sábado, 24 de março de 2012

in Minuete do senhor de meia-idade

A vida é uma pilha de pratos a caírem no chão. Vai a gente muito devagar da sala à cozinha, com aquela loiça toda de dias, de semanas, de meses em equilíbrio uns sobre os outros, a tilintarem e a tremerem, mais dúzias de garfos e facas escorregando lá de cima, no meio dos restos de comida e dos restos de infância, de espinhas de peixe de pequenas mentiras e de folhas de alface de domingos felizes, e nisto, sabe-se lá porquê, os anos entortam-se, uma saudade escorrega, a minha mãe, muito nova, escapa-se-me das mãos, e atrás da minha mãe os anos da tropa, o liceu, a esposa do farmacêutico a chamar-me do primeiro andar e eu com medo, vai a gente com aquela loiça toda, cada vez mais precária, mais vacilante, mais oblíqua

a morte da minha avó por exemplo, o dentista que se enganou no molar

e a meio do corredor ou então já na cozinha, já com a bancada à vista, já

pensamos nós

a salvo, os dias, as semanas, os meses deslizam uns a seguir aos outros, devagar primeiro, depressa depois, tudo junto por fim, e eis a vida em cacos no linóleo, um único pires completo e o resto bocadinhos, o único pires completo é alguém que não distingo a dizer-me adeus de uma varanda ou assim, um parapeito com sardinheiras, julgo que o mar ao longe, o único pires completo sou eu de bicicleta a voltar para casa



sexta-feira, 23 de março de 2012

O grito do livreiro

Hoje escrevo eu. Não tenho livro. Não sou escritor. A escrita não me paga. Sou livreiro. Criei e fiz nascer um blog. Sou anónimo para a maior parte das pessoas que me acompanha. Convidei colaboradores para me ajudar. Faço passar mensagens sobre livros. Publico poemas que encontro. Falo de autores. Falo de mundos mágicos. Tento despertar algumas emoções às pessoas. Faço por gosto. Porque sim. Tenho estilo próprio. Não espero que gostem / não gostem. Não vivo de julgamentos. Quem me julga é cá comigo. Aceito conselhos. Aceito quem vem por bem. Não aceito que interfiram com o que acredito. Não aceito que critiquem sem solução. Ajudo quem pede ajuda. Desprezo quem não aceita ser ajudado. Não me considero um ás. Não me considero um zero. Sei quais são os meus Dons. Não sei se os exploro todos. Juro que não sei se consigo explorá-los todos! Ou se me vão dar espaço para os explorar. Deitem as cartas. Convoquem a astróloga! Tenho telhados de vidro. Quem não tem, atire a primeira pedra. O céu não é o limite. É o início de algo muito mais belo e maravilhoso. Canso-me. Descanso-me. Consoante o estado de humor. Stresso. Rio-me do stress que ultrapasso. Deixo de stressar, passo para o desafio seguinte. Trato de arrumar livros. Atendo o telefone. Dou más notícias. "O seu livro está esgotado". Dou boas notícias. "Tenho o seu livro". Dou notícias de expectativa: "Não tenho, posso mandar vir". Troco livros. Por outros. Respondo a e-mails. Dou entrada de facturas de editoras. Devolvo livros às editoras. Sugiro livros que acredito que vão vender. Engano-me, por vezes. Falo com entusiasmo de um livro que me marcou. Conquisto a pessoa. Não conquisto a pessoa. Arrumo secções. Trato de destaques. Convido clientes a ter cartão de descontos. Convenço. Não convenço. Cobro em dinheiro. Cobro em multibanco. Em cheque. Em visa. Faço embrulhos. Faço laços. Limpo com o pano de pó. Abri uma livraria. Abri outra. Abri outra. Trabalhei noutra. E mais numa. Tive um. Tive dois. Tive três. Tive alguns chefes. Tenho colegas. Tive colegas. Tenho colegas que são amigos. Alguns colegas deixaram de ser colegas para passarem a amigos. Visito-os. Às vezes mais, às vezes menos. A saudade bate. Lembro-me das aventuras da primeira livraria. Da segunda. Da quinta... Continuo a tê-las.


