Como
sussurros de embondeiros
[Aos
meus Pais e Irmãos]
I
A
maior parte das coisas passa por nós como uma brisa, às vezes acaricia-nos o
rosto e os cabelos, mas logo se perde num destino ignorado. No entanto, nada do
que nos toca, desaparece sem deixar algo. Muitas vezes, só muito mais tarde nos
damos conta da importância do que ficou: ou, melhor, do que passou por nós.
Somos
o resultado de muitas brisas.
II
Quando
me questiono acerca das inúmeras brisas que me marcaram, não posso, não consigo
esquecer, aquela que me fez despertar para a vida.
Tinha
um cheiro intenso a maresia, o travo salgado que reconheci, como se tivesse sido,
numa outra existência, uma qualquer criatura marinha.
III
Este
pensamento só o esbocei anos mais tarde, quando já era suficientemente racional
para perceber que enquanto vivemos estamos permanentemente a confrontar-nos com
memórias, reminiscências de que somos reféns, mas também resultado, obra de uma
qualquer divindade opípara.
IV
As
minhas lembranças estão repletas de aromas olfativos, mas também de aromas
visuais.
Há
sobretudo muita luz.
Serão
as memórias história? Far-se-á a história de memórias? E de cheiros?
V
De
tílias, de laranjeiras, de brisas salgadas de mar. De terra molhada, de
cacimbo, de mangais ao sol, de crepúsculos e de alvoradas.
Parecem
plantar-se dentro de mim, com a intensidade de sementes profundamente cravadas
na memória.
VI
A
Maianga é o primeiro local de que me recordo e está associado a esse inefável odor
de caranguejos a cozer, numa de tarde de sábado. Como sei que era sábado, é uma
incógnita, pois não passava ainda de uma criança a despertar para a consciência
de mim mesmo.
Devia
ter uns quatro anos, porque há ainda outras lembranças associadas à Maianga,
antes de termos mudado para o Cazenga, onde o cheiro dos cadernos novos, da
borracha e dos lápis de cor, com que entrei para o colégio, mal fiz os cinco
anos, marcou o início desses dias.
A
pasta nova foi um dos meus primeiros objetos de vaidade pessoal, mas também
aquele que me confrontou, pela primeira vez, com a consciência dos marcos
decisivos, que haveria de me revisitar ao longo da vida…
VII
Do
colégio recordo sobretudo as cores dos primeiros desenhos: cores quentes e
intensas com que imaginava o mundo tal como o via.
Uma
casa, paredes retilíneas, janelas perfeitamente enquadradas, o telhado vermelho
e o azul do céu. Tons de laranja, verdes macios, um paraíso de cor.
Chuvas
tropicais, embondeiros com as raízes imersas em lagoas…
VIII
De-tempos-a-tempos,
os «barriga de jinguba» largavam paraquedistas sobre os musseques, e pequenas
avionetas faziam chover nuvens de folhetos que perseguíamos em alegre correria,
ou fumigavam as águas paradas com inseticida, cujo cheiro se demorava, até ser
levado por uma brisa.
IX
Entre
as lembranças mais marcantes está aquela em que regressávamos da foz do Cuanza depois
de um dia de passeio.
Mortos
e destroços espalhados pelo asfalto e o fantasma de um homem que chorava,
alheio à ferida hedionda que lhe rasgava a boca…
X
A
consciência da morte é porventura a mais forte e a que durante mais tempo
perdura, sobretudo quando vem acompanhada do cheiro doce das rosas, dos cravos
e das buganvílias.
Como
quando a pequena Eugénia morreu.
De
que valem as lágrimas quando expira alguém, ainda mais quando não se trata de
uma criança normal, capaz de correr, saltar e alimentar-se pela própria mão?
XI
A
noção concreta e física de que tudo pode mudar num ápice atingiu-me pela
primeira vez na manhã em que entrei na padaria do bairro e escutei os relatos dos
massacres nas distantes fazendas coloniais; lugares de que não suspeitava
sequer a existência. Homens, mulheres e crianças tinham sido barbaramente massacrados
a golpes de catana…
Abriu-se
em mim uma sombria e escura porta, por onde a minha imaginação entrou vadia. Percebi
então a brutalidade da vida e tive a sensação de que toda a ordem pode
simplesmente ruir, numa súbita e inexplicável tempestade.
Desde
essa manhã, a guerra entrou nas nossas vidas.
XII
Um
dia, ao final da tarde, o pai estava na rua, talvez a fumar, quando o carro passou
e metralhou a casa. Não fosse ter entrado, segundos antes, e teria sido
atingido pelos tiros. A partir daí o sossego terminou. Os tiros repetiram-se e
entre noites em casa dos tios e no hospital universitário (onde o pai e a mãe
trabalhavam), e alguns sustos, acabamos por fugir do Cazenga e fomos viver para
a António Barroso, onde ficamos até ao embarque para a metrópole.
XIII
Era
inverno, quando chegamos, e através das janelas do comboio a terra era branca…
e o cheiro do ar, de tão frio, mordia as narinas…
Em
contrapartida, no Cazenga, ao meio-dia o chão queimava a planta dos pés e íamos
calçar-nos para podermos continuar a brincar…
Andar
descalços era sermos livres…
XIV
Tão
livres que não havia dia em que o pai não tivesse que ir chamar-nos para o
almoço…
[Não
é possível ensinar o tempo, a quem não se rege por ele…]
No
Cazenga, a terra era macia e até o frio do cacimbo estava longe do gelo dos
invernos em Lordelo…
Chuva,
frio e nevoeiro, e o cheiro acre a fumo…
XV
No
verão calcorreávamos matas e ribeiras, à cata de ninhos ou banhando-nos em
levadas, tanques de rega e lagoas… tão diferente dos banhos tomados na água
barrenta das grandes chuvadas do Cazenga, onde éramos como girinos, chafurdando
em água lodosa…
Apesar
de a água correr em torneiras e haver uma banheira onde todos os dias tomávamos
banho.
