sábado, 8 de setembro de 2012

Poema à noitinha... António Aleixo

A Torpe Sociedade onde Nasci

I

«Ao ver um garotito esfarrapado
Brincando numa rua da cidade,
Senti a nostalgia do passado,
Pensando que já fui daquela idade.

II

Que feliz eu era então e que alegria...
Que loucura a brincar, santo delírio!...
Embora fosse mártir, não sabia
Que o mundo me criava p'ra o martírio!

III

Já quando um homenzinho, é que senti
O dilema terrível que me impôs
A torpe sociedade onde nasci:
— De ser vítima humilde ou ser algoz...

IV

E agora é o acaso quem me guia.
Sem esperança, sem um fim, sem uma fé,
Sou tudo: mas não sou o que seria
Se o mundo fosse bom — como não é!

V

Tuberculoso!... Mas que triste sorte!
Podia suicidar-me, mas não quero
Que o mundo diga que me desespero
E que me mato por ter medo à morte...»


*in "Este Livro que Vos Deixo...". António Aleixo morreu de Tuberculose em 1949. Tinha 50 anos. 

Livros em miniatura à solta na biblioteca


A "Grande Exposição Livros Miniaturas" integra 537 livros e brochuras portuguesas e estrangeiras, incluindo vários exemplares raros e icónicos, de muitas épocas e locais.

Nesta exposição, organizada por João Lizardo, o volume mais pequeno em exposição mede menos de 3 milímetros de altura, e os maiores não excedem os 10 centímetros! Abarca toda a história dos Livros Miniatura, incluindo um exemplar do mais antigo tipo de livro miniatura conhecido – uma pequena placa de argila em escrita cuneiforme datado de cerca de 2000 a.c. até à actualidade, com um livro de artista criado em 2009. No final da visita à exposição, os participantes são convidados a fazer um livro em miniatura.

Horário:
Terça a sábado 10h às 18h | Domingo 14h às 18h

Biblioteca Municipal Almeida Garrett
Jardins do Palácio de Cristal
Rua de Entre-Quintas, 328
4050-239 Porto

a-ver-livros: a metamorfose perante Duy Huynh

O estômago permanece sereno
mas as pernas desfazem-se em borboletas
quando leio as linhas que escreveste
noutro tempo

a poesia é imortal, amor
mesmo que tu não sejas


* para conhecer mais do trabalho do vietnamita Duy Huynh, que vive nos Estados Unidos, é só seguir o link  www.duyhuynh.com

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

"Typography Sketchbooks" - a tipografia em riscos e rabiscos


A tipografia é uma obsessão para a maioria dos designers. É o coração de toda a comunicação visual e é uma das formas mais puras de projecto, uma que sempre pode ser melhorada e aperfeiçoada.

"Typography Sketchbooks" entra nas mentes de designers que criam tipos de letra, palavra, imagens e logótipos através de seus cadernos particulares. O resultado dessas reflexões abrangentes tipográficas oferece uma visão fascinante sobre a qualidade expressiva de letras e palavras. Destinado a todos aqueles que usam o tipo, à mão ou na tela, este compêndio agradável salienta a importância da boa tipografia num momento em que os hábitos de leitura estão a mudar e celebra uma arte que perdurou por séculos e continua a destacar-se.

Projecto levado a cabo por Steven Heller e Lita Talarico, co-presidentes do programa Design MFA e os designers Travis Caim, Viktor Koen, Matt Luckhurst, Esther Smith K + Dikko Faust.

"Typography Sketchbooks" inclui obras de referência da actualidade no design, incluindo Ivan Chermayeff, Segua Carlos, Milton Glaser, Kalman Maira, Aufuldish Bob, Carter Mateus, Javier Mariscal, Thomas Patrick, Erik Spiekermann, Nubel Viktor, Peter Bilak e Jean-Baptiste Levee. No total são cerca de 120 designers de todo o mundo incluídos neste projecto.