Já tive más notícias. Algumas fizeram-me chorar. A maioria pôs-me a rir. Alguns clientes ficaram amigos. Seguem-me. Muitos e muitos... já não me lembro que atendi. Os importantes voltam sempre. Pelo que somos. Pelo amor que conseguimos transmitir. Porque somos uma boa equipa. Simpáticos. Unidos. Ou não voltam. Porque são livres. Uns comprometem-se. Outros não. Quem tem razão? Respeito a liberdade. Acima de tudo... A liberdade! Dessarumam... Eu arrumo. Ou não arrumo. Deixo para mais tarde. Conto uma história a uma criança. Conto uma história a um adulto. Leio para saber aconselhar. Se não sei, não falo. Se sei, não me calo. Ou doseio essa vontade. Porque, na verdade, apetece-me falar de livros o dia todo. Mas uma livraria não são só livros. Não é só conhecer. É carregar quantidades. É contar livros. É ter a certeza que estão na secção certa. É gerir egos e manias de pessoas. É satisfazer no atendimento. É trabalhar por turnos. Num shopping. Numa loja de rua. À semana. Ao fim-de-semana. No feriado. Na Consoada e na Páscoa. Quando calha. Profissão romântica. Que precisa de estofo. Que precisa de ser feita com gosto. Às vezes recebendo um abraço ou um sorriso. Às vezes recebendo desprezo ou indiferença.

Ser livreiro é... Tudo isto. Ou nem metade. Depende de como quisermos ser. Quem sou eu para o definir? Mais um? Menos um? Em bom Inglês: "Who cares?"

*ilustração de Pedro Vieira. Antigo livreiro. Actual escritor / ilustrador / apresentador de televisão.

quinta-feira, 22 de março de 2012

CARTAS DAS OUTRAS |Julieta & Don Juan|

|Esta rubrica será escrita por mim e ilustrada por Inês Portugal, serão cartas entre anónimos, personagens, entre quem escreve e quem lê, e/ou entre coisas. Poderão ser cartas de amor mas serão sempre cartas das outras.|

Cartas das Outras

(Carta de Julieta ao Don Juan, afinal eram amantes)


Verona, 2012

Querido Don Juan,

Porque não sais dos meus pensamentos ousados?!

Continuo numa angústia por não saber de ti, desde que te atiraste da minha varanda. Romeu de nada desconfiou. Foi por pouco. Nesse anoitecer senti-me vermelha sangue e a culpa assombrou-me. Mas não mais do que a vontade incomensurável de te rever...

Apesar disso, sei bem que não trocarei o certo pelo incerto, como Neruda me aconselhou. Terás que me provar a tua lealdade, já que os rumores das tuas inúmeras seduções correm céleres e torturam os meus doces tímpanos. Bem ao contrário, Romeu continua a ser o amor confortável e seguro que sempre foi (o único problema dele é pertencer àquela insuportável família dos Montéquio...).

Espero, pois, que não me desiludas e me encontres em breve. Como não é aconselhável que venhas a Verona nos tempos mais próximos, pensei em dar eu uma escapadela até Espanha. Mas como a vida não está fácil andei a pesquisar os melhores preços dos voos low cost para poder ver-te tão breve quanto possível. Terás que me encontrar em Madrid ou Barcelona, talvez no próximo mês. Voar para Sevilha está fora de hipótese pois é uma rota caríssima. Dir-te-ei, em breve, o dia e hora da viagem. E para te animar nesta espera envio-te uma garrafa de limoncello para não esqueceres o sabor da minha boca (espero que não se parta no transporte já que não poupei nos custos). Este é um dos melhores licores de limão de toda a Itália como poderás testemunhar.

Fico a contar os minutos, as horas e os dias para te rever.

Tua Ju


Minha Doce Ju,

Que bom foi receber a tua carta e, mais ainda, o limoncello que, reconheço, era de grande qualidade…

Custa-me perceber que os teus doces tímpanos têm sido sensíveis às intrigas que fazem sobre mim. Não lhes dês ouvidos. A verdade é que estou rendido ao teu corpo, à tua beleza, ao teu amor e ao teu sabor. Posso assegurar-te que estou definitivamente separado de Inês. A sua anunciada gravidez não passava de mais uma das suas fantasias... Mas não mais me apoquentará, agora que caiu nos braços de um príncipe português de nome Pedro. Dizem-me até que já está de casamento marcado e que a boda vai acontecer numa tal Quinta das Lágrimas, lá para Coimbra.

Agora está na hora de tu mesma enviares o banana do tal Romeu para a casinha dos pais, já que não passa de um menino mimado.

