sexta-feira, 18 de julho de 2014

Snobidando: Nazım Hikmet

Nazım Hikmet


Acompanhe a página da Livraria Snob no Facebook. Abre brevemente, em Guimarães. Pode lá encontrar isto e muito mais.

Match literário


Morreu João Ubaldo Ribeiro

Morreu de madrugada desta sexta-feira (18), em casa, no Leblon, Zona Sul do Rio, o escritor e acadêmico João Ubaldo Ribeiro, aos 73 anos. Como mostrou o Bom Dia Rio, ele teve uma embolia pulmonar. João Ubaldo era casado e tinha quatro filhos. O corpo dele será velado a partir das 10h na Academia Brasileira de Letras (ABL), no Centro do Rio. Ainda não há informações se o velório será aberto ao público ou restrito aos familiares e amigos.
O escritor era o 7º ocupante da cadeira número 34 da Academia Brasileira de Letras. Ele foi eleito em 7 de outubro de 1993, na sucessão de Carlos Castello Branco.
João Ubaldo Ribeiro ganhou em 2008 o Prêmio Camões, o mais importante da literatura em língua portuguesa. Ele é autor de livros como “Sargento Getúlio”, “O sorriso dos lagartos”, “A casa dos budas ditosos” e “Viva o povo brasileiro”. Também ganhou dois prêmios Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, em 1972 e 1984, respectivamente para o melhor autor e melhor romance do ano, por ‘Sargento Getúlio’ e ‘Viva o povo brasileiro".
Nascido em Itaparica (BA), Ribeiro viveu até os 11 anos com a família em Sergipe, onde o pai era professor e político. Passou um ano em Lisboa e um ano no Rio para, em seguida, se estabelecer em Itaparica, onde viveu aproximadamente sete anos.
 João Ubaldo também se formou bacharel em Direito, em 1962, pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), mas nunca chegou a advogar. Entre 1990 e 1991, o escritor morou em Berlim, na Alemanha, a convite do Instituto Alemão de Intercâmbio (DAAD – Deutscher Akademischer Austauschdienst).
Ele era pós-graduado em Administração Pública pela UFBA e mestre em Administração Pública e Ciência Política pela Universidade do Sul da Califórnia (USC) .
O escritor foi professor da Escola de Administração e da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal da Bahia e professor da Escola de Administração da Universidade Católica de Salvador. Como jornalista, trabalhou como repórter, redator, chefe de reportagem e colunista do Jornal da Bahia; foi também colunista, editorialista e editor-chefe da Tribuna da Bahia.
Ribeiro trabalhou como colunista do jornal Frankfurter Rundschau, na Alemanha, e foi colaborador de diversos jornais e revistas no país e no exterior, entre os quais, além dos citados, Diet Zeit (Alemanha), The Times Literary Supplement (Inglaterra), O Jornal (Portugal), Jornal de Letras (Portugal), Folha de S. Paulo, O Globo, O Estado de S. Paulo, A Tarde e muitos outros.
A formação literária de João Ubaldo Ribeiro iniciou ainda nos primeiros anos de estudante. Foi um dos jovens escritores brasileiros que participaram do International Writing Program da Universidade de Iowa, nos Estados Unidos.Trabalhando na imprensa, pôde também escrever seus livros de ficção e construir uma carreira que o consagrou como romancista, cronista, jornalista e tradutor.
Obras
Os primeiros trabalhos literários de João Ubaldo Ribeiro foram publicados em diversas coletâneas, como “Reunião”, “Panorama do Conto Baiano”. Aos 21 anos de idade, escreveu o seu primeiro livro, “Setembro não tem sentido”, que ele desejava batizar como “A Semana da Pátria”, contra a opinião do editor. O segundo foi “Sargento Getúlio”, de 1971. Em 1974, publicou “Vencecavalo e o Outro Povo”, que por sua vontade se chamaria “A Guerra dos Paranaguás”.
Consagrado como um marco do romance brasileiro moderno, "Sargento Getúlio" filiou o seu autor, segundo a crítica, a uma vertente literária que sintetiza o melhor dos escritores Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. A história é temperada com a cultura e os costumes do Nordeste brasileiro e, em particular, dos sergipanos. Esse regionalismo extremamente rico e fiel dificultou a versão do romance para o inglês, obrigando o próprio autor a fazer esse trabalho. A seu respeito pronunciaram-se, nos Estados Unidos e na França, as colunas literárias de todos os grandes jornais e revistas.
Em 1999, foi um dos escritores escolhidos em todo o mundo para dar depoimento, ao jornal francês Libération, sobre o Terceiro Milênio. E Viva o Povo Brasileiro foi o tema do exame de Agrégation, concurso para detentores de diploma de graduação na universidade francesa. Este romance e "Sargento Getúlio" constaram da maior parte das listas dos cem melhores romances brasileiros do século.
Prêmios
- Prêmio Golfinho de Ouro, do Estado do Rio de Janeiro, conferido, em 1971, pelo romance Sargento Getúlio;
- Dois prêmios Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, em 1972 e 1984, respectivamente para o Melhor Autor e Melhor Romance do Ano, pelo romances Sargento Getúlio e Viva o povo brasileiro;
- Prêmio Altamente Recomendável - Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil,1983, para Vida e Paixão de Pandonar, o Cruel ;
- Prêmio Anna Seghers, em 1996 (Mogúncia, Alemanha);
- Prêmio Die Blaue Brillenschlange (Zurique, Suíça);
- Detém a cátedra de Poetik Dozentur na Universidade de Tubigem, Alemanha (1996).
- Prêmio Lifetime Achievement Award, em 2006;
- Prêmio Camões, em 2008.

Foto tirada daqui.

Gonçalo Viana de Sousa - o Flâneur das Sensações


A realidade é aquilo que entendermos.
Deixo aqui as palavras de Gonçalo, a propósito deste texto, mais um dos seus Cadernos de Nicosia, desta vez com o título "Noites de Verão":

Caro José,

Antes de mais, desculpe-me estas horas tardias,mas, como lhe disse na nossa soirée da semana passada, onde teve oportunidade de conhecer (...), não desista dos significados. (...) Ainda há muito para conversarem e para conhecerem. Mas lá chegaremos, com o tempo.
De Nicosia para a realidade, envio-lhe mais uma impressão deste meu caderno impublicável. Receio que não possa enviar muitas mais impressões, por temo estar a cansar os leitores sempre com a mesma temática. Sabe, a minha escrita é bastante temperamental, ao contrário daquilo que julgo ser, um racional falhado, mas com a crença de que me posso redimir.
Sim, imagino que quereria perguntar , outra vez, o porquê de Maria Adelaide, mas , querido, não sei o que lhe dizer, verdadeiramente.
Leia, beba, viaje e ame as coisas belas. Eis aquilo que julgo ser mais sensato, sem querer cair em pedantismos canónicos e de bolso. Enquanto isso, publique estas palavras e sugira a "Summertime" de Ella Fitzgerald e Louis Amstrong.
Daqui a cinco minutos, um táxi estará à sua porta para o trazer até minha casa.
Até breve e seu e vossos (isto é para os leitores)

Gonçalo V. de S.



Na cidade de Lost Heaven tudo era possível.
Poderia ter sido assim o início da minha vida literária, Efraim. Mas não. Para quê? A realidade é suficiente, e, para além disso, não precisa de mim assim como não precisou daquele filósofo que era pastor e, além do mais, mentiroso.
Mas voltemos à cidade de Lost Heaven. Em jovem, tudo era possível. O mundo pela frente. Dinheiro, fama, carros, bebida, mulheres. E a vida?
Era uma noite de Verão, quente e colorida, uma noite como estas noites de Nicosia. No restaurante, a jukebox chiava algo démodé. Papa John ensinava-me a beber whisky, com e sem gelo.
Boy, dizia-me Papa John, bebe sem gelo quando tiveres com muita sede, ajuda o estômago e modera o humor. Bebe com bastante gelo se te quiseres afastar do mundo, ou, simplesmente, para criar efeito. Nice and easy!
Saíamos do bar italiano por volta das duas da madrugada, Efraim, e o Studebaker Commander Regal, o rocket, como lhe chamava Papa John, voava pelas largas ruas do downtown! Que futurismo era o nosso! A garrafa de Glenfiddich era a testemunha das noitadas na cathouse de Little Italy.
Que mestre foi Papa John, Efraim! Elegante, culto e bêbado! O seu vício por carros era quase tão excessivo como aquele que tinha pelas coisas belas.
Duas garrafas de Glenfiddich depois, o rocket voava até à costa, muitas vezes perseguido pelas sirenes da polícia que, com oito ou nove notas de 20 dólares, fechava os olhos e pensava em planos-poupança reforma. Nunca soube de onde lhe vinha o dinheiro, nem o estatuto e respeito que tinha naquela fantástica e fingida cidade de Lost Heaven. Desde os Greasers até à classe política, todos conheciam, conversavam e respeitavam Papa John.
Efraim, traz aquela garrafa poeirenta que está na mala. E dois copos. Senta-te ao meu lado. Abre a garrafa, mas não tires o pó. É o pó que lhe dá o sabor. Aprendeste isso com Papa John? O que achas? Efraim olha-me e esboça um sorriso comprometedor. O líquido de uma cor âmbar, brilhante e sedosa, cai nos copos como corpos jovens e nus em lençóis de seda. Onde ia eu, Efraim? A caminho da praia, Viana de Sousa. (Eu e Efraim, em privado, sempre nos tratamos por tu, e este sempre me chamou de Viana de Sousa, em privado).
A caminho da praia, pois!
O Sol começava a raiar na linha de horizonte como um prefácio. Paper Coast era uma longa linha de praias ao longo de trinta e cinco quilómetros. Na ponta do Cape End um farol girava em torno de uma luz que parecia irreal, àquelas horas tanto tardias como matutinas. Saíamos do carro e sentávamo-nos na areia branca como folhas de cadernos virgens. Papa John via o nascer do Sol em silêncio. De seguida,virava-se para mim e dizia, depois da escuridão vivemos para sempre. Don’t Forget this, kid. E eu nunca esquecerei. Adormecemos na praia, ao som de Summertime, de George Gershwin, mas na voz de uma jovem mulher e de um artista de nome, enquanto as ondas do mar nos embalavam em sonhos que pareciam realidade.
Horas depois, acordo com o calor inevitável, não sei se do meu corpo se do mundo, e com a trágica luz da verdade. Papa John desapareceu, Efraim, e eu encontro-me sozinho, num dos bancos ao longo do Sena, com uma mefistofélica dor de cabeça. O calor aperta e ao longe os varredores fazem o seu trottoir matinal. A noite ainda não desaparecera por completo, pois as luzes do monstro de ferro ainda estão acesas e ainda se ouvem alguns cantos de vitória pelas ruas. Mas como fui eu parar a Paris, Efraim? A alma, Viana de Sousa? Não, a vida. A inevitável e dolorosa realidade. Dou por mim com o corpo todo dorido por ter dormido, pensava eu que tinha dormido num banco de jardim, quando o que tivera verdadeiramente acontecido fora o meu pânico de sair de casa depois de ter expulso Ida Rubinstein e de ter olhado para a fotografia de Maria Adelaide. Outra vez Maria Adelaide, Viana de Sousa. Sim, outra vez…
Tento voltar para o meu quarto de hotel, mas o lixo nas ruas é demasiado. Deixo-me ficar pela beira-rio, à espera que alguma promessa de jornais ou croissants aconteça. Ao longe, pareço vislumbrar o que parece ser uma mulher vestida de branco, mas esfrego os olhos e tudo desaparece.
Sem sucesso, regresso derrotado ao quarto de hotel e rapidamente me deito na cama, com a camisa toda amolgada e suada.

Depois da escuridão vivemos para sempre.

Tenho sonhos horríveis, sonhos com hálito de nevoeiro e humidade. Sonhos com rosto de doença e paranoia. Tento acordar, mas tudo em vão. Eu, estupidamente racional, consciente da minha inconsciência dentro de um sonho, não consegui acordar, e ainda hoje não sei porquê.
Dou por mim num jardim abandonado, com ciprestes e grades envelhecidas. Um cheiro acre mistura-se ao musgo amarelado que cobre o chão.

Depois da escuridão vivemos para sempre.

Uma mulher de branco vem, pairando, até ao meu encontro. Toda ela tem um brilho lúgubre e ebúrneo. Quase consigo ver o seu rosto, mas acordo todo suado, sem noção do lugar onde me encontro, até que me apercebo que estou nessa cama atrás de nós. Tudo não passou de um sonho, Efraim. Receio ser incapaz de separar a teia das duas realidades, a ficção e o mundo real.
Efraim bebe, calmamente, o que resta no seu copo, fecha os olhos e observa-me com ares de Jung. Viana de Sousa, acorda. Como assim, acorda? Cala-te e acorda. Fico sem palavras, enquanto Efraim volta a encher o seu copo, desta vez até ao limite entre o aceitável e o reprovável. Levanto-me e apoio os cotovelos no corrimão de pedra, meio tonto por conta do pó do whisky. Volto-me para Efraim e volto a ver a mulher de branco.
Maria Ad…
Um som distante e contínuo desvia-me a atenção. Volto a olhar para a mulher de branco e juro que vi Maria Adelaide. Juro por todas as coisas ficcionais. Mas não tenho a certeza, pois no momento seguinte abri os olhos e é de manhã, aqui, em Nicosia. O calor aperta e Efraim já tem tudo pronto para a nossa viagem até à costa.

Depois da escuridão vivemos para sempre.





 https://www.youtube.com/watch?v=MIDOEsQL7lA (O link da música)

quinta-feira, 17 de julho de 2014

a Ana


A Ana trabalha como recepcionista no consultório de um dentista.
Ninguém gosta de ir ao dentista.
Ninguém gosta especialmente da Ana.
A Ana não tem ninguém a quem telefonar para tomar um café numa esplanada, ir ao cinema, passear na praia.
Como é que isto aconteceu: devagarinho.
E mais não sabe explicar.
A Ana gosta muito de cinema.
Quase toda a gente gosta de cinema.
Podia telefonar a uma amiga (Qual?), uma prima (Qual?), a uma colega de trabalho (Qual?), a um dos sobrinhos (Melhor não.).
Podia entreter os sobrinhos, tem cