quinta-feira, 21 de agosto de 2014

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

o amOR no congela-DOR



Os amores da adolescência, os primeiros, duram para sempre, como se fósseis e os amantes paleontólogos de profissão, como se múmias e arqueólogos, como se folhas secas de herbário e botânicos, como se borboletas presas por alfinetes a quadros forrados a veludo vermelho e pendurados, não na parede do escritório mas na parede do estômago, e lepidopterólogos, como se um outro coração um outro corpo, como se um taxidermista de memórias gravadas à flor da pele na fugaz arte de preservar a beleza, como se uma doença coronária, uma mal formação do coração, um sopro, o inevitável vendaval.
Foi meu colega de turma, quase de carteira, Joana e João, apenas um corredor a separar-nos, três palmos vazios, um abismo, uma fenda no chão, uma parede invisível, uma montanha, um muro a lamentar, uma fronteira entre países em guerra, arame farpado e chão minado, motivo pelo qual, três palmos vazios, talvez, quem sabe, João nunca viu Joana.
Nunca me viu a mim.
Seria mesmo eu?
Eu própria não consigo garantir que aquela miúda de óculos de massa, franja, saia escocesa e cachecol no mesmo padrão xadrez, era eu.
No álbum de fotografias na mesinha de centro da sala, organizado pela minha mãe (a minha mãe é muito organizada), com data, local e intervenientes, consta que era eu, curiosamente os mesmos óculos de massa, a mesma franja, a mesma saia escocesa e o cachecol no mesmo padrão xadrez.
Não tenho mais provas do que isto.
Às vezes parece-me que inexisto por insuficiência de provas.
Enquanto todos sem dúvidas testemunham, garantem unânimes, que João era João.
João sem Medo, João I, João Baptista, Don Juan, João Coração de Leão, não era mas podia ser!, sonho de uma noite de Verão, o herói da malta, o terror e a constante dor de cabeça (da leve cabeça pesada à pesada enxaqueca) de todos os professores sem excepção, do corpo docente, uma guerra corpo a corpo, e a que mais batalhas perdia, a professora de inglês.
João que apenas conseguia dizer de forma mais sofrível do que escorreita um my name is João and I am fithteen, João cujo inglês não passava do Love me do dos Beatles, não dois quartetos e dois tercetos, não um soneto, e não dos Beatles porque canção de embalar na voz da mãe, vá Deus saber onde e como a aprendeu, língua estrangeira mais do que suficiente para beijar as bocas de todas as raparigas da escola, mesmo das mais velhas, encantadas com a sua cara de anjo mau e com as quais João aprendeu (havia matérias em que se revelava um aluno de excelente) as formas, os feitios e as possíveis serventias dos corpos.
Correcção: João beijava, mais comia do que beijava, todas as bocas menos a minha boca.
A minha boca fechada, à fome, num sorriso triste. Sorriso nenhum.
Assim o João do meu coração, audaz, voraz, alegre, perspicaz, titular de todas as invejas e de todos os desejos, o rapaz mais popular da escola, para mais o melhor a jogar à bola, um príncipe perfeito a que todos, com orgulho e devoção, ai meu rico São João, prestavam vassalagem.
Porém sobre João passaram mais de trinta anos.
O tempo é uma máquina de terraplanar.
O tempo é uma tragédia doméstica.
João velho e torto, sem dentes, sem estudos, uma vida de pedreiro suspensa em andaimes, uma vida a rebocar paredes, a ouvir-se a cantarolar o Love me do abafado pelo barulho de máquinas, de trânsito, de aviões, de pássaros nenhuns.
Assim João tão diferente de João, ou a vida matou João sem Medo, o herói da malta.
Assim eu, lentes de contacto, fato calças-casaco, blusa de seda, dentadura ordenada e original, Joana a mosca morta que eu mesma me encarreguei de matar, larva, crisálida, borboleta.
Assim encontrei João à porta da minha casa, dez minutos atrasado, uma vida inteira atrasado, depois de contratar os serviços de uma empresa de construção.
Obras em casa, outro tipo de tragédia.
João irreconhecível.
Como se fosse possível eu não reconhecer João.
João a cumprir o vaticinado, parece que é bruxa, pela minha mãe, e não que a minha mãe conhecesse João, todas as mães a mesma maldição, se não estudas vais para trolha, com respectivo homólogo feminino se não estudas acabas como mulher-a-dias.
Como se uma mulher não pudesse ser mulher todos os dias.
Mas eu estudei, não sou mulher-a-dias, posso ser mulher todos os dias e não apenas máquina de lavar, de secar, de aspirar ou simples vassoura.
Eu a dançar na sala com um pau de vassoura.
Posso ser a mulher que quiser e não sei que mulher quero ser.
João que mais uma vez não me reconheceu.
Entrou, falou da obra, dos detalhes de construção, dos materiais, do orçamento.
Falou comigo sem falar comigo.
Falou de olhos nos meus olhos, sem me ver, nem em meus olhos ver o brilho de uma vontade antiga, quase esquecida.
A vontade minha de lhe dar, talvez roubar seja palavra mais certa, um beijo, e não um beijo, O BEIJO, e não a este João, ao João que foi, um beijo velho e bolorento, tantos os beijos que morrem nas bocas quietas, e de sabor previsivelmente amargo.