Espero que sejas célere a marcar a viagem e não deixes de trazer mais limoncello que o outro era bom mas... acabou-se. Prefiro ver-te em Barcelona. Podemos ficar em casa de Gaudi, um velho amigo que ficará muito contente em receber-nos. E sempre podemos dar um salto à praia para um mergulho...

Até breve

Beijo
D. J.

(ilustração: técnica é grafite; O D. Juan aparece sob a forma de uma hera que envolve a Julieta e lhe oferece uma maça/pecado, ah e a cabeça dela anda sempre a voar)

quarta-feira, 21 de março de 2012

Tonino Guerra, o poeta que nos deixa no dia Internacional da Poesia

O italiano Tonino Guerra partiu hoje aos 92 anos. No dia em que se assinala o dia Internacional da Poesia, o blog recorda o poeta, dramaturgo, pintor e escultor. Mas, sobretudo, argumentista (de Antonioni e Fellini). Um homem da Arte e das artes...

A Assírio & Alvim publicou algumas das suas obras, como os dois livros de poesia «O mel» e «Histórias para uma Noite de Calmaria». Cá por casa mora «O Livro das Igrejas Abandonadas» da colecção Gato Maltês. A história conta-se assim, neste excerto:

«Debaixo do chão da igreja matriz do Rosário encontraram uns mortos que estavam sentados. Ainda tinham nos pés meias de cores variadas como se costumava fazer dantes com os restos das malhas desfeitas.

De um buraco dos alicerces saiu uma espécie de pedra que não era realmente uma pedra, mas parecia. Mais tarde viram que se tratava de um livro, talvez um caderno cosido à matroca no dorso com um cordel.

Um professor holandês, fartando-se de estudar, descobriu que se tratava do diário de um santo sepultado na igreja, mas tinham-lhe também roubado os ossos. Um ano depois, com lentes grossas que nem fundos de garrafas, o professor conseguiu ler qualquer coisa dentro da pedra. Em primeiro lugar estas palavras: "Mais solitário que Deus não há ninguém."»


Em jeito de homenagem, a editora Assírio & Alvim escolheu estas palavras de O Mel, que convosco partilho:

CANTO VIGÉSIMO OITAVO

"Tenho a impressão que a avareza
não é um defeito se acontece na velhice
quando o tédio já invadiu o cérebro.
A mim salvou-me aos setenta anos
quando uma tarde comecei a apagar as luzes
e meu irmão tropeçava por todo o lado.
Agora recolho os fósforos usados
(com algodão podem servir para limpar os ouvidos)
e de manhã à noite
tenho muito que fazer:
quero que meu irmão deite pouco açúcar
no leite e eu, guloso por mel,
lambo apenas uma colherzita ao domingo,
em pé, entre as duas portas do guarda-louça.
A toalha não é necessária, usámos um pedaço de papel
que depois serve também para acender o lume.
De noite se alguém se levanta
basta uma candeia enquanto o outro permanece no escuro.
Assim passa uma hora, passam duas, passa um mês
e a cabeça trabalha."

Poesia - divina música da alma!

Hoje comemora-se a Poesia - a divina música da alma!

Não haverá melhor forma de passar este dia senão na companhia de um bom livro de poesia. Escolhê-lo é que não foi fácil, pois para uma leitora compulsiva de poesia, parecia-me algo impossível: "Que poeta? E que livro?"

Estas duvidas pareciam incontornáveis, mas quando alguém hoje me colocou a questão: "Filipa, quem vais ler hoje?" - respondi celeremente: "Ruy Belo!". O meu interlocutor surpreendeu-se e questionou-me: "Porquê, Belo?", ao que retorqui: "Porque... sim!". Fui repreendida com a sua exclamação: "Isso não é resposta!", ao que apenas murmurei: "E porque não?!"

