sexta-feira, 25 de julho de 2014

Foto frase do dia: Vladimir Nabokov

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Caio Fernando Abreu interroga-se

a-ver-livros: ordens de marcha

Veste a cor mais garrida,
anda,
e vem ler o meu epitáfio
quero festa na partida
guirlandas de gomas e rock a abrir
organiza um churrasco, 
anda, 
e cantem as músicas estúpidas de outros tempos
e se alguém beber demais que se dane
só não o deixem chorar
façam-no rir
de mim, pode ser de mim

Que a saudade
quando bater
venha tocada a vento em que se ouça
o meu riso no vosso riso


Ana Almeida

´* para saber mais sobre o pintor belga Rik Wouters
siga o link www.belart.org/artists/wouters

Gonçalo Viana de Sousa: o Flâneur das Sensações



Volto a escrever-lhe, meu querido José, pois não me senti bem ao enviar-lhe somente aquele horroroso texto desta tarde, que, afinal de contas, era sobre um estúpido luar. Desculpe-me.
Envio-lhe, então, agora, um outro texto, diferente no tom e que vai mais ao encontro da suposta linha caracterizadora de mim mesmo. Repito: suposta linha caracterizadora de mim mesmo. Hoje não lhe posso pedir para vir ter a minha casa. Sinto uma dor de cabeça de não ter ou saber o que escrever. Acredite: pior que um mau whisky ou a falta de formação e não saber, melhor dizendo, não ter que escrever.
 Muito seu

Gonçalo V. de S.


Como poderia eu chorar com vontade de verter lágrimas que seriam tinta de uma caneta de feltro?
Loucuras, loucuras do álcool e das noites mal dormidas ou por dormir. Um dia, o whisky será o meu fim. Mas não hoje. Mas não agora. Bebo como quem vive uma vida longa e plena de sorrisos, felicidade, mas, mais importante, com muitos silêncios e indeterminações semânticas.
Caro leitor, este texto é expressamente para ti, que me lês a horas nocturnas e românticas, ou então a horas de sol e de movimento. São para ti, todas estas palavras, assim como a Arte é para mim todos os dias. Acreditas em Papa John? Acreditas em Maria Adelaide? Se eles existem? Existem tanto como Emma Bovary existe em cada leitura, ou então como Anna Karénina no coração de cada russo que descobre pela primeira vez os seus adúlteros encantos. Se és capaz de acreditar naquilo que conheces das pessoas, como és capaz de não acreditar, ainda que de forma fingida, em todas estas personagens que fiz minhas, não sendo, que amei, não tendo nenhum sentimento íntimo por elas, que persegui, sem jamais as ter encontrado nalguma esquina ou boulevard? Esquece a literatura, cuja vida é uma mera expressão, ínfima, incoerente e incompleta. O melhor fica sempre por dizer. Confesso-te, leitor amigo e peregrino, que nem sempre fui assim, bêbado e amante das coisas belas. Houve um tempo que também fui revolucionário e acreditei na Justiça e na Igualdade como quem diz: água. Também já fui hoplita dos ideais de 68 e de Abril. Fui socialista com os operários de Paris e com Jean Valjean. Já fui tanta coisa. Hoje sou um homem velho, que vive lendo palavras de outros tempos que parecem ser fantásticos e fingidos. Hoje, quase 30 anos depois daquelas noites em Nicosia – sim, para mim os dias são noites e luares, com ou sem lua. Românticos ou Decadentes – escrevo-te, leitor fiel ou curioso, para te dizer que nada mudaria. Talvez tivesse perseguido mais vezes Maria Adelaide, para poder descobrir quem foi e é esta enigmática mulher, personagem, devaneio.
Efraim continua a acompanhar-me, sempre fiel, com a sua barba meditabunda e discretamente generosa. O whisky e o copo continuam a meu lado, como quem fez uma amizade que durou décadas de sacrifícios e tempestades. O fiel Angus dorme beatificamente, como um gato queirosiano, na colcha do meu quarto. A diferença é que, agora, os medicamentos e os tratamentos existem na minha vida como uma ficção desnecessária.
O tempo passa, Ricardo Reis, e diz-nos tanta coisa.
O despertador toca, ao longe, no fundo do quarto. Sinto na boca o talentoso sabor a baunilha, caramelo e chocolate do Whisky. Mas há um outro sabor...

São seis horas, o sol já despontou. Adormeci por breves instantes, assim que Efraim abandonou o quarto e eu apaguei a luz. Sinto nos lábios o ébrio sabor da tinta azul da caneta de feltro de quem supus que fosse o meu criador. Lágrimas? Talvez as suficientes para escrever este texto sem nexo, nem desejo algum de o ter.
Lágrimas? 


Todas.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Foto frase do dia: Woody Allen

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Gonçalo Viana de Sousa - o Flâneur das Sensações



Eis um texto de Gonçalo Viana de Sousa, com o título de "Impressões ao luar", do seu anti-livro Cadernos de Nicosia.
Este texto surgiu sem nenhuma recomendação, apenas no habitual envelope de papel amarelado e lacrado com as iniciais G. V. S.

Quem somos nós, Efraim, para lá deste luar de Agosto?
O copo acompanha-me como uma sombra, como um piano feito somente de teclas negras.
Quem será Maria Adelaide? Quem será ela? Quem será essa mulher de branco, de pensamentos ebúrneos e de carícias de Primavera? Faço viagens para dentro e não me lembro de alguém com este nome…
Os anos não pesam tanto como as experiências entre o ácido da alma e o álcool portador de novas modernidades. Modernista, eu? Como?
Se falo em Literatura, Efraim, sob este luar prateado e romântico, inevitavelmente viajo até às florestas bávaras, acabando por adormecer, distante, num castelo escocês em ruínas, embalado com o marulhar das ondas célticas de um mar ante-adormecido.
Mas nada disto interessa. A questão do eu muito menos. Já foi algo ruminado tempo demais por gente que não era gente mas o mundo todo em palavras. Depois dele(s), o que ficou por dizer?
Sou, sem sombra de dúvida, a impressão que faço de mim próprio, a impressão que as palavras me permitem criar. Sou, assim, feito de palavras e de ficção. De uma ficção real, verdadeira, objectiva.
Hoje não quero música, Efraim. Podes desligar esse dispositivo e trazer a garrafa de whisky. Sem gelo, tenho sede, muita sede. Traz algo para dormir, também. Uma dose de amor e de esperança, mas ao de leve. Hoje não quero música, nem humanidade. Quero este luar para sempre, prateado, romântico, meu, para sempre. Nada mais.
Quero fundir-me nesta noite que em Nicosia me parece a vida.
Maria Adelaide, Ida Rubinstein, Bovary, Karénina, quem sois? O silêncio olímpico e estupidamente beatífico é a minha resposta. (A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida).
Bebo o whisky de um só gole.
Efraim, que foi que a vida fez comigo?
O fiel butler olha para mim e sorri, com aquele sorriso imaginário que sempre vislumbrei e diz-me, a realidade, Viana de Sousa.
Volto para dentro do quarto, fecho a porta da varanda e deito-me na cama.

Efraim, podes sair, por agora não preciso de mais nada. Apago a luz e tento chorar em vão, com a esperança ridícula que as minhas lágrimas tenham a cor e o sabor de uma caneta de feltro.

a-ver-livros: naufrágio

No teu regaço a viagem
navegação sem porto
ou destino
itinerância à deriva 
entre os braços
remos
ramos da árvore
sem saudade
de terra firme

No teu regaço, náufraga
sôfrega
submersa na eloquência
dos silêncios
calmaria, amor

Ana Almeida

* para saber mais sobre a pintora italiana Erika Raio
siga o link www.erika-raio.com


quarta-feira, 23 de julho de 2014

Poema à noitinha... Lídia Jorge

Assim a Casa Seja

Amor, é muito cedo
E tarde uma palavra
A noite uma lembrança
Que não escurece nada

Voltaste, já voltaste
Já entras como sempre
Abrandas os teus passos
E paras no tapete

Então que uma luz arda
E assim o fogo aqueça
Os dedos bem unidos
Movidos pela pressa.