Raquel Serejo Martins

Mini Ciclo Gauld: como são traduzidos os romances?

Foto frase do dia: Shakespeare

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a-ver-livros: a patranha

conta baixinho a mentira 
em que ainda acreditas
repete e silaba
letra por letra
a patranha

malogrado o sonho
na falsidade dos actos
que fiquem as palavras 
bonitas
num papel qualquer
arrumado na estante
da lembrança

Ana Almeida

* para saber mais sobre a ilustradora norte-americana Ashley Goldberg (AshleyG)
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terça-feira, 19 de agosto de 2014

Mini Ciclo Gauld: perdi o Kindle

histórias da unha do dedão do pé do fim do mundo, de Manoel de Barros

 
Manoel de Barros, célebre poeta brasileiro nascido em Cuiabá (MT), em 1916, iniciou cedo sua vida na literatura. Ainda pequeno já escrevia e em 1937 publicou seu primeiro livro, Poemas concebidos sem pecado. De lá pra cá não parou mais. Premiado por vários livros, recebeu o Prêmio Nacional de Literatura do Ministério da Cultura pelo conjunto da obra, em 1998.

Penélope Martins 

Foto frase do dia: Antoine de Saint-Exupéry

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segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Mini Ciclo Gauld: afectado por Kafka


Foto frase do dia: Álvaro de Campos


O poeta mais popular de Santo Tirso

Hoje não me apetece escrever - ando em corrida e as palavras tropeçam-me nos pés, efémeras. Assim sendo, cruzei a net em busca de uma boa notícia sobre livros para partilhar convosco. Achei algo sobre George R.R. Martin andar a pensar em aproveitar uns restos da Guerra dos Tronos para fazer um novo conto. Acho lindamente, e pronto. 

Não sei como nem porquê, fui parar a uma deliciosa crónica de não sei quando no Jornal de Notícias. João Luís Barreto Guimarães assina-a, enquanto "poeta mais popular de Santo Tirso". Não lhe conhecia sequer o nome - e escusam de me vir dizer que é uma tremenda falha minha porque já me apercebi disso.

Fui à caça e, da minha descoberta pessoal, trago-vos um poema dele - de que adorei o estilo. Não digam que não sou vossa amiga. 

Ana Almeida


"este poema foi escrito ontem hoje não
vou escrever (na face nego sorrisos como
quem fecha janelas) hoje só preciso de


mim (este poema é grátis: não está
incluído no preço do livro). hoje
não tocarei o corpo da Corona Four

uma ‘azerty’ americana já com uma certa
idade (ainda é das que escreve poesia a
preto e ranco) faz um mês que se perdeu
a tecla da letra « » só por isso não

tenho escrito sobre o rilho dos teus
olhos. o meu copo está vazio (hoje
não é poedia) depois eu mando alguém
uscar as minhas palavras
"

(João Luís Barreto Guimarães in Poesia Reunida, Quetzal, 2011)