Para além de tudo o que se possa dizer ou escrever sobre este livro, nada supera a visão. Um prazer poder folhear as páginas e admirar para além das obras, a forma como está construído e organizado, com responsabilidade de concepção para Arezoo Moseni.


Para tal, deixo uma série de imagens retiradas do livro e também um vídeo com o folhear das páginas. Em Portugal encontra-se com alguma facilidade nas maiores redes livreiras do país em versão de capa dura. Também existem em paperback mas parece-me mais difícil encontrar. Uma edição da Thames & Hudson com mais de 600 imagens, obrigatório para quem estuda e trabalha de tipografia ou simplesmente gosta desta área.






1º Parágrafo: A Melhor da Noivas


O sorriso dos velhos é porventura uma das coisas mais adoráveis do mundo. Não o era porém o de João Barbosa no último dia de Setembro de 1868, riso alvar e grotesco, riso sem pureza nem dignidade; riso de homem de setenta e três anos que pensa em contrair segundas núpcias. Nisso pensava aquele velho, aliás honesto e bom; disso vivia desde algumas horas antes. Eram oito da noite: ele entrara em casa com o mencionado riso nos lábios.




a-ver-livros: à luz da vela com Kike de la Rubia

Lembras-te de quando éramos miúdos?
Ainda não havia electricidade lá no monte 
e a avó insistia para não lermos muito tempo
que fazia mal aos olhos.

Hoje uso óculos e cada vez vejo menos
mas já ninguém me tira os milhares de livros
que me passaram pela vista
sim, mesmo sob a luz trémula da vela
estiraçados no chão de cimento fresco 
da sala da salgadeira



* para conhecer mais do trabalho do ilustrador madrileno Kike de la Rubia é só seguir o link www.kikedelarubia.es

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

O meu livreiro fica do outro lado do Atlântico


84 Charing Cross Road: a morada da livraria Marks & Co. em Londres.
14 East 95th St.: a morada da cliente em Nova Iorque.
5 de Outubro de 1949, o dia da primeira carta, a forma como tudo começou:

“Caros senhores,
O vosso anúncio, no Saturday Review of Literature, diz que se especializam em livros que deixaram de ser editados.”
A cliente: Helene Hanff
O livreiro: Frank Doel

O livro é uma compilação de epístolas entre livreiro e cliente entre Outubro de 1949 e Outubro de 1969, e no entanto é tanto mais do que isso, porque nos dá o privilégio de ver uma amizade em construção, e até aprender, eu mais uma vez percebi o quão imprescindível é o sentido de humor na construção.
“(Parece-me ridículo continuar a escrever “Caros senhores” quando é óbvio que é sempre a mesma alma solitária a tratar dos meus assuntos.)”

Depois a curiosidade, qual será o cor dos olhos, como o tom de voz.
“... diga-lhe que sou tão pouco estudiosa que nem fui para a faculdade. Simplesmente possuo um gosto muito peculiar por livros, graças a um professor catedrático de Cambridge conhecido como Q., que conheci numa biblioteca quando tinha dezassete anos. E tenho um ar tão inteligente como um mendigo da avenida da Broadway. Vivo dentro de camisolões comidos pelas traças e calças de lã, porque aqui não há aquecimento durante o dia. É um prédio castanho de cinco andares, e todos os outros inquilinos vão para o trabalho às 9h e só voltam às 18h... E porque haveria o senhorio de ligar o aquecimento de edifício por uma pequena escritora/leitora de guiões que trabalha na casa do rés-do-chão?”

A fidelidade:
“Envie também o Oxford Verse, por favor. Nunca ponha em hipótese se já encontrei alguma coisa em qualquer lado, já nem procuro nada onde quer que seja. Porque hei-de fazer o caminho todo até à 17th St. para comprar livros sujos e mal feitos se posso comprar exemplares limpos e bonitos na vossa loja sem deixar a minha máquina de escrever? Em relação à cadeira onde me sento, Londres é bem mais perto do que a 17th St.”