XVI
Em
Lordelo havia apenas uma torneira na fonte onde íamos buscar a água a cântaros,
e nenhuma banheira em casa… Por isso, os banhos eram escassos, sobretudo nos
longos meses de inverno, sempre tomados à pressa na grande bacia de plástico, a
tiritar…
XVII
Mas
o frio e o nevoeiro conferiam um ar de mistério a tudo quando se avistava nos
montes e terrenos que envolviam o quinteiro da casa.
Antiga,
feita de pedra e estuque, com as vigas e as telhas à mostra… varandas abertas à
chuva, ao vento e ao frio… mas também ao sol, nas longas tardes de verão.
XVIII
As
memórias são uma espécie de lamparina que espreita por entre a bruma, nas
longas noites de inverno da aldeia.
A
casa ficava ao cimo da rua, um pouco antes da igreja e à direita. Ao lado, e
descendo junto ao muro do quinteiro, a lembrar a muralha de um castelo, escorria
o quelho que levava ao souto e à escola, de onde se avistava outra muralha, a
do cemitério, que parecia mais uma fortaleza rompendo as neblinas que subiam da
terra fria, para se unirem às que desciam do álgido céu cinzento.
Tudo
era tão antigo que ou era de romanos ou de mouros: as minas, as pontes, os
carreiros escusos, os olivais contorcidos nas encostas dos montes…
XIX
Havia
cheiros novos, como o do azeite ou o do mosto, mas o que se entranhava na roupa
era o oleoso e denso, do fumo… Encolhidos defronte da lareira, não havia como
escapar a este persistente odor, que devia ser o que tinham os índios quando se
sentavam à volta das fogueiras nos filmes de cobóis.
XX
Tantas
coisas diferentes!
O
capim passou a ser erva, os baixos lojas, e o alimento das vacas penso. As
tabernas casas de pasto. Os campos lameiros. O chão de soalho, em vez de mosaico
fresco, onde sabia tão bem deitarmo-nos nas tardes quentes de Luanda…
A
mãe saía e destinava-nos as tarefas do dia. Limpar o chão era a que mais
gostava de fazer. O pano deslizava no mosaico cinzento dos quartos, da sala, do
corredor e da cozinha, e a casa ficava a cheirar a fresco, apesar do calor que
incendiava o dia lá fora.
XXI
No
quintal da casa do Cazenga o pai semeava batatas, ervilhas e tomates, nos
tempos livres. Feijões, pés de gindungo e favas. E tudo nascia como por magia…
Se bem que nunca me tivesse questionado acerca disso, senão quando vi o tempo
que tudo demorava a crescer na metrópole. Tanta fome tinha a terra para dar tão
pouco e apenas uma vez por ano! Batatas semeadas inteiras, enquanto no Cazenga
bastava lançar fora as cascas das aparas.
XXII
Descolonização!
Que conceito extraordinário, o que divide, fracciona, abre fendas…
XXIII
Quando
chegamos apenas os nossos familiares mais próximos nos olhavam como se olha
para alguém de quem se gosta, sem recear que viéssemos tirar-lhes o pouco que
tinham, sem invejas nem recriminações. E aqueles que tanto defendiam a
libertação dos povos das colónias e a igualdade entre os homens,
independentemente da cor da pele, olhavam para nós como estranhos, como alguém
que não se deseja… Durante os primeiros anos encaram-nos como uma espécie
diferente de gente a quem chamavam exploradores, retornados e outras coisas
mais que apenas o tempo fez esquecer. Talvez seja normal que a chegada de
estranhos, nas circunstâncias em que se deu a nossa, fosse encarada como uma
invasão, uma ameaça.
Mas
o que parecia que nem éramos gente do mesmo povo, que não pertencíamos à grande
nação imperial que começava a esboroar-se.
XXIV
Os
muros do quinteiro eram ameias para assaltos e lutas de espada, palco onde os
filmes da televisão se transformavam em brincadeiras arrojadas. A Flecha Negra
começou a dar aos sábados e os arcos e as flechas vieram para ficar.
A
metrópole era um reino maravilhoso. E sendo de facto maravilhoso, não deixava
de ser povoado por coisas e histórias estranhas, como as de bruxas, de almas
penadas e de maus-olhados. De tal modo eram assustadoras que o cemitério
parecia vigiar-nos os passos, noite alta, quando regressávamos a casa, da venda
do povo e do café, depois de a televisão fechar.
XXV
Um
casal sonha e faz milhares de quilómetros para concretizar esse sonho, e 27
anos depois regressa com as mãos vazias. Mas os filhos também podem ser o
melhor dos sonhos… e o pai e a mãe trouxeram quatro.
As
brisas ainda sopram e soprarão enquanto a vida ditar a sua lei, como sussurros
de embondeiros a lembrarem-nos que pudemos já não estar onde nascemos, mas
seremos sempre desse lugar, mais do que de qualquer outro.
FIM
Texto de Emílio Miranda
Fotos de Elsa Martins Esteves