de amigos em casa do pai de Jorge Amado, o coronel João Amado de Faria. No meio da animação, o músico Dorival Caymmi glosou trauteando o tema do livro "Mar Morto": "É doce morrer no mar / nas ondas verdes do mar". Amado não se encolheu e completou ali mesmo o resto do poema/canção.Caymmi recorda: "Chegou a haver um concursinho entre os presentes [entre outros, Erico Veríssimo e Clóvis Amorim] mas acabaram prevalecendo os versos de Jorge".

"É Doce Morrer no Mar" viria a ser gravado por Caymmi.




"É doce morrer no mar

É doce morrer no mar
Nas ondas verdes do mar

A noite que ele não veio foi
Foi de tristeza pra mim
Saveiro voltou sozinho
Triste noite foi pra mim

É doce morrer no mar
Nas ondas verdes do mar

Saveiro partiu
de noite foi
Madrugada não voltou
O marinheiro bonito
sereia do mar levou

É doce morrer no mar
Nas ondas verdes do mar

Nas ondas verdes do mar meu bem
Ele se foi afogar
Fez sua cama de noivo no colo de Iemanjá"

* * * * * * * * * * * *

Poemas de Jorge Amado? Pois sim, se até os publicou. Não que alguém os encontre. O livro- raríssimo! - chama-se "A Estrada do Mar" e foi publicado em 1938. Se encontrarem algum, agarrem-no. 
Entretanto, segundo notícias recentes, vários poemas de Jorge Amado, uma espécie de poemas-prosa, escritos para a voz das suas personagens, têm vindo a ser transpostos para canção. 

João Bosco assina "Lamento de Glória", que é agora tema da personagem Glória - lembram-se da teúda e manteúda do coronel Coriolano Ribeiro? -, interpretada pela actriz Suzana Pires no remake da novela "Gabriela Cravo e Canela" (que estreou em Junho na Rede Globo e que a SIC vai emitir também mais para o final deste ano).
Já "Cantiga Para Ninar Malvina" - que abre o terceiro capítulo do livro de Amado - tem música de Dorival Caymmi, que fez também "Alegre Menina", o tema de amor entre Gabriela e seu Nacib, cantado por Djavan. Ouçam. Bonito, não é?