As coincidências:
“Obrigada pelo livro lindo. Nunca antes tive um livro com as páginas debruadas a ouro a toda a volta. Acreditam que chegou no dia do meu aniversário?”
Os planos de uma viagem, de um encontro.
No entretanto a amiga que passa por Londres e lhe dá nota da visita à livraria e ao seu livreiro:
“É uma loja antiga muito querida saída de um livro de Dickens, irias ficar doida por ela. Há bancas à porta e eu parei e folheei algumas coisas para me mostrar interessada antes de entrar e explorar. Lá dentro, é um pouco escuro, cheiras a loja antes de a ver, é um cheiro muito agradável, não consigo explicar muito bem, mas combina bafio e pó e idade, e paredes de madeira e chão de madeira. (...) As prateleiras nunca mais acabam. Chegam ao teto e são muito velhas e cinzentas, como o carvalho antigo que absorveu tanto pó ao longo dos anos que perdeu a sua verdadeira cor. (...) Fiquei cerca de meia hora na esperança de que o teu Frank ou alguma das raparigas aparecessem, mas eu cheguei por volta da uma, suponho que estavam todos a almoçar e eu não podia ficar mais tempo.”

As confidências:
“Limpo os meus livros todas as primaveras e deito fora aqueles que nunca lerei outra vez, tal como deito fora as roupas que nunca vestirei outra vez. Isto choca toda a gente. Os meus amigos são muito estranhos com os livros. Leem todos os best-sellers, terminam-nos o mais rápido possível, acho que saltam muitas partes. E NUNCA leem nada duas vezes, por isso não se lembram de uma única palavra no ano seguinte. Mas ficam profundamente chocados se me veem deitar um livro no lixo ou dá-lo. Da forma que eles veem as coisas, compramos um livro, lemo-lo, pomo-lo na prateleira, nunca mais o abrimos no resto da vida e NÃO O DEITAMOS FORA! SE FOR DE CAPA DURA, NEM PENSAR! Porque não? Pessoalmente não consigo pensar em nada menos sacrossanto do que um livro mau ou mesmo medíocre.”

O encontro sempre adiado:
“... o meu querido dentista, que esteve em lua de mel. Eu financiei a lua de mel. Já lhe disse que ele me disse, na primavera, que teria que chumbar todos os dentes ou tirá-los todos? Decidi que preferia chumbá-los, porque já me habituei a ter dentes. Mas o preço é astronómico. Por isso a Isabel tem de ascender ao trono sem mim. Durante os próximos anos só os meus dentes é que vão ver coroas.”

As encomendas com desabafos:
“Têm Journey to America, de De Tocqueville? Emprestei o meu livro a alguém que nunca mo devolveu. Porque é que as pessoas que nunca sonhariam em roubar nada pensam que é perfeitamente correto roubar livros?”

E eu:
Ao ler estas cartas, ao ler esta história sobre uma amizade, percebo e concluo mais uma vez o quão fácil é fazer amigos através dos livros, que os livros são excelentes tijolos.
Para a história ser perfeita, teria a sua graça que tivesse sido um livreiro a enfiar-me o livro nas mãos, mas esta história não é perfeita, foi apenas uma pessoa que me parece ter tudo para ser meu amigo.



Da Editora:





1º Parágrafo: Agosto


O porteiro da noite do edifício Deauville ouviu o ruído dos passos furtivos descendo as escadas. Era uma hora da madrugada e o prédio estava em silêncio.
“Então, Raimundo?”
“Vamos esperar um pouco”, respondeu o porteiro.
“Não vai chegar mais ninguém. Já está todo mundo dormindo.”
“Mais uma hora.”
“Amanhã tenho que acordar cedo.”
O porteiro foi até a porta de vidro e olhou a rua vazia e silenciosa.
“Está bem. Mas não posso demorar muito.”


* Rubem Fonseca nasceu aos 11, de Maio de 1925, em Juiz de Fora, Minas Gerais.
* Estreou-se no romance com O Caso Morel (1973).
* Em 2003 foi vencedor do Prémio Camões.

a-ver-livros: de bicla com Karen Cooper

A rua
A cidade
O mundo
tudo faz silêncio
para ouvir melhor a voz com que escreves

a voz com que me falas do teu mundo
dos teus silêncios
da tua cidade
da tua rua 

enfim, de mim
que livros são espelhos
também de quem os lê



* para conhecer mais do trabalho da norte-americana Karen Cooper é só seguir o link karencooperpaintings.com

Livro do mês: sobre o autor, Kazuo Ishiguro

Ainda não é hoje que começo a entrar livro dentro. De "Nunca Me Deixes", a obra que escolhi para lermos em Setembro, deixo-vos por enquanto apenas a contracapa.

"Kathy, Ruth e Tommy cresceram em Hallsham - um colégio interno idílico situado algures na província inglesa. Foram educados com esmero, cuidadosamente protegidos do mundo exterior e levados a crer que eram especiais. Mas o que os espera para além dos muros de Hallsham? 
Só vários anos mais tarde, Kathy, agora uma jovem mulher de 31 anos, se permite ceder aos apelos da memória. O que se segue é a perturbadora história de como Kathy, Ruth e Tommy enfrentam aos poucos a verdade sobre uma infância aparentemente feliz - e sobre o futuro que lhes está destinado."

Não, não é uma versão adulta do "Colégio das Quatro Torres" ou de "As Gémeas no Colégio de Santa Clara", longe disso. E por uma vez uma contracapa não se põe em bicos de pés, diz apenas como é: "Um romance profundamente comovedor, atravessado por uma percepção singular da fragilidade da vida humana".

Faço convosco o mesmo percurso que fiz quando, cativada por esta contracapa, comprei o livro e o trouxe para casa: fui tentar perceber quem é o autor.

Kazuo Ishiguro nasceu em 1954 na cidade japonesa de Nagasaki - fundada por navegadores portugueses na segunda metade do século XVI e a tentar então reerguer-se da destruição quase total causada nove anos antes pela segunda bomba atómica lançada pelos Estados Unidos.

A preparar-se para fazer 58 anos em Novembro, o pequeno Kazuo tinha apenas 5 quando os pais mudaram a família para Inglaterra. Ia ser por pouco tempo, pensavam. Tornou-se permanente. E se em casa se falava japonês e se vivia como japoneses, a verdade é que a relação de Ishiguro com a sua terra natal acabou por se forjar no cinema, que ele hoje assume como a sua grande influência.

Estão a imaginá-lo tímido, nariz enfiado nos livros, dividido entre duas culturas? Esqueçam isso. Antes de entrar para a Universidade de Kent chegou a ser batedor na caça à tetraz em Balmoral, a magnífica propriedade da rainha de Inglaterra, e depois trabalhou muitos anos como assistente social. Pelo meio, escreveu canções e gostava de as interpretar nas ruas, ao mesmo tempo que sonhava ser um cantor/compositor famoso. Hoje, dessa fase só resta meia dúzia de guitarras, que mantém em casa. E evoluiu de escrever canções para escrever livros.

Aclamado largamente, Kazuo Ishiguro foi até nomeado para quatro Man Booker Prize. Ganhou um, em 1989 por “Despojos do Dia”, de que toda a gente já ouviu falar. Até fizeram um filme dele. Podia continuar a elencar os seus feitos literários - afinal o homem até tem direito a ter o seu retrato nas paredes da National Portrait Gallery, em Londres, como vos contei ontem.Mas isso encontram com facilidade na wikipedia. 

Talvez não seja tão fácil ficarem a saber que o homem algo enigmático que assina "Nunca Me Deixes" tem a mania de vestir sempre de preto; o seu apelido, traduzido em dois caracteres nipónicos, significa pedra preta: e é casado e tem uma filha de 20 anos chamada Naomi. 