Amor, é muito cedo
E tarde uma palavra
A noite uma lembrança
Que não escurece nada
Voltaste, já voltei
Também cheia de pressa
De dar-te, na parede
O beijo que me peças

Então que a sombra agite
E assim a imagem faça
Os rostos de nós dois
Unidos pela graça.

Amor, é muito cedo
E tarde uma palavra
A noite uma lembrança
Que não escurece nada

Amor, o que será
Mais certo que o futuro
Se nele é para habitar
A escolha do mais puro

Já fuma o nosso fumo
Já sobra a nossa manta
Já veio o nosso sono
Fechar-nos a garganta.

Então que os cílios olhem
E assim a casa seja
A árvore do Outono
Coberta de cereja.

*Lídia Jorge, (Inédito)

Leminski, objecto sujeito


a-ver-livros: desarroupada

No estado de nua
como cheguei
aos dias 
como partirei
na madrugada ventosa
que me espera
veloz
desarroupada
sem ornamentos
afrouxando o trinco
da garra
como quem adormece
no corpo
que nu se enrola
sobre mim

Ana Almeida

* para conhecer melhor o trabalho da pintora texana Connie Chadwell
é só seguir o link www.conniechadwell.com

terça-feira, 22 de julho de 2014

Dicionário de Lugares Imaginários


"É uma estrada que existe naquele limbo dos mundos
imaginados na literatura, aceites pelos leitores tal como são graças
ao pacto estabelecido na leitura e, em alguns casos, transferidos
para o imaginário colectivo como referências partilhadas até por
quem não leu as obras onde surgiram. Foi esse limbo que Alberto
Manguel e Gianni Guadalupi começaram a tentar ordenar em
1977, dando à estampa três anos depois a primeira edição deste
Dicionário dos Lugares Imaginários (...)

O Dicionário dos Lugares Imaginários reúne mais de um milhar de entradas dedicadas a espaços que nasceram em livros ou textos soltos, organizadas alfabeticamente como mandam as regras dicionarísticas e
com descrições cuja extensão varia em função da matéria fornecida pelos próprios livros."



«Aproveitamos a oportunidade para pedir aos leitores que nos informem de qualquer lugar susceptível de nos ter escapado. Com essa ajuda, esperamos preparar um suplemento ou uma edição revista do
livro que inclua omissões passadas e recém-chegados futuros, transformando assim o leitor em autor, o viajante em cronista.»

Alberto Manguel e Gianni Guadalupi

Revista Blimunda, nº19,  Dezembro 2013, pp. 11-14, 
disponível em. http://saramago90anos.files.wordpress.com/2013/12/blimunda_19_dezembro_13.pdf

Por curiosidade:
 http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/num-atlas-imaginario-podese-tudo-e-sedentario-e-nomada-alberto-manguel-o-seu-lugar-e-uma-ilha-deserta-cheia-de-livros-numa-aldeia-de-franca-328875




A sede de ler

Sem sombra de a-ver-livros hoje, fui à procura de algo para partilhar convosco. Encontrei um livro que pode matar a sede - e os micróbios. O Drinkable Book é, na verdade, um manual para filtrar água, usando uma tecnologia moderníssima. Leiam - e saibam mais.

Ana Almeida

"Graças a um grupo de cientistas e designers norte-americanos, desde maio os livros deixaram de ser apenas fonte de conhecimento para virar também fonte de água potável. A ONG Water is Life criou um livro cujas folhas servem como filtro para purificar o líquido. As páginas do Drinkable Book ("Livro de Beber", em tradução livre) trazem textos referentes à higiene e aos perigos de consumir água não tratada. Na função de filtro (veja como funciona abaixo), as páginas eliminam bactérias responsáveis por doenças como cólera e febre tifoide. “Após a passagem da água pelo filtro, existe uma redução de 99,9% na contagem de bactérias, o que torna o produto final comparável à água da torneira nos EUA”, afirma Matt Eastwood, porta-voz do projeto. Um único exemplar pode garantir água limpa para uma família por até quatro anos, e a fabricação de cada página custa apenas um décimo de dólar. O livro deve chegar a países como Índia, Haiti e Quênia já em 2015."
in Revista Galileu



"If you think books are old tech, you may be dismissing them too soon. The latest application for the folio design is a collection of water filters that are long-lasting and also provide information about consuming unsafe water. The humanitarian group WaterisLife and the ad agency DDB have teamed up to bring these books to developing countries with unreliable water sources.

