A Arte é tudo. E tudo o resto é nada. Só um livro é capaz de fazer a eternidade de um povo. (Eça de Queirós)
Eis mais um conto de Gonçalo Viana de Sousa. Cerebral, cerebral, cerebral!
Foi a primeira vez que morri.
Tinha acordado de um sonho estranho,
negro e azul: meditabundo. Chovera toda a noite, pois o jardim do hospital
soltava um cheiro fresco e húmido a terra molhada, a jasmim, trevo e
rosmaninho. (Talvez não exista hospital nenhum com jardim e com estes odores,
mas, desculpa leitor, aqui precisamos da chuva e dos perfumes. Desculpa-nos.)
A enfermeira entrou no quarto com uma
pequena refeição e um copo com umas quantas pílulas coloridas, para os nervos e
para a cabeça.
Bom dia, senhor Sousa, diz a pobre
enfermeira mais doente e maluca que eu. (Sim, porque eu não estou doente nem
algo do género, simplesmente consigo ver personagens de livros a vaguear pelos
jardins e pelas avenidas. E por conta disso, chamam-me maluco! Feliz: é a
definição apropriada. Mas será a felicidade loucura? Será o dia-a-dia de horas
sem sol e luz a realidade de toda a gente, transeuntes esquecidos do coração?
Não sei, nem interessa. Para quê?)
A enfermeira espera até que eu tome a
refeição e as pílulas. (Para não acontecer o que aconteceu a Julieta, e essa
era bem mais louca que eu. Amor.)
Bernardo Soares parece estar sentado num
banco do jardim, enquanto ao seu lado, um leitor é assassinado por uma
personagem do romance que está ler. Cortázar?
Os pássaros voam alto e coloridos.
Cézanne pinta e Monet chora. E tudo isto acontece no jardim daquele hospital.
Tomei as pílulas. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis. A enfermeira sai. Até
mais logo, senhor Sousa. Até, respondo-lhe.
As janelas do quarto têm grades,
contudo, a realidade continua igual, impávida, inconsciente, indiferente. À
cabeceira, um romance grosso. Talvez Os
Trabalhadores do Mar, não interessa. No meio do livro, uma pílula negra.
Engulo a pílula negra, fecho os olhos e estou no jardim. Caminho ao lado de
Bernardo Soares que sorri muito, muito, muito. Do céu vem um ruído estranho.
Qualquer coisa a tocar. Parece um despertador. Despertador. Despertador.
DespertaDor. Abro os olhos. Chove torrencialmente. Levanto-me e enfrento a
realidade. Hoje vou enterrar a minha mãe.