Fotografia de Teresa Lamas Serra
Não me perguntes o nome,
quantos anos tenho, se gosto de estudar, se gosto de tâmaras, se tenho um cão.
Não me faças perguntas
ridículas.
Espero mais de ti.
Não espero nada de ti.
Não desvies os teus olhos dos
meus pés descalços.
Tenho sapatos.
Tenho sapatos e tenho a alegria
de andar com os pés descalços.
Tenho uma bicicleta. Foi prenda
de anos.
Uma bicicleta tem uma utilidade
relativa no deserto, utilidade nenhuma, mas na cidade voa como um pássaro.
Um pássaro a planar rente ao
chão.
Consegues imaginar?
O meu avô diz que a mim me
sobra imaginação.
A minha bicicleta é inútil no
deserto, porque os desertos não são lugares próprios para pássaros, talvez a
ausência de árvores, de ninhos, de sombras.
Eu, tu, nós, temos um não sei
quê de bicicleta, e não é como se tivéssemos rodinhas nos pés, que isso é mais
patins, eu sei, o que eu quero dizer é que servimos para pouco, também somos
inúteis em muitos lugares.
Só no fim é que percebemos que
são poucos os lugares certos, é o que diz o meu avô, e também diz que eu ainda
não sei nada, porque estou apenas no princípio de tudo.
Certos para quê, avô?
Certos para se ser feliz.
Já tenho oito anos.
Já soprei oito velas.
Um bolo de figos e mel, uma
bicicleta.
Já andaste de camelo?
Tem um não sei quê de barco.
O que é o quê?
Não sei, nunca andei de barco.
Um barco também é inútil no
deserto.
Gosto de barcos, principalmente
das caravelas, as velas como luas em quarto crescente, como nos livros de
história, gosto tanto, que quando sopra o vento penso que sou, quer dizer,
imagino que sou, de braços abertos, um barco à vela, mas acabo a fazer lembrar
um avião, deve ser do vento!
No deserto o vento é muito
forte, tão forte que move montanhas. Já reparaste que não há montanhas no
deserto.
Portanto, não sirvo para barco.
A serventia de uma pessoa está
na cabeça, nas mãos, nos pés ou no sorriso, outra frase que o meu avô repete
para eu aprender, enquanto enfia o dedo indicador na minha testa, o mesmo dedo
que depois aponta para as minhas mãos, para os meus pés, para o seu sorriso, e faz
assim apesar de dizer que apontar é feio.
E porque já experimentei, sei
que sou inútil com um bisturi na mão, com um pincel, com um cinzel, com uma
agulha, mesmo com dedal pico-me nos dedos.
Acho que sou, espero ser útil
com uma colher de pau na mão, e não estou a falar em lutas de espadas, que
assim já parti quatro colheres, quatro valentes mosquetes que o meu pai me
atestou com os nós dos dedos da não direita, mesmo para doer, como se o meu
cocuruto uma noz.
O meu pai é cozinheiro. O meu
avô é cozinheiro.
Dizem que o meu bisavô também
era cozinheiro.
Quase nasci dentro de uma
cozinha e, numa cozinha gosto de tudo, dos cheiros às panelas e tachos, aos
livros de cozinha, as fotografias das sobremesas como histórias de encantar a
fazer crescer água na boca.
Já consigo partir um ovo e
separar a gema da clara, só com uma mão.
Para dizer mesmo a verdade não
gosto de tudo numa cozinha, não gosto de lavar loiça, o pior é que é a única
coisa que me deixam fazer, dizem que ainda não tenho idade para mexer no fogo.
Irritam-me mesmo, e mais me
irritam porque parece que têm gosto em ver-me contrariado, porque todos os dias
me põem a lavar pratos e copos e colheres de garfos.
Lavar garfos, o que detesto
mais.
Mas o que mais, demais, me
irrita é que na cozinha, quieta, silenciosa, ociosa, de olhos nas minhas
costas, de sorriso trocista, a máquina de lavar loiça.
Raquel Serejo Martins
NOTA: Este texto nasceu sobre este olhar que me encantou, sobre a fotografia de Teresa Lamas Serra, que trouxe este olhar até aos meus olhos, até aos vossos olhos.