sábado, 31 de março de 2012

AS TRÊS PALAVRAS MAIS ESTRANHAS

Quando pronuncio a palavra Futuro,

a primeira sílaba já pertence ao passado.


Quando pronuncio a palavra Silêncio,

destruo-o.


Quando pronuncio a palavra Nada,

Crio algo que não cabe em nenhum não-ser.


in Pornopopeia

Subi a Augusta de Monzão sacando o movimento.

(...)

Pediu cem mas deixou pela metade: um galo pra ela, vintão para o hotel. Setentinha piço e cama, era um bom negócio.

“Meia hora só, tá, gato?”

“Claro.”

No que ela entrou no carro já lhe passei o cinquentinha do michê, que ela enfiou rápido no decote. Sempre faço isso, de pagar a puta antes. Cria um clima de confiança, esquenta a relação, melhora a qualidade da foda. Viver numa sociedade regida pelo dinheiro pode ser uma merda e tudo, mas porra, um pedacinho de papel pintado que pode ser trocado tanto por um prato de esparguete com vinho numa cantina do Bexiga quanto por uma peteca de cocaína ou uma bela buceta semidepilada à meia noite e pico na rua é de tirar o chapéu, fala a verdade.

(…)

Em seguida, larguei os peitos e comecei a trabalhar com as duas mãos a bunda da puta, mais para pequena, redondinha, um melão rachado. Era uma bunda que já tinha enfrentado alguns atritos com ângulos mais agudos da realidade, como bico de sapato e brasa de cigarro, por exemplo. Muita pica já tinha transitado por ali também, indo e vindo por aquele roscofe esgrouvinhado. Putas de rua é isso mesmo, vai querer o quê? Não são garota símbolo dos cremes antirrugas da Lancôme. Se eu fosse mulher, mais ou menos gostosa, pobre e ignorante, seria uma bela putana de rua também, e teria a essa altura mais cicatrizes e hematomas a ostentar que aquela fulana, se é que ainda estaria vivo, digo viva, do que muito duvido. Não me inspiram pena as putas da Augusta. Só tesão, quando estão peladas na minha frente numa cama rançosa de uma espelunca de vinte magos, e eu torto e tarado comendo elas pela frente e por trás, fazendo o possível para achar que a vida é engraçada, meu caralho, quando não bela.

Pode anotar aí: se no meu leito de morte me for concedido um último desejo, não hesitarei. Quero uma puta da Augusta, dessas de um galo, pra me oferecer seus préstimos no leito hospitalar, e ainda dou a ela os vintão que seriam para o hotel. Se eu estiver tão detonado a ponto do meu pau não reagir, paciência. Mesmo de pau mole um homem tem direito a uma puta em seu leito de morte, diria Henry Miller – em seu leito de morte.


sexta-feira, 30 de março de 2012

Notícias à Quinta - Crónica inesperada.

A noite já vai longa e a Quinta já passou. A viagem, tal como dito, iniciou-se em Terras da Beira, pela circunscrição Fundão - Castelo Branco - Idanha. Tal como outras viagens, menos cronometradas, perdeu-se a noção do tempo que o deslumbre ocupa. Ganhou-se a percepção que não há dia de calendário agendado que valha ao inesperado de um desafio assim, quando pôr os pés ao caminho não é apenas uma metáfora, é um sentido apurado. Hoje o cansaço venceu-me e rasguei promessas, entre tentar e conseguir, a distância é ténue na contradição. Há que reinventar. Deste tríptico Beirão falarei daqui a uns dias, do jornal, Casino e gentes do Fundão, ao jardim das estátuas em Castelo Branco, aos roteiros livrescos da Idanha, juntando a paisagem e os recantos vários, à agenda cultural destas terras. Hoje porém partilho outra crónica minha, publicada aqui em 2010. Quando cheguei ao Fundão foi nela que racaí, foi dele que me lembrei. Tenha a vida dele sido longe dali, a verdade é que os tons desta terra vão busca-lo. A ele e aos Deuses.

Crónica a Eugénio:

Nasceu perto do Fundão, berço cerejeiro da Cova da Beira onde a serra da Gardunha teima em vestir-se de tons inebriantes quando cai o Outono. O pequeno José Fontinhas afasta-se das raizes levando consigo uma década de vida, rumo a Lisboa no enevoado ano de 1933. Com vinte anos instala-se em Coimbra, a Aeminum conhecida de tantos nós. Sete anos depois muda-se para o Porto onde irá permanecer até ao fim da sua vida. Para o Mundo, Eugénio de Andrade, imortalizado na sua escrita. Para mim um assumido mistério deambulante entre José e Eugénio.

Meu caro Eugénio de Andrade,
Nunca me perguntei porque escolheste uma força tão profunda como pseudónimo, isto é, não quis saber. Até ao dia… Até ao dia em que te tornaste névoa na imortalidade da alma, tal foi o legado de emoções e imagens que deixaste na tua escrita. Eugénio de Andrade … Se Eugénio nos leva à descontrução de eu-génio, ou à eugenía, Andrade fica para a história com a conotação da origem daquele que viria a ser o primeiro pedaço de solo onde se abriram as portas para o condado portucalense – A misteriosa Galiza. Deambulações, especulações, sobretudo vontade, vontade que nada tenha sido ao acaso. Mas não é isto que me importa. Não é o teu nome que me revolve as entranhas, é aquele facto frio de nunca sabermos o que está na emoção resguardada de um escritor, de nunca conseguirmos descobrir onde é a mansarda, de tectos altos, com janelas abertas para o mundo do Ser. Por isso te escrevo. Porque quero dizer-te que escreveste o Adeus mais perfeito a uma carta de amor. Mas que o José Fontinhas lançou a tua melhor obra, quando se despiu de ti e te ofereceu Green God. Sim Eugénio, Green God és tu, pelas mãos daquele que te criou. Sobre ti. O “Deus Verde”, para os Celtas, a perfeita junção entre o Homem e a Natureza, o equilibrio. Tu eras o equilibrio de José. E, por isso, mais uma vez. Para ti:

Green God

Trazia consigo a graça
das fontes, quando anoitece,
Era o corpo como um rio
em sereno desafio
com as margens, quando desce.
Andava como quem passa
sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos,
cresciam troncos dos braços
quando os erguia no ar.
Sorria como quem dança.
E desfolhava ao dançar
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ele sabia
que os deuses devem usar.




Até já.

Gajas em livrarias

Talvez se recordem. O polémico rapper, produtor, designer de moda e mil outras coisas Kanye West – sim, o mesmo que no início do mês fez questão de banir a presença de críticos de moda nos seus desfiles em Paris... – fez gala, em 2009, de dizer que não é fã de livros.

“Sou um orgulhoso não-leitor de livros”, afirmou – e pela boca morreu o peixe. Nesse mesmo ano lançou um... livro! Bem, se é que tecnicamente se pode chamar livro a “Obrigado e Não Tem de Quê”, algo com 52 páginas, muitas delas em branco e outras apenas com uma frase a corpo mil com citações da sua umbiguista pessoa, aquilo a que ele designa como Kanyeismos.

Pois este ano, as amigas Annabelle Quezada e La Shea Delaney, leitoras confessas e disso igualmente orgulhosas, pegaram na canção “N*ggas in Paris”, de Kanye e do seu amigo Jay-Z, mudaram-lhe a letra e, durante um dia, entretiveram-se a fazer o video que vos apresento, a que chamaram “B*tches in Bookshops”.

O video está a fazer furor por aí, como se consegue perceber pelo blog de uma das raparigas. A letra – que está aí também mais abaixo – faz referências a autores vários, de Mark Twain a Proust. É divertida e faz pensar. O que é muito, nos tempos que correm. Vejam o vídeo!



B*tches in Bookshops

“Read so hard librarians tryin’ ta FINE me­,
They can’t identify me,
Checked in with a pseudonym,
so I guess you can say I’m Mark Twaining.
Read so hard, I’m not lazy.
Go on Goodreads, so much rated.
Fountainhead, on my just read, gave it four stars, and then changed it.
Read so hard, I’m literary.
Goosebumps series, TOO SCARY!

Animal Farm, Jane Eyre
Barnes & Nobles, Foursquare it
No TV, I read instead
Got lotsa Bills, but not bread
BURROUGHS , GOLDING, SHAKESPEARE – all dead

Read so hard, got paper cuts
On trains while you're playin’ connect the dots
All these blisters from turning pages
Read so hard, I’m seeing spots

Your Sudoku just can’t compare
Nor Angry Birds cos lookit here
My Little Birds is getting stares
This print’s rare.

Read so hard, I memorize, The Illiad... I know lines.
Watch me spit, classic lit, epic poems that don’t rhyme.
War and Peace, piece of cake, read Tolstoy in 3 days.
Straight through, no delays.
Didn’t miss a word. Not one phrase.

Read so hard librarians tryin’ ta fineee me - That shit cray

He said Shea can we get married at the Strand
His Friday Reads are bad so he can’t have my hand
You ball so hard, OK you’re bowling
But I read so hard, I’m JK Rowling

That shit cray
Ain’t it, A? What you readin’?
AQ: DeMontaigne.
You use a Kindle? I carry spines.
Supporting bookshops like a bra, Calvin Klein.

Nerdy boy, he’s so slow
Tuesday we started Foucault
He’s still stuck on the intro? He’s a no go.
It’s sad I had to kick him out my house though –
He mispronounced an author - MARCEL PROUST

Don’t read in the dark
I highlight with markers
While laying in the park
And wearing Warby Parkers
Marriage Plot broke my heart
And it made me read Barthes
I special ordered a
A softcover not hard- HUAH?

Read so hard libraries tryin’ ta fine me

I am now marking my place
Don’t wanna crease on my page
Don’t let me forget this page
Don’t let me forget this page
I may forget where I left off so I’ll use this little post it…
I hope it doesn’t fall out, I hope that it stays stickie…

I am now marking my place
Don’t wanna crease on my page
Don’t let me forget this page
I got bookmarks at home
But I forgot one for the road
AQ: I got a bookmark I can loan
La Shea: Know how many bookmarks I own?

I am now bookmarking my page
DON’T LET ME FORGET THIS PAGE
-age-age-age-age-age.”


quinta-feira, 29 de março de 2012

Poema inédito de Rui Zink

Este poema foi descoberto pela Ana Almeida no espaço do Jornal de letras, artes e ideias.

A ideia era escrever uma declaração de amor à Língua Portuguesa, em jeito de comemoração pelos 32 anos do jornal.


Rui Zink escreveu assim:

«Minha pátria, minha língua
Linha pátria, minha míngua
Juro-te, se fores minha gramática
Eu serei tua sintaxe.
É que, em ti, gosto de tudo
Dos sons, dos ecos, da surdez
Até das tuas rimas fáceis
Em extáse, em extáse.
Certo, nem sempre nos entendemos
Desgosto quando dizes atempadamente
E tu enxofras com os meus isso é suposto.
Mas não tem mal
Um dia, num presente distante
Voaremos juntos a uma ilha deserta
Lá cantarás só para mim
E eu, enfim (prometo que sim)
Calar-me-ei de vez
Só para ti.
Seremos não mais uma língua
e seu falante
Tão só uma palavra (uma palavra simples)
e o seu não menos discreto
amante»

quarta-feira, 28 de março de 2012

O Perdão e a Promessa, por Hannah Arendt


«Se não fôssemos perdoados, eximidos das consequências daquilo que fizemos, a nossa capacidade de agir ficaria por assim dizer limitada a um único acto do qual jamais nos recuperaríamos; seríamos para sempre as vítimas das suas consequências, à semelhança do aprendiz de feiticeiro que não dispunha da fórmula mágica para desfazer o feitiço. Se não nos obrigássemos a cumprir as nossas promessas não seríamos capazes de conservar a nossa identidade; estaríamos condenados a errar desamparados e desnorteados nas trevas do coração de cada homem, enredados nas suas contradições e equívocos - trevas que só a luz derramada na esfera pública pela presença de outros que confirmam a identidade entre o que promete e o que cumpre poderia dissipar. Ambas as faculdades, portanto, dependem da pluralidade; na solidão e no isolamento, o perdão e a promessa não chegam a ter realidade: são no máximo um papel que a pessoa encena para si mesma.»

in 'A Condição Humana'

Fechei o Retorno há algum tempo... Mas tenho mais um sublinhado a partilhar

Faltam poucos dias para apresentarmos as conclusões da leitura conjunta deste mês. O Retorno de Dulce Maria Cardoso é um livro muito rico textualmente. Fica aqui mais um exemplo:


«Não foi fácil ao pai e ao Sr. Miguel encontrarem os sócios que faltavam, ninguém queria ficar devedor de tanto dinheiro nem ninguém queria ter tanto trabalho pela frente, que é uma boa ideia é mas não se esqueçam que esta terra não é generosa como a de lá, diziam. Mas a mãe tem razão, o pai fala melhor do que um doutor, e um a um conseguiu convencer os cinco sócios, eu sei que esta terra não é abençoada como as de lá, eu sei que esta terra pede-nos suor, lágrimas e sangue e em troca dá-nos um pedaço de pão duro, mas também sei que numa coisa esta terra não é diferente de nenhuma outra, nem mesmo das mais abençoadas, esta terra não rejeita o que lhe põem em cima, isso também sei, e é por isso que vos digo que o futuro passa pelo que se vai pôr em cima desta terra, casas, estradas, hospitais, escolas. É quase impossível não ficar entusiasmado ao ouvir o pai falar com tanta certeza. E foi assim que o pai conseguiu arranjar os cinco sócios para a fábrica de cimento. E foi assim que o pai e os sócios se tornaram devedores de sete mil e novecentos contos fora os juros que ainda nem se sabe quanto será, porque o dinheiro fica mais caro todos os dias.»

terça-feira, 27 de março de 2012

Escrita... Irmã da minha alma

No recanto deste lugar, onde os sons da primavera rasgam o silêncio, estou entregue a uma doce e saudável solidão.

Decidi vestir o meu vestido mais colorido. Tenho que entrar na Primavera cheia de cores para dar as boas vindas ao desabrochar da vida.

Óculos escuros... chapéu na cabeça. Pareço uma modelo. Sorrio... que vaidade... mas o momento merece isso!

Quero-me elegante, quero-me sensual, quero-me viva...

Não é a primeira vez que nos encontramos, aliás, estou sempre junto a ela. Mas hoje, é um dia especial!

É a primeira vez que nos vemos na Primavera.

Sinto a sua presença, ali... bem perto de mim! Quero olhá-la, abraçá-la, dizer-lhe que sem ela, a minha alma fica estéril, sem ela a minha vida fica incompleta.

Conheces-me bem... És irmã da minha alma... cúmplices... Sou em Ti, como És em Mim!

Nos recantos do meu Sentir, vens em meu auxílio. Ofereces-me a tua mão e no silêncio das palavras, embalas a dor, realizas o sonho!

Sou, verdadeiramente, Eu em Ti!


Foto EME ( Recantos)

Despojo-me da vergonha, do pudor, do preconceito, do pré-definido e deixo fluir o meu Ser, nú, puro, livre.

Faço-te amante nas longas noites serenas.

Uso-te em forma de conhecimento, uso-te em forma de saber, mas é na forma do sentir que és mais verdadeira, reflexo de múltiplos heterónimos.

Não és perfeita, tal como também não sou.

E que importa a perfeição? - Não a quero!

Prefiro esse caminhar incerto, muitas vezes obscuro, mas profundamente libertador.

Viveste escondida numa caixa de pandora que, por magia, foi aberta e hoje, mutilar-me-ia se te encarcerasse.

Por cada letra, por cada palavra, re-invento-me, re-defino-me numa dialéctica em construção.

No final desse caminho, seremos folhas amareladas pelo tempo e estaremos apagadas na memória dos homens... mas algures num tempo que não é nosso, um trovador cantará a nossa história na forma de poesia!

Elsa Martins Esteves

segunda-feira, 26 de março de 2012

a-ver-livros: Vanessa pinta Virginia


Bato de frente com este conjunto de sobrecapas de livros de Virginia Woolf, já nem sei porquê. E acho curiosa a coerência estética de todas elas, mesmo atravessando um período de mais de trinta anos. Criadas por Vanessa Bell, dizia a legenda. Mas quem raio é Vanessa Bell, interrogo-me, que Virginia Woolf conheço bem, conhecemos todos, creio. E, como sempre quando me interrogo, vou em busca de uma resposta.

Vanessa Bell, a pintora, era irmã mais velha de Virginia, a escritora. Artista de créditos reconhecidos, espécie de matriarca não-oficial do círculo de pintores, escritores e outros artistas e intelectuais que viria a ficar conhecido como Grupo de Bloomsbury. Vanessa nasceu em 1879 e partiu em 1961, octogenária, depois de uma vida longeva, recheada de polémica, amores, arte e morte.

Ninguém o poderia prever quando as duas manas eram apenas crianças ou adolescentes, no seio de uma família privilegiada, a jogar criquete no relvado e, nos tempos livres das aulas com tutores particulares, entretidas na salinha privada com livros e tintas. No entanto, estava lá tudo. Por exemplo, ambos os pais já tinham sido casados em primeiras núpcias e tinha outros filhos. Do lado paterno, Laura, que seria dada como louca. Do materno, Stella, que morreria cedo, e Gerald e George, que marcariam para sempre as duas meias-irmãs, Vanessa e Virginia, ao abusar delas sexualmente desde tenra idade, como se veio a revelar muito mais tarde.

Quando ambos os progenitores morrem, Vanessa quer afastar-se dos meios-irmãos o mais que lhe for possível. Vende a propriedade de Westminster, onde viviam, e com Virginia e os dois irmãos mais novos, Thoby e Adrian, muda-se para Bloomsbury, onde tudo começa a acontecer à medida que os rapazes vão crescendo, indo estudar para Cambridge e trazendo depois os colegas de lá para tertúlias caseiras.

Espíritos livres, criativos e de muitas formas torturados, as manas avançam na vida por caminhos paralelos, recheados de casos amorosos, hetero e homossexuais. Virginia, é do conhecimento geral, no meio de vários relacionamentos, entregou-se aos prazeres sáficos, embora casada com Leonard Woolf. A também escritora Vita Sackville-West foi talvez a sua verdadeira grande paixão. Pois também Vanessa viveu um ‘casamento aberto’. Deu o nó com Clive Bell em 1907, de quem teve dois filhos, Julian e Quentin, mas ambos tiveram os amantes que quiseram, fazendo vidas praticamente separadas. Ela nomeadamente com o pintor Duncan Grant, com quem teve uma filha, Angelica, – que Bell perfilhou, para evitar falatório – e com quem marcou também um estilo de decoração de interiores que perdurou por muito tempo, pintando paredes, portas e móveis na quinta de Charleston, para onde foram viver a determinado momento. Ele, ela, as crianças e, na maior parte do tempo, também o amante de Duncan, David Garnett.

Mas interessam-me as irmãs, sempre insatisfeitas, inquietas. Como interessou, por exemplo, ao realizador Stephen Daldry que, no filme “As Horas”, deu o papel de Virginia a Nicole Kidman e o de Vanessa a Miranda Richardson. Sim, eram as duas muito próximas. E de várias maneiras. Desde a ciumeira entre manas – que leva Virginia a manter um flirt prolongado com o cunhado –, até ao amor e apoio incondicional que manifestam constantemente. No caso de Virginia, por exemplo, quando na primavera de 1911, ela própria no meio de mais uma depressão, vai ter com Vanessa à Turquia onde, de férias, esta sofrera um aborto espontâneo e um colapso nervoso. Escrevendo à irmã em 1937, Virginia interroga-se: “Achas que temos o mesmo par de olhos, apenas com diferentes óculos?”

A vida das duas mantém-se fortemente ligada até ao fim, entre romances de sexualidades várias, desgraças em catadupa e muito talento artístico, uma para as palavras, outra calando-as mais e mais a cada desaire e transformando-as em quadro atrás de quadro, isolando-se numa dolorosa explosão de criatividade. Como quando, ao lado de Duncan e depois do nascimento da filha de ambos, este volta a assumir a sua homossexualidade e Vanessa, em vez de se revoltar, aceita apenas e contenta-se em manter o maravilhoso e intenso carinho que tinham um pelo outro pintando lado a lado para o resto da vida. Ou mais tarde, em 1937, quando lhe morre o filho mais velho, Julian, bombardeado quando conduzia uma ambulância durante a Guerra Civil Espanhola. Ou por fim, em 1941, quando Virginia, considerando que está a enlouquecer de vez, escolhe encher os bolsos de pedras e entrar rio Ouse adentro, deixando uma nota de suicídio.

Curiosamente, Virginia odiava posar. Apesar disso, em tela de 1911, Vanessa retrata-a a tricotar, afundada num cadeirão. Tal como a personagem Mrs. Ramsay, num momento de calma intimidade, em “Rumo ao Farol”, sendo apenas ela mesma. Mas Vanessa imortalizou-a também numa outra tela, em 1934, que fora exposta na Galeria Lefevre, vendida a um coleccionador privado e desaparecida depois na voragem do tempo. Pensava-se até que pudesse ter sido destruída durante a segunda Guerra Mundial.

Até que, 70 anos depois, em 2004, um telefone tocou na fundação que garante a memória de Charleston e alguém informou que o quadro ainda existia e continuava até na mesma família de quem primeiro o adquiriu – que o veio a ceder para exposição. Vanessa imortaliza-a sentada na saleta da casa de Londres, 52 Tavistock Square, pés em cima de um tapete desenhado por Duncan Grant. Numa carta, a escritora recordava que, embora surgisse depois no quadro com ar sério e sem qualquer livro nas mãos, durante as sessões em que foi feito, ela e Vanessa se mantiveram entretidas com a leitura das escandalosas memórias da amiga Ottoline Morrell.

Vanessa pintara este quadro na sequência de um pedido feito pela National Portrait Gallery, que Virginia escolheu declinar. Numa carta para o sobrinho Quentin Bell, a escritora explicava: “Eles vão guardá-lo numa cave algures. E dez anos depois de eu morrer vão expo-lo e dizer: alguém quer saber como era Virginia Woolf? E todos vão responder: não. E vai acabar por ser destruído.” Enganava-se. Como se terá enganado quem pensou que Vanessa era “apenas” a irmã mais velha da formidável escritora. As duas partilharam vidas incomuns, intensas, retorcidas e é difícil dizer qual delas influenciou mais a outra.

Certo é que, como Vanessa escreveu um dia, “Será uma vida estranha, mas... deverá ser uma boa vida para pintar”. Virginia não teria dito – ou escrito – melhor.

Tabucchi: a ideia de sermos mortais ajuda muito a viver

Já não o usava quando, ontem, morreu em Lisboa, aos 68 anos – de eufemismo prolongado. Mas, para mim, Antonio Tabucchi terá sempre o bigode com que aprendi a conhecê-lo algures lá pelo Agosto de 1989, quando li “Nocturno Indiano”. Sei a data porque está escrito no interior do volume que estava sossegado ali na estante do meio, quem me dera não ter tido tão cedo razão para lhe ir mexer.

Talvez o italiano mais português que conheci – partilhava a nossa nacionalidade desde 2004 –, escritor, tradutor, apaixonado por Fernando Pessoa, eterno nomeado para o Nobel da Literatura, Tabucchi admitia sonhar muitas vezes na língua que é a nossa. E faz sensivelmente dois anos que, ao jornal i, diria algo que me ficou, muito antes da conotação política que hoje têm os bolos em questão: "Para escrever tem de haver uma urgência, um desejo. Tem de me apetecer escrever como me apetece comer uns pastéis de nata. Preciso daquilo, naquele momento." Faz sentido.

Não lhe quero escrever uma elegia nem cair no saco sem fundo das biografias. Só despedir-me simbolicamente do corpo que teve bigode e depois deixou de ter, que das palavras que deixa não me separarei nunca. Aliás, ele e eu partilhamos a perspectiva da morte de que dá conta numa entrevista ao Público ao falar do livro “Tristano Morre”.

“Quando se é mais novo, é uma ideia tão longínqua que normalmente pensamos que nunca morremos. É uma das maiores desgraças que pairam sobre o mundo moderno. As pessoas que estão no poder, sobretudo, devem pensar que nunca vão morrer. É por essa razão que são tão estúpidas. A modernidade elidiu a ideia da morte. É uma omissão incrível. Um dos factores mais negativos do comportamento da nossa sociedade. Deveria ensinar-se aos miúdos, na escola, da maneira mais natural, que temos de morrer. A ideia de sermos mortais ajuda muito a viver. “

Em breve será Abril e Tabucchi voltará a viver através de "O Tempo Envelhece Depressa", conjunto de contos sobre a passagem do tempo, passado e presente, a editar pela D. Quixote, que já anunciou também mais onze livros para os próximos três anos, entre novidades e reedições, as farturas que surgem depois do adeus. Antes disso, já no dia 2 de Abril, a partir das 10h30, a Casa Fernando Pessoa, em Campo de Ourique, Lisboa, vai organizar uma maratona de leitura integral do “Requiem”, que será gravada para que possa ser acessível para os invisuais. Acho que Antonio, onde quer que esteja, e mesmo avesso como sempre foi a computadores e à internet, gosta disso.

domingo, 25 de março de 2012

Pelo Ribatejo, entre leituras e espantos!


Quando, há 3 semanas atrás, decidi estender os braços a identificar sítios, cantos e recantos onde se pode ler, escrever e beber inspiração, fi-lo na ideia prévia de desenhar um roteiro simples por algumas cidades onde sabia, de antemão, que a prática existe. Mal sabia eu que esta viagem ia sê-lo mesmo, no amplo sentido do termo, e que seria difícil escolher um ou outro local, uma ou outra cidade. A questão está no facto de este País ser verdadeiramente rico, na sua história, na sua vivência, na sua arte. Contorci-me no entusiasmo de perceber que a tarefa não seria assim tão simples e que não podia cingir-me ao que já conhecia. Tive, pois, que coordenar o tempo e o espaço e lançar-me, quase em imagem de aventura, por este rectângulo fora e procurar saber, olhar, ver e permitir-me voar no processo de encantamento. Esta rúbrica, pensada em não falhar a cada quinta-feira, apresenta-se esta semana uns dias depois. Tentarei que daqui para a frente a quinta se mantenha. Tentarei, o mais possível, não faltar, pelo menos, a nenhuma região. Hoje fecha-se aqui o Ribatejo, porém admito que incompleto. Que sirva este espaço semanal para abrir o apetite a viajar por aí, para beber leituras, para atiçar as mentes criativas aos cenários de delírio.