Millions of people around the world don't have access to clean water for basic needs like drinking, cooking, and bathing. And 3.4 million people die every year from waterborne diseases. WaterisLife points out that though options are limited in these settings, many people who ingest unsafe water don't even know that it could hurt them. So the goal of the “Drinkable Book” is to provide cheap and effective water filters while also educating people about how dangerous contaminated water can be.

Working with researchers at Carnegie Mellon and the University of Virginia, WaterisLife and DDB supported scalability work and design based on research conducted by Teri Dankovich for her Ph.D. at McGill University. Dankovich found a way to coat cardstock with silver nanoparticles that attract bacteria and toxins when water trickles by. Dankovich says her research indicates that the filters leave water more than 99.9 percent pure. Each page of the book can filter about 30 days’ worth of clean drinking water, and the whole book can last about four years.

After finishing up her Ph.D., Dankovich began a post-doc at the University of Virginia. “I led a team of undergraduates in field tests in South Africa of this antibacterial paper,” she wrote in an email. “All of the chemicals used [to treat the paper] have been selected because they are safe, renewable, and nontoxic.”

The project's designer, Brian Gartside, contacted Dankovich about the project about a year ago. “I came across Theresa Dankovich’s research and was immediately blown away by the potential of her filters," Gartside wrote in an email. “One of WaterisLife’s biggest challenges (beyond providing clean water) is teaching proper sanitation/hygiene, so this was a perfect opportunity to not only introduce the new filters, but also to do it in a way that meaningfully addresses both problems.”
books2 Pulling a filter out of the book.

Each page of the book is divided by perforation into two squares. The top half has information printed in English, while the bottom half is printed in a locally spoken language. The first run was printed in English and Swahili to be distributed in Kenya, but the goal is to expand printing for languages spoken in all 33 countries where WaterisLife operates.

Gartside says that the design process for the book was driven by both uncontrollable factors and aesthetic choices. The book’s distinctive orange color comes from the silver nanoparticle coating, and its presence indicates that the right chemical reactions have happened in adhering the coating to the cardstock. The group also had to find a vendor that would make food-grade ingestible ink that could be used for letterpress printing. The first run was about 100 books, and the group worked with Bowe House Press in Virginia to make sure the presses were completely clean.

When Gartside used the book himself, he says he was impressed with its effectiveness and ease of use. "I was skeptical at first that water would even be able to make it through the paper (the stock is very thick), but it filters at a rate that I'd estimate to be comparable to the filter jug I have sitting in my fridge," he says.

The group is still negotiating manufacturing costs, and the first press run of “Drinkable Books” isn’t a good indicator because some costs were higher (filtration trays were 3-D printed instead of injection molded) and some costs were lower (many companies donated their services to the cause) than they will be when the books are being produced at scale. But Gartside says the goal is, of course, to produce the books as cheaply as possible, hopefully for pennies a page. The chemical treatment is inexpensive and already fits into this price point.

It’s not exactly a beach read, but if “Drinkable Books” can be widely distributed they might actually have an impact on the spread of waterborne diseases. And once again, books are on the cutting edge of technology.

por Lily Hay Newman
in http://www.slate.com/blogs/future_tense/2014/05/07/water_is_life_ddb_researchers_create_a_water_purification_system_that_also.html

Para saberem mais sobre este projecto, visitem o site da Water is Life.

É do borogodó: Pavão Vermelho, de Sosígenes Costa

"Ora, a alegria, este pavão vermelho,
está morando em meu quintal agora.
Vem pousar como um sol em meu joelho
quando é estridente em meu quintal a aurora.


Clarim de lacre, este pavão vermelho
sobrepuja os pavões que estão lá fora.
É uma festa de púrpura. E o assemelho
a uma chama do lábaro da aurora.


É o próprio doge a se mirar no espelho.
E a cor vermelha chega a ser sonora
neste pavão pomposo e de chavelho.


Pavões lilases possuí outrora.
Depois que amei este pavão vermelho,
os meus outros pavões foram-se embora.
"

Sosígenes Costa (1901 - 1968)



Natural de Belmonte (Brasil), o poeta baiano Sosígenes Costa nasceu em 1901 e se radicou em Ilhéus, onde se tornou redator do Diário da Tarde, além de desenvolver um olhar peculiar sobre a colonização e o império do cacau.
Sosígenes integrou o modernismo junto com Jorge Amado e outros nomes, sua poesia foi reunida integralmente pelo grande poeta José Paulo Paes e publicada em 1978. O poema "O pavão vermelho" ilustra o livro 'POESIA' do Professor da Universidade de São Paulo, Massaud Moyses.

* escolhido por Penélope Martins

 

Foto frase do dia: Ray Bradbury


segunda-feira, 21 de julho de 2014

O vazio - o texto de ALA na Visão

O vazio

Sou eu que estou em paz com o meu pai ou o meu pai que está em paz comigo? Qual de nós mudou: ele, eu, os dois ou aquilo que nos rodeia?



No outro dia, em casa da minha mãe, pus-me a olhar os retratos nas cómodas, tentando compreender a diferença entre os mortos e os vivos. Nunca compreendi muito bem o que é estar morto, conforme não compreendo muito bem o que é estar vivo. Todas as fotografias continuam a falar, não em silêncio como eu pensava ou sou eu que falo nelas, por eles? A minha avó, criança, continua a ser assim ou transformou-se na senhora que depois conheci? Qual delas é, de facto, a mãe da minha mãe e qual das várias representações, que se convencionou ser eu, a sente como do seu sangue? E qual das representações do que sou escreve isto? A morte significará não estar ou, apenas, uma ausência episódica? Aqueles que se convencionou terem morrido e, portanto, haverem-se extinto, como se extinguiram dado que me aparecem nos sonhos, dado que existem na minha cabeça, dado que continuam a modificar-se em mim? Se, por exemplo, penso

- Agora estou em paz com o meu pai

sou eu que estou em paz com o meu pai ou o meu pai que está em paz comigo? Qual de nós mudou: ele, eu, os dois ou aquilo que nos rodeia? E como se compreende o facto das pessoas que faleceram continuarem a alterar-se? Em garoto pensava: morre-se, vai-se para baixo da terra, acabou, fica a saudade que se dissolve, com os anos, por seu turno: isto é, no mínimo, ingénuo e, claro, infantil. Como se explica o motivo de, ao ir a casa dos meus pais, encontrar sempre o meu irmão Pedro? Mesmo que outra pessoa se sente no seu lugar à mesa é o Pedro quem o ocupa e, como em geral não falo, fico a tentar ouvir as conversas, oiço-o a participar nelas e tenho a certeza que os meus outros irmãos também o ouvem. É impossível não ouvirem e isto não é um produto da minha cabeça ou a negação do seu desaparecimento: é uma realidade física, independente do que sinto ou imagino. Estamos todos juntos, reais, presentes e, de todos, dá-me ideia que sou o menos verosímil. Quem adoece, suponhamos, está mais longe ou mais perto de estar mais perto de nós? Quero dizer realmente perto, numa realidade muito mais absoluta que antes? E pergunto-me se a morte existe ou não passa de uma convenção, como os números ou as datas, onze de julho, três de maio, vinte e quatro de janeiro. Porquê esta necessidade de catalogar, seriar, inventar noções absurdas? Onze de julho é absurdo. Onze e julho que sentido possuem? Ou, para voltar à morte, afigura-se-me uma noção sem nexo decretar que o Pedro morreu e eu não. Onde começa a ausência e, antes ainda, o que é a ausência? A mão que escreve isto escreve de facto isto ou deixa um rasto no papel que a gente toma por isto? Tenho a sensação que a minha mãe entende o que estou a dizer. Na última vez que estive com ela pus a testa contra a sua testa e principiei a falar-lhe de tudo isto. O mais extraordinário é que começou a sorrir, isto é um sorriso esteve na sua cara o tempo inteiro e acenava que sim. Será que ela, que pensamos tão próximo da morte, compreende? Ou será que julgamos que ela próximo da morte porque compreende? Nunca estivemos muitas vezes de acordo e tive a impressão

(tenho receio de escrever certeza)

que, finalmente, nos entendíamos. A certa altura disse-lhe

- Apetece-me estar de novo na sua barriga

e o sorriso da minha mãe aumentou: apareceu-me na ideia que estava a comunicar-me que nunca saí de lá, e os retratos meus que para ali estão não são eu, ou são um eu a que se decidiu, ignoro porquê, chamar António. O verdadeiro António não existe, não nasceu, não cresceu, não escreve isto. Anda por aí apenas e não sei quem é. Andamos por aí apenas e não sabemos quem somos, inventados por quem e fazendo parte desse quem? Estas palavras estão a sair sem que eu tome parte nelas, sem uma emenda: não posso emendar porque não fui eu quem as fez, foram os retratos das cómodas, os que chamam mortos e os que chamam vivos ou outra instância que desconheço. António Lobo Antunes nem sequer é um conjunto de células confusas. É um número ou uma data que é todos os números e todas as datas ou nenhum número e nenhuma data, um acaso que se formou de súbito e se vai desfazer ao calar-se. O que fica depois? Nada que interesse: uma sala a anoitecer pela qual passou uma sombra fugaz que não pertence a ninguém. Não percebo isto porque não posso perceber isto e, muito menos, perceber o que sou, como sou, o que faço. Uma espécie de nada plasmado em molduras. Se as olharmos muito tempo desaparecem. O que fica depois? Uma sala com cómodas vazias, cadeiras vazias, um tempo sem tempo, sofás com marcas de corpos que não existem. Ou nada disto. A noite que começa apenas, mas haverá noite? Um espaço, mas haverá espaço? Um imenso silêncio de que ninguém faz parte? A barriga da minha mãe onde jamais estive porque ela jamais esteve igualmente? Sinto que a caneta vai parar. Que pára a pouco e pouco. Que parou. O que ficou nestes papelinhos? Acho que nada. Nada de nada. Apenas os vivos e os mortos que talvez andem por aí. Talvez andem por aí. Andem por aí. Por aí. Andem. ndem. Dem. Em. M. Para sempre. O vazio. Este texto nunca foi escrito.


Tirado da Revista Visão: http://visao.sapo.pt/o-vazio=f788556#ixzz388TZARbw


a-ver-livros: ida à lua

Recolhe o dedo que apontas
esquece a culpa
e os porquês

Há estradas para abrir na selva
e monstros para matar
cá dentro
antes de ir à lua
à procura do que não tens 
entre ventrículos
e aurículos

Ana Almeida

* para saber mais sobre o pintor russo Oleg Dozortzev
siga o link http://academart.com/Dozortzev.htm

domingo, 20 de julho de 2014

dance dance dance


Um livrinho é bom, é bom mas uma musiquinha também. Deixo aqui a playlist com tudo o que deu origem aos títulos dos posts do Livro do Mês.
Dancem muito, muito.

Voar em ti

"E todas essas peregrinações, e todas essas ascensões de montanha, o que era senão um expediente e uma maneira de iludir minha impotência? 
O que eu queria era voar, voar em ti."

Nietzsche






Andre de Freitas, Double Exposure
Mais fotografias disponíveis em: http://andredefreitas.com/Double-Exposures

A felicidade é...

Encontrado na página Improbables Bibliothèques, 
Improbables Librairies. A não perder por nada!

Apanhei-te a ler... dia 11

Alfred Hitchcock

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