Emprego e Desemprego do Poeta

"Deixai que em suas mãos cresça o poema
como o som do avião no céu sem nuvens
ou no surdo verão as manhãs de domingo
Não lhe digais que é mão-de-obra a mais
que o tempo não está para a poesia

Publicar versos em jornais que tiram milhares
talvez até alguns milhões de exemplares
haverá coisa que se lhe compare?
Grandes mulheres como semiramis
públia hortênsia de castro ou vitória colonna
todas aquelas que mais íntimo morreram
não fizeram tanto por se imortalizar

Oh que agradável não é ver um poeta em exercício
chegar mesmo a fazer versos a pedido
versos que ao lê-los o mais arguto crítico em vão procuraria
quem evitasse a guerra maiúsculas-minúsculas melhor
Bem mais do que a harmonia entre os irmãos
o poeta em exercício é como azeite precioso derramado
na cabeça e na barba de aarão

Chorai profissionais da caridade
pelo pobre poeta aposentado
que já nem sabe onde ir buscar os versos
Abandonado pela poesia
oh como são compridos para ele os dias
nem mesmo sabe aonde pôr as mãos"

Ruy Belo, in "Aquele Grande Rio Eufrates"

Poeta e ensaísta português ( 1933-1977), natural de São João da Ribeira, Rio Maior.

Licenciou-se em Filologia Romana e em Direito pela Universidade de Lisboa. Entra para a Opus Dei; que abandonará mais tarde. Em 1971, vai para Madrid como Leitor de Português, de onde regressa em 1976 para se tornar professor do ensino secundário no ano que antecede a sua morte.




Foi chefe da redacção da revista Rumo. Ruy Belo traz à poesia portuguesa uma respiração rítmica que, mais do que da inspiração bíblica (a forma do salmo ou do versículo), visível no seu primeiro livro e, subterraneamente, nos seguintes, lhe vem do pano de fundo «filosófico» à luz do qual se projecta o universo imaginário do poeta. Não se trata de filosofia no sentido abstracto, teórico, do termo, mas na linha de uma fenomenologia que determina a passagem de cada dado particular de existência, culminando com o próprio facto da condição humana do poeta – que desse modo se vai expor até ao limite «dramático», ou trágico, da sua vida –, a sintoma de um absoluto que as palavras procuram traduzir. Daqui decorre que tanto se possa falar do jogo do pião, de heróis do efémero real (José Maria Nicolau, Marilyn Monroe) ou mítico (Billy the Kid), como de pintura, da passagem das estações, do amor e da morte. Todos estes temas são, finalmente, a expressão de um relacionamento único, na sua natureza, do poeta com o tempo e com a linguagem que o procura exorcizar, no que ele tem de relativo, conferindo ao ser essa duração – e dureza – da pedra (da estátua) susceptível de um desafio ao destino, emblematizado, entre outros, no exemplo de Pedro e Inês de A Margem da Alegria.

E são certamente a mesma sensibilidade e a mesma consciência poética que lhe informam os ensaios, também eles preferencialmente dedicados à poesia. Autor de traduções no âmbito da História - Marc Ferro e H.-I. Marrou – e de traduções literárias, designadamente obras de Saint-Exupéry, Federico García Lorca e Blaise Cendrars, prefaciou Pelo Sonho É Que Vamos, de Sebastião da Gama.

Colaborou em várias publicações periódicas, nomeadamente em O Tempo e o Modo e Ocidente.
in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. VI, Lisboa, 1999

Hoje é também o Dia Mundial da Árvore e, para comemorá-lo num blogue dedicado à leitura, deixo aqui este poema visual , também de Ruy Belo


"Para mim, o maior poeta dos anos 60 (e não só) é Ruy Belo, e mais tarde ou mais cedo a imagem histórica desta época será revista em função de uma axiologia menos comprometida com as partes interessadas, porque o que marca cada época, no futuro, são os seus maiores vultos."

in Arquivo Digital de Literatura Experimental, A Poesia Experimental Portuguesa

Entrevista a Luís Adriano Carlos (Poeta, Professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto), por Raquel Monteiro (bolseira de Investigação do projecto)
Poesia nova (ensaio), 1961
Boca bilingue, 1966 ; 1997
Homem de palavra(s), 1969 ; 1997
Na senda da poesia (ensaio), 1969 ; 2002
País possível, 1973 ; 1998
Transporte no tempo, 1973 ; 1997
A margem da alegria, 1974 ; 2004
Toda a terra, 1976 ; 2000
Obra poética , 1981 ; 1984
Poemas, 1993
Todos os poemas, 2000 ; 2004

terça-feira, 20 de março de 2012

Sobre o gosto pela leitura - num livro de Virginia Woolf

Orlando - uma biografia foi livro do mês há muito tempo aqui no blog. Mas eu continuo a lê-lo com imensa tranquilidade e prazer.