Curiosamente, "Naomi" é o título de um livro de Junichiro Tanizaki, um dos mais reputados escritores nipónicos de sempre, obra de tal forma recheada de sensualidade que até se lhe referem como a Lolita japonesa, e, ao mesmo tempo, símbolo da mulher nipónica que é seduzida pela cultura ocidental. 

Algo me faz crer que a escolha desse nome para a filha diz muito sobre Ishiguro. E se foi uma mera coincidência... caramba, que coincidência tão literária, ao melhor estilo das tramas delicadamente tecidas pela sua escrita, como acontece em "Nunca Me Deixes". Mas do livro falamos em breve. Vão começando a ler.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

1º Parágrafo: O Sorriso do Lagarto


Talvez isto não fique claro ainda por muito tempo, mas o exame consciencioso dos factos que levaram aos acontecimentos principais deste relato mostra que sua primeira cena se desenrolou em data já um pouco distante, sem que ninguém então pudesse saber o que pressagiava. Deu-se num dia morno e paralisado, em que até mesmo as copas das árvores amanheceram petrificadas, um dia de soalheira. A soalheira se declara depois de uma conjugação de eventos naturais, que somente a sabedoria de uns poucos antigos conhece em sua inteireza. De repente, em meio a uma conversa sobre nenhum assunto, um deles aperta os olhos como num esforço para divisar algo longínquo, esfrega a pele dos braços e da cara, cheira o vento e comenta que, pela lua, pelo ar, pela maré, pela textura de pele e por outros múltiplos sinais, amanhã haverá soalheira. E de facto amanhã o dia nasce revestido de uma fulgência metálica meio baça que converte em azougue estagnado o mar da contracosta da ilha e embuça numa neblina translúcida os socalcos das terras fronteiras. Logo cedo, o sol se alastra no espelho das águas, trazendo um revérbero desnatural aos rostos e fazendo com que os saveiros navegando morosamente ao largo se ocultem de tempos em tempos, por trás dos lampejos dos sulcos niquelados que abrem no mar. Em terra também tudo é lento, e chega a parecer milagroso quatro andorinhas conseguirem fender velozmente o mormaço vítreo que abafa o mundo, para se evaporarem na névoa, harmonizadas como uma esquadrilha.


* João Ubaldo Ribeiro nasceu na ilha de Itaparica, Baía, em 1941,
* Estreou-se no romance com Setembro não Tem Sentido (1968)
* Em 2008 ganhou o Prémio Camões.

a-ver-livros: três pisos e Anna-Maria Jung

Faz-se silêncio na biblioteca

ecoa apenas a voz interior de quem lê
poemas recheados
de estranhas metáforas

e um ocasional coração que bate mais forte
rascunhando uma carta de amor


* para conhecer mais do trabalho da austríaca Anna-Maria Jung é só seguir o link  annamariajung.com

Livro de Setembro: "Nunca Me Deixes", Kazuo Ishiguro

Amanhã explico-vos porque escolhi "Nunca Me Deixes", de Kazuo Ishiguro, para a leitura conjunta do mês de Setembro aqui no blog. Dou-vos tempo para o procurarem nas vossas bibliotecas ou para o comprarem na livraria mais próxima. 

Mas esta noite deixo-vos apenas com o retrato do escritor nipo-britânico, pintado por Peter Edwards para a Nacional Portrait Gallery, em Londres. E com um pouco da história deste momento. 


Escreve o autor:

"Imaginei que seria como foi com Luís XIV: estaríamos sentados num salão enorme, inundado pelo sol, a posar e pintar três dias de seguida. (...) Mas a primeira sessão foi uma experiência algo enervante. Peter tirou todo o tipo de fotos de mim, desde um 'close-up' do meu pulso até outro do meu tornozelo. Estava como que num mundo só seu, murmurando para com os seus botões e a olhar fixamente para partes várias do meu corpo. Foi mais ou menos como uma autópsia."