A viagem vai começar.


Saí de Santarém para Abrantes. Cidade especial que na última década e meia tem vindo a fazer jus ao espírito criativo, que sempre a caracterizou, mas que se manteve desconhecido para os demais. É sabido e reconhecido na cidade que a vinda da ESTA – Escola Superior de Técnologias de Abrantes, trouxe outra cor, outro movimento, outros hábitos e necessidades. E falando em hábitos, no que nos toca neste roteiro, é interessante perceber, a um dia de semana, o quanto a criatividade é explorada quando se encontram entes a divagar, desde os discentes de Comunicação e Video aos de Engenharia, na esplanada do Chave D´ouro. Seria comum a qualquer cidade, palco de ensino superior, encontrar os atarefados estudantes, em plena produção, nas mesas dos cafés. Neste caso, são os próprios docentes que criam estes momentos ao ar livre e fomentam as tertúlias nas áreas criativas. Na falta de um Campus, o centro da cidade veste o efeito e parece-me que, mesmo que este existisse, nada substituiria o deleite da construção colectiva no meio da vivência do dia-a-dia. Não muito longe deste largo, nada longe mesmo, diria que a metade de meio passo, paredes meias com a dita ESTA, fica a Biblioteca Municipal António Botto, no Antigo Convento de São Domingos. Esta biblioteca é qualquer coisa. Não só pelas fachadas do edificado como, e apesar delas, pelo mundo que se abre quando se passa a porta. São dois mundos que se fundem com os livros pelo meio ou, são os livros que fundem tamanha ideia de recuperação. Exagero? Talvez, mas as emoções dependem tanto dos nossos olhos como os pormenores da vontade de os encontrar. E ali, a “passagem” é perfeita. Esta biblioteca tem actividades mensais e actividades temáticas, chama a si os Abrantinos em vários formatos. Em exposições, em palestras, em encontros, em lançamento de livros. Em apresentação de autores. Na coincidência feliz de uma quinta-feira cheia, a António Botto recebeu Richard Zimler, o autor do Último Cabalista de Lisboa que escolheu esta cidade para morada de resguardo. Numa sessão dupla, tendo sido a primeira firmada para o público juvenil com a Ilha Teresa, a segunda foi aberta ao público em geral com Anagramas de Varsóvia. Livros a ser sublinhados num futuro próximo. A visita terminou, forçada, sem tempo para passar pelo cine-teatro São Pedro para perceber a agenda. Valeu-me ter visto no Chave D´ouro que o grupo de Teatro Palha de Abrantes continua em grande. Valsou a memória 3 anos para trás quando este grupo mergulhou em Raul Brandão e O Rei Imaginário. É trabalho que vale sempre a pena acompanhar. Mas faz-se tarde, a próxima paragem rápida é Tomar. Enquanto viajo aproveito para dizer que António Botto, um Abrantino, foi um magnífico e polémico poeta cuja obra mais conhecida, Canções, foi traduzida para Inglês pelo seu mui amigo Fernando Pessoa. Dos seus Sonetos ao O que ainda não se escreveu, acrescenta-se a marca de água de uma peça inquietante, Alfama.


Chegada a Tomar já pela noite, e com o sentido no grupo de teatro abrantino, a primeira vontade foi perceber o que anda a fazer um outro grupo, este tomarense, Os Fatias de Cá. Rapidamente percebi que andam em digressão com a Menina Inês Pereira. A última vez que assisti a uma peça, encenada por esta peculiar companhia, foi mesmo ali, em Tomar, no Convento de Cristo. Com todo o realismo possível e vestes da época a tentar descobrir O Nome da Rosa , qual Umberto Eco tão bem adaptado. Inevitável sorrir e pensar em mais uma cidade cheia de recantos e encantos. Para quem procura inspiração Tomar é um grito. Esplanadas e esplanadinhas com o  rio Nabão a brindar aqueles jardins que parecem saídos dos contos de Andersen. O caminho para o Convento de Cristo e a famosa Mata dos 7 montes. É impossível não cair na tentação das desmistificações templárias e correr aqueles caminhos de mãos estendidas à viagem que faz pausa na Charola. Como a noite já vai longa o recurso é mesmo a memória. E eis que me lembro de um autor que deixei em Abrantes. José Manuel Heleno, e o Atentado ao Pudor ou o Demónio de Sócrates, dois exemplares de uma obra mais vasta, em torno do ser filosófico ou da filosofia do ser. Tiraram-me horas de sono, mas em bom. De Tomar fica a essência do lugar, a vontade de voltar com tempo, com o tempo imergido do espaço, transformado em sala de leitura gigante, em atmosfera perfeita de sonho e inspiração. De perceber um pouco mais, ou mesmo tudo, de Jacomme Raton, de Vieira Guimarães ou de Carlos Campeão dos Santos. Tudo nomes para ir à procura, perguntar, indagar, memorizar. E ando há tempo para perceber o todo de um escritor prodígio, que tem 35 anos e uma estante repleta de livros da sua autoria. A sua graça, estória e obra ficam para outras núpcias. Não é difícil, pela descrição, chegar ao nome deste ser.


Torres Novas. O caminho faz-se de manhã ao encontro da Biblioteca Municipal Gustavo Pinto Lopes. É lá que recolho a agenda cultural. Aqui temos um elencar curioso. Posso dizer-vos que a oferta de iniciativas é bastante interessante! Há espaço para Bliblo-cinéfilos, música ao vivo a cada 4ª - quarta-feira de cada mês. Dia 29, por exemplo, haverá clube de leitura e, pasmem-se, com o titulo " discussão em torno de livros", feito na cafetaria da Biblioteca. Há também as Quintas à Escuta, abertas dos zero aos noventa e nove anos, onde o mote é a leitura em voz alta. Há ainda a Oficína do Conto, protagonizada por um "Chef das histórias". Há uma intenção declarada de criar hábitos de leitura e proporcionar as condições para o efeito. De salientar que esta biblioteca tem uma outra, a biblioteca braille. Esta é a cidade de Maria Lamas, escritora e jornalista, autora de vários contos infantis, mas também de romances e do célebre livro As Mulheres do meu País. Esta é a cidade que no ano passado acolheu o Bookcrossing "um clube de livros global que atravessa o tempo e o espaço. É um grupo de leitura que não conhece limites geográficos. Os seus membros gostam tanto de livros que não se importam de se separar deles, libertando-os, para que possam ser encontrados por outros. O objectivo do Bookcrossing é transformar o mundo inteiro numa biblioteca." O Tema foi o livro infantil. É com conforto que o tempo de espera, até à saída para outras paragens, é feito no Jardim das Rosas, bem perto da biblioteca, com o rio Almonda por companhia.



O "regresso a terra firme", esse, sorri à passagem mental por dois sítios, Vila Nova da Barquinha e Constância. O primeiro num apontamento muito rápido, o castelo de Almourol. Quem me dera ter o tempo do Mundo, a folha de papel guardada ao acaso e o lápis mal afiado. E sentar-me ali, naquela ilha no meio do rio, a voar por toda a paisagem, com toda a brisa e até com a chuva. Todos os amantes da escrita merecem um cosmos de inspiração como aquele. O segundo apontamento, a vila de Constância. A que chama a si a estadia vincada de um Camões, conhecida, e bem, como a Vila Poema, tem na casa dos Arcos a sua morada e no Zêzere toda a vontade que tudo isto não seja Lenda.

Pés ao caminho, para a próxima semana, em Terras da Beira.



Até lá!

*Castelo de Almourol

Fala-se da vida de Florbela Espanca... Hoje escolho este poema


Perdi os Meus Fantásticos Castelos

"Perdi meus fantásticos castelos
Como névoa distante que se esfuma...
Quis vencer, quis lutar, quis defendê-los:
Quebrei as minhas lanças uma a uma!

Perdi minhas galeras entre os gelos
Que se afundaram sobre um mar de bruma...
- Tantos escolhos! Quem podia vê-los? –
Deitei-me ao mar e não salvei nenhuma!

Perdi a minha taça, o meu anel,
A minha cota de aço, o meu corcel,
Perdi meu elmo de ouro e pedrarias...

Sobem-me aos lábios súplicas estranhas...
Sobre o meu coração pesam montanhas...
Olho assombrada as minhas mãos vazias..."

*Castelo de Óbidos