Abrindo a página 53 (na edição BI - Biblioteca editores Independentes), podemos observar como a "doença" da leitura consumia Orlando. E que outros males trazia...

"(...) O gosto pelos livros fora nele precoce. Em criança, várias vezes o haviam surpreendido, à meia-noite, ainda debruçado sobre uma página. Tiravam-lhe a vela, e ele criava pirilampos, e por pouco, não incendiava a casa com um morrão. Para resumirmos o caso em poucas palavras, deixando ao romancista o cuidado de analisar e espraiar em todas as suas implicações a seda que assim comprimimos numa casca de noz - diremos que o nosso fidalgo padecia de amor pela literatura. Muitas pessoas do seu tempo, e muitas mais ainda da sua condição, escaparam a tal doença, ficando deste modo livres de correr mundo, cavalgar ou amar como melhor lhe aprouvesse. Mas alguns cedo se viram contagiados por um germe que se dizia nascido do pólen do asfódelo e oriundo da Grécia e da Itália, e de natureza tão mortal que fazia tremer a mão erguida para desferir um golpe, toldava os olhos à espreita da presa, e entaramelava a língua pronta a declarar o seu amor. Era da índole fatal desta doença substituir a realidade por um fantasma, de forma que Orlando, a quem a fortuna concedera todos os dons - pratas, roupa de cama e mesa, casas, criados, tapetes, camas em abundância - dissipava em névoa, com o simples gesto de abrir um livro, toda esta imensa acumulação. Os nove acres de pedra que eram a sua casa desapareciam; desapareciam os cento e cinquenta criados de dentro; os seus oitenta cavalos de sela tornavam-se invisíveis; e levaríamos demasiado tempo a contar os tapetes, sofás, adornos, porcelanas, salvas, galhetas, rescaldeiros e outros bens móveis, muitos dos quais de ouro lavrado, que se evaporavam como um sopro de brisa marinha ao contacto com o miasma. Assim acontecia, e Orlando, sentado sozinho a ler, era um homem nu.


Na solidão em que agora se achava, a doença fez nele rápidos progressos. Lia muitas vezes seis horas seguidas, pela noite dentro; e quando vinham pedir-lhe ordens para o abate do gado ou a ceifa do trigo, arredava o in-fólio com ar de não perceber o que lhe diziam. Isto, só por si, já era grave, e confrangia os corações do falcoeiro Hall, do palafreneiro Giles, da governanta, Mrs. Grimsditch, e do capelão, Mr Dupper. Um perfeito fidalgo como Orlando, diziam, não precisava de livros para nada. Ele que deixasse os livros, diziam, para os paralíticos e os moribundos. Mas o pior ainda estava para vir. Porque quando a doença da leitura toma conta do organismo, a tal ponto o debilita que o torna presa fácil desse outro flagela que mora no tinteiro e supra na pena. O infeliz dedica-se à escrita. E se isto já é mau num homem pobre, que não possui outros bens além de uma cadeira e uma mesa debaixo de um tecto carcomido -esse, afinal, não tem grande coisa a perder - a situação de um homem rico, que tem casos e gado, criadas, bestas e roupa branca, e que mesmo assim escreve livros, é digna do mais extremo dó. Perde o gosto por tudo; trespassam-no ferros em brasa; rói-o a peste. Daria tudo o que tem, até ao último tostão (tal é a virtulência do germe) para escrever um livrinho e ficar famoso; mas nem todo o oiro do Peru pode comprar-lhe o tesouro de um verso bem torneado. Por isso se consome e definha, dá um tiro nos miolos, vira a cara para a parede. Pouco importa a atitude em que o encontrem. Ele transpôs as portas da Morte e conheceu as chamas do Inferno."

Livros que deram filme: O Véu Pintado, Somerset Maugham

Somerset Maugham é um dos melhores escritores do século XX (embora a sua aventura pelas letras tenha iniciado no final do séc. XIX). Disso já sabia - experiência de livreiro e interessado pela literatura... Mas estranhamente nunca o comprovei. Tenho alguns livros aqui em casa na pilha dos «a-ler».

Entre eles, O Véu Pintado: a história que vos trago hoje e que me acaba de ser apresentada pelo grande ecrã. Depois de ter visto o filme, quase que me penitencio por nunca ter lido nada deste escritor. [Apesar de tudo, confesso que isso é sempre ultrapassado pela esperança de vir a ter vida suficiente para ler muito do que vou comprando ao longo dos anos. É bom guardar esta ideia: a de que ainda nos aguardam grandes romances...]

Maugham é o escritor completo. Dedica-se ao romance, à literatura de viagens, à crítica literária e ao teatro. Este livro é de 1925.


Curioso o facto de esta história ter dado origem a três filmes. O primeiro teve como grande estrela a sueca Greta Garbo em 1934. O segundo filme saiu em 1957, mas com um título diferente: "The Seventh Sin", com a actriz Eleanor Parker. Por último, em 2006 sai esta versão que hoje apresento - com Edward Norton e Naomi Watts nos principais papéis. Não só como personagens; entram ambos na sua produção.

Ao bom jeito de Hollywood, esta versão de O Véu Pintado tem uns toques sentimentais: o que foge ao roteiro traçado no livro de Somerset. Kitty (interpretada por Naomi Watts) acaba por se apaixonar pelo marido - algo que no livro não acontece.

Dirigido por John Curran, a beleza do filme passa pelas encantadoras imagens da região chinesa de Guangxi. O Dr. Walter Fane viaja para este local com a sua mulher para investigar as causas de uma grande epidemia de cólera. Pouco antes desta ousada aventura, descobre que Kitty lhe é infiel. Fica a ideia no ar que esta é "a paga" pelo adultério: ir viver para um sítio onde todos os dias morre gente pobre com esta doença devastadora e ainda pouco conhecida. O próprio investigador acaba por morrer dela... Mas a tempo de descobrir que a mulher traz no ventre um filho. No romance, a personagem sabe que é fruto do seu relacionamento fora do casamento. No filme, essa ideia fica no ar (levantando dúvidas de quem é o verdadeiro Pai).

O que mais emociona é o final. Muito por culpa de uma canção francesa que acabo de descobrir e que acompanha as filmagens magníficas destas paisagens chinesas - "À la claire fontaine." Uma música infantil francesa. Absolutamente bela.




"À la claire fontaine,
M'en allant promener
J'ai trouvé l'eau si belle
Que je m'y suis baigné

Il y a longtemps que je t'aime
Jamais je ne t'oublierai

Sous les feuilles d'un chêne,
Je me suis fait sécher
Sur la plus haute branche,
Un rossignol chantait

Il y a longtemps que je t'aime
Jamais je ne t'oublierai

Chante rossignol, chante,
Toi qui as le cœur gai
Tu as le cœur à rire,
Moi je l'ai à pleurer

Il y a longtemps que je t'aime
Jamais je ne t'oublierai

J'ai perdu mon amie,
Sans l'avoir mérité
Pour un bouquet de roses,
Que je lui refusai

Il y a longtemps que je t'aime
Jamais je ne t'oublierai

Je voudrais que la rose,
Fût encore au rosier
Et que ma douce amie
Fût encore à m'aimer

Il y a longtemps que je t'aime
Jamais je ne t'oublierai"



Só uma breve referência ao livro, que em Portugal é publicado pela Asa. Tenho que o descobrir. A sua sinopse diz o seguinte:

«Kitty sente-se prisioneira de um casamento infeliz e de um estilo de vida que está longe de ser aquele que sonhou para si. Sem que tivesse obtido a notoriedade social que desejava e afastada do seu país e da família devido à profissão do marido - bacteriologista destacado para Hong Kong -, a jovem acaba por encontrar algum consolo numa relação extraconjugal. Mas a traição acaba por ser descoberta pelo marido, que leva a cabo uma estranha e terrível vingança…

Através do despertar espiritual da adorável e fútil Kitty, Somerset Maugham pinta um retrato vívido da presença britânica na China e apresenta-nos uma galeria de personagens inesquecíveis.»

segunda-feira, 19 de março de 2012

Biblioteca

Tenho a vida numa Biblioteca!

Nas prateleiras da memória estou Eu, estás Tu, estão Eles.

Cada livro tem um nome; Cada nome uma história; Cada história uma vida!

Sento-me, vezes sem conta, junto à janela do meu pensamento e, sem prioridades, abro um livro de cada vez!

Leio romances, leio aventuras, leio suspense, leio... leio... leio.

Às vezes, sem contar, vêm parar às mãos os livros que contêm histórias de sonhos!