Escreve o pintor:

"Eu quase senti que estava a avançar para este retrato como se fosse um livro. À medida que o ia construindo ia como que tentando imitar a forma como Ishiguro escreve os seus meticulosos romances. E o que verão, frente ao quadro, muito mais do que olhando apenas para uma reprodução, são todas as muitas camadas que tem e a forma como a textura foi surgindo, como nunca fiz em outro retrato."

Continua Ishiguro:

"A tinta no meu retrato tem camadas tão grossas que o seu relevo é realmente montanhoso. Mas quando se recua um passo tudo parece encaixar como se numa fotografia. Algumas pessoas já disseram que o meu estilo de escrita é um pouco assim. Complicada quando se analisa ao detalhe, mas aparentemente muito simples à superfície."



Se isso vos diz alguma coisa já sobre "Nunca Me Deixes"...
Amanhã direi mais.


terça-feira, 4 de setembro de 2012

in «Gente Independente», Halldór Laxness

Para o jornal «The Independent» é "o livro do século". Vou na página 135, não me quero precipitar em tamanhos elogios... Encontrei estas palavras no final da 82. Deixo sublinhado.


(...) «Acabou por não ver outra alternativa se não declarar que na vida tudo dependia do homem encontrar-se a si próprio. Mais uma profecia apoteótica, e já ela encontrara de novo o seu equilíbrio. Quanto a ela não havia nenhuma dúvida de que o casal desta charneca se tinha encontrado a si próprio, tenho reparado que as pessoas pobres são sempre mais felizes do que aquelas pessoas ditas ricas, que na realidade não existem. O que são pessoas ricas? São pessoas que têm volumosos negócios e não possuem nada salvo as preocupações, bem feitas as contas, e que se vão embora tão indigentes deste mundo como os outros, excepto terem tido mais preocupações materiais e menos da verdadeira alegria de viver. (...)»

*Na imagem: o Nobel Islandês.


1º Parágrafo: Cem Anos de Solidão

Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e cana, construídas na margem de um rio de águas transparentes, que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas ainda não tinham nome e para as mencionar era preciso apontar com o dedo. Todos os anos, pelo mês de Março, uma família de ciganos andrajosos montava a sua tenda perto da aldeia e, num grande alvoroço de apitos e timbales, davam a conhecer as novas invenções. Primeiro levaram o íman. Um cigano corpulento, de barba ferina e mãos de pardal-dos-telhados, que se apresentou com o nome de Melquídades, fez uma truculenta demonstração daquilo que ele próprio denominava de oitava maravilha dos sábios alquimistas da Macedónia. Foi de casa em casa a arrastar dois lingotes metálicos, e toda a gente ficou espantada ao ver como as caldeiras, os tachos, as tenazes e os fogareiros caiam dos seus lugares, e as madeiras rangiam pelo desespero dos pregos e dos parafusos que tentavam despregar-se, e até os objectos perdidos há muito tempo apareciam por onde mais se procurara e arrastavam-se em debandada turbulenta atrás dos ferros mágicos de Melquíades. “As coisas têm vida própria”, apregoava o cigano com um sotaque áspero, “é tudo uma questão de lhes acordar a alma.” José Arcadio Buendía, cuja imaginação desaforada andava sempre à frente do engenho da Natureza e ainda mais além do milagre e da magia, pensou que era possível servir-se daquele invento inútil para desentranhar o ouro da terra. Melquíades, que era um homem honrado, preveniu-o: “Para isso não serve.” Mas José Arcadio Buendía não acreditava, naquela altura, na honradez dos ciganos, de modo que trocou a sua mula e algumas cabras pelos dois lingotes magnetizados. Úrsula Iguarán, sua mulher, que contava com aqueles animais para dar uma certa folga ao desmedrado património doméstico, não conseguiu dissuadi-lo. “Depressa nos sobrará ouro com que empedrar a casa” replicou-lhe o marido. Durante vários meses empenhou-se em demonstrar o acerto das suas conjecturas. Explorou a região palmo a palmo, até ao fundo do rio, arrastando os dois lingotes de ferro e recitando em voz alta o esconjuro de Melquíades. A única coisa que conseguiu desenterrar foi uma armadura do século XV, com todas as suas partes soldadas por uma camada de ferrugem, cujo interior tinha a ressonância oca de uma enorme cabaça cheia de pedras. Quando José Arcadio Buendía mais os quatro homens da sua expedição conseguiram desarticular a armadura, encontraram lá dentro um esqueleto calcificado que tinha, pendurado ao pescoço, um relicário de cobre com uma madeixa de mulher.


* Tradução de Maria Santiago
* Gabo, para os amigos, colombiano, foi Prémio Nobel em 1982
* Consta que ao ler a primeira frase da Metamorfose de Franz Kafka, "Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso", pensou "então eu posso fazer isso com as personagens? Criar situações impossíveis?".

a-ver-livros: pássaros e José Enrique Pinaglia

Em algum dia fomos assim
criança de livro na mão
sonhos por sonhar
quanto mais viver

e todos os pássaros no olhar


* para conhecer mais do trabalho do espanhol José Enrique Pinaglia é só seguir o link www2.uca.es/dept/didac_efpm/pinaglia.htm

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Isto o que nos faz este livro: Por Este Mundo Acima


(«Por Este Mundo Acima» de Patrícia Reis foi a leitura conjunta do mês de Agosto aqui no blog)

“Pedro viu-o totalmente perdido de mágoa numa tarde em que conseguiram chegar perto do rio. A cor da água era tenebrosa, um verde e castanho que corria a grande velocidade.

Não há gaivotas.

O que são gaivotas?”

Isto o que nos faz este livro.
Uma mistura de sentimentos, verdes e castanhos escuros, muitos escuros, esperança e desolação.

Isto o que nos faz este livro.
Pôr-nos a pensar no que de facto é importante.
Num tempo em que não paramos para pensar.
O exercício de parar. Paradoxal, talvez?
O exercício de pensar.
Num tempo em que damos tudo por adquirido.
Basta premir um botão e faz-se luz, água, gás, voz, imagem, movimento.
Basta abrir a porta de um frigorífico.
Mas, e se um antes e um depois.
E o depois, o regresso a um tempo original, marcado pelo ritmo da luz, das chuvas, dos ventos, das estações.
O regresso a um tempo em que os olhos sem luz se fecham no sono, em que os olhos, aos primeiros barulhos da manhã, se abrem, quase sempre assustados, para mais um dia.
O regresso ao tempo dos olhos nos olhos, sem distracção ou intermediário.
A evidente necessidade do outro para sobreviver, assim que, quando tudo falta, dentro da catástrofe das catástrofes, que não nos faltem os olhos de um outro.
A imprescindibilidade de uma testemunha da nossa existência.

Isto o que nos faz este livro.
Mostrar-nos a evidência.
A evidente necessidade do outro para sobreviver.
E mais a estranha necessidade, mesmo quando tudo falta, da arte, da música, da literatura, na redenção cabal do humano.
Assim um livro de sobreviventes, de afectos, de pessoas… como nós.





1º Parágrafo: Balada da Praia dos Cães


Presente nos autos e em figura própria Elias Santana, chefe de brigada. Indivíduo de fraca compleição física, palidez acentuada, 1 metro e 73 de altura; olhos salientes (exoftálmicos) denotando um avançado estado de miopia, cor de pele e outros sinais reveladores de perturbações digestivas, provavelmente gastrite crónica. No aspecto exterior nada de particular a registar como circulante do mundo em geral a não ser talvez a unha do dedo mínimo que é crescida e envernizada, unha de guitarrista ou de mágico vidente, e que faz realçar o anel de brasão exposto no mesmo dedo. Veste habitualmente casaco de xadrez, calça lisa e gravata de luto (para os devidos efeitos) com alfinete de pérola adormecida; caranguejo de ponteiros florescentes, marca Longines, que usa no bolso superior do casaco com amarra de ouro presa à lapela; farolins de lentes grossas, à toupeira, com comportamento mortiço; carece de capilares no couro cabeludo, o crânio é pautado por cabelinhos mas poupados, e distribuídos de orelha a orelha.


* Não terminando o curso de Matemáticas, em 1945, alistou-se, na marinha mercante, como praticante de piloto sem curso, de onde saiu compulsivamente porque «suspeito de indisciplina e detido em viagem do navio Niassa», conforme auto da Capitania do Porto de Lisboa, de 02, de Fevereiro de 1946.

a-ver-livros: selvagem como Roberta Angaramo

Somos todos animais selvagens
na leitura 
que fazemos 
dos outros

Devoramos 
os seus corações em sangue 
roemos os seus 
ossos exangues da luta
cuspimos
o que resta das suas 
carcaças

E nada trava o apetite


* para conhecer melhor o trabalho da italiana Roberta Angaramo é só seguir o link www.robertaangaramo.com

domingo, 2 de setembro de 2012

"Se..."

(ao domingo) Letras Focadas

“Na ponta da pena, soltam-se letras conjugadas, bem focadas, para serem percebidas”

Há imagens que se conjugam na perfeição com palavras.

 O poema famoso de Rudyard Kipling, "If", veio-me à memória no momento em que vi inscrito na parede de uma velha casa ente Lagos e Aljezur, a expressão "Se".

A condição "Se" remete-nos para todas as possibilidades e confere-nos um universo de escolhas que, em ultima instância, determinam aquilo que somos e aquilo que fazemos.

Fiquem então com o poema "If" de Rudyard Kipling, com tradução de Guilherme de Almeida.

SE

«Se és capaz de manter tua calma, quando, 
todo mundo ao redor já a perdeu e te culpa. 
De crer em ti quando estão todos duvidando, 
e para esses no entanto achar uma desculpa. 

Se és capaz de esperar sem te desesperares, 
ou, enganado, não mentir ao mentiroso, 
Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares, 
e não parecer bom demais, nem pretensioso. 

Se és capaz de pensar - sem que a isso só te atires, 
de sonhar - sem fazer dos sonhos teus senhores. 
Se, encontrando a Desgraça e o Triunfo, conseguires, 
tratar da mesma forma a esses dois impostores. 

Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas, 
em armadilhas as verdades que disseste 
E as coisas, por que deste a vida estraçalhadas, 
e refazê-las com o bem pouco que te reste. 

Se és capaz de arriscar numa única parada, 
tudo quanto ganhaste em toda a tua vida. 
E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada, 
resignado, tornar ao ponto de partida. 

De forçar coração, nervos, músculos, tudo, 
a dar seja o que for que neles ainda existe. 
E a persistir assim quando, exausto, contudo, 
resta a vontade em ti, que ainda te ordena: Persiste! 

Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes, 
e, entre Reis, não perder a naturalidade. 
E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes, 
se a todos podes ser de alguma utilidade. 

Se és capaz de dar, segundo por segundo, 
ao minuto fatal todo valor e brilho. 
Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo, 
e - o que ainda é muito mais - és um Homem, meu filho!»

Rudyard Kipling

Foto de Elsa Martins Esteves



                               

Book Case

Uma carteira para o seu telefone e para os cartões. Em forma de livro antigo! A Alexandra Fontes Ribeiro (nas suas pesquisas do costume) fez-me chegar esta pérola. Para apreciar...




*Saiba mais em https://www.obaz.com/game/product/710/589 (no site www.obaz.com).

a-ver-livros: viagem no tempo com Lucien Jonas

Eu pertenço a estes dias.
Reconheço o casaco amarelo
e a forma terna como me olhavas
quando lia

Onde estamos, amor?



* para conhecer melhor o trabalho do francês Lucien Jonas (1880 - 1947) é só seguir o link www.greatwardifferent.com/Lucien_Jonas ou wikipedia.org/wiki/Lucien_Jonas