Aí, perco a noção do tempo e deixo-me ir!

Encontro sonhos de todas as formas, de todas as cores!

Julguei que só o livro com o meu nome estava repleto de sonhos! Como me enganei!!!

Vi que querias resgatar o passado e dar-lhe outra forma. Vi que querias encontrar outra verdade para te reconstruíres novamente. Vi que querias quebrar o espelho que reflecte a imagem da tua insatisfação.


Afinal, sou Eu, és Tu, são Eles que estão aqui... nestes livros imaginários, com sonhos tão reais!

Mas já tenho livros envelhecidos, cheios de pó. Não os leio. Falta-me a vontade!
São livros de decepções, de tristezas, de perdas! Esses livros cataloguei-os como "OS DISPENSÁVEIS" e coloquei-os na secção da reciclagem. Brevemente, pegarei neles, colocarei na minha máquina do esquecimento e vou transformá-los em papel colorido. Com ele, enfeitarei a janela do meu pensamento.

E, quando me sentar junto dela, olharei para as cores e pensarei: como foi bom ter sofrido, como foi bom ter-me decepcionado, como foi bom ter perdido... Assim, com tudo isso, a minha janela pode ter cortinas de memórias que enriquecem a minha existência.

Tenho a vida numa Biblioteca!

Nela existe uma janela decorada com cortinas coloridas.

Eu, Tu e Eles somos livros. Livros à espera de serem desfolhados...
resumindo… descobertos!

Elsa Martins Esteves

domingo, 18 de março de 2012

"A vida, a vida, Herr Professor, o que sabes tu da vida?"


"O primeiro gole, gelado e cheio de espuma, estimulou-lhe o cérebro. Então pensou em Salgari e em Júlio Verne: eles não viveram, imaginaram. O que estava nos livros deles não provinha de factos vividos, de experiências concretas. Mas também não é experiência o que surge apenas do nosso intelecto, da nossa imaginação? Aí estava o quid do assunto. Os sonhos, as ideias, as elucubrações a que os homens se entregam para suportar a vida, não serão, acaso, reais? Este era o seu ponto forte, porque na sua vida, ao fim e ao cabo, decorrera entre livros. A sua coluna vertebral, mortificada pela escoliose, tinha a forma de um corpo inclinado sobre um livro. Os olhos estavam habituados à luz dos candeeiros e à penumbra agradável das salas de leitura. Vivia encerrado na sua mente como uma casa sem portas, apenas com duas varandas de onde podia ver a rua, mas sem comunicação com ela. O ruído do abre-latas e os salpicos de espuma na camisa acompanharam a ideia de que, talvez, a vida mundana também valesse a pena. Por que não? É estranho, disse para consigo. A sua paixão pelo futebol – uma dolorosa recordação da infância – provocava-lhe um prazer enorme, o que, aos seus olhos, ratificava o facto de que meter os pés da lama de vez em quando não era mau, por muito alta que fosse a opinião que tinha sobre si próprio. Camus também jogou futebol e declarou uma vez que o que de mais interessante fizera na vida fora um golo resultante de um livre. Talvez, pensou Klauss, no organigrama da sua existência, faltasse uma maior entrada de realidade. Seria capaz, como Loti, de escrever um diário? Sobre este assunto lembrava-se de alguma coisa. Era uma classificação do carácter humano feita por um psicólogo francês, René Lésaine, que dividia as pessoas em três tipos: nervosos, sentimentais, e apaixonados, e, por sua vez, cada um destes em activos e passivos. O diarista, segundo Lésaine, seria o produto natural do “nervoso passivo”. Nunca pensara nisso antes mas calculou que um diário seu acabaria por se transformar numa bitácula de ideias, abstracções e conceitos, ao estilo do diário de Witold Gombrowicz. Poderia ser interessante pôr-se à prova. Experimentar. Mas como? As páginas de Loti, cujas letras quase não distinguia na penumbra, queimaram-lhe as mãos. Talvez tivesse chegado ao momento, aos seus sessenta e seis anos, de dar um abanão à vida. “A vida, a vida, Herr Professor, o que sabes tu da vida?”, continuava a gritar-lhe o cérebro, ensurdecedor, um pequeno génio, um Grilo Falante dilemático que de vez em quando aparecia quando os eflúvios do álcool lhe abriam gretas no intelecto."

In "Os impostores", Santiago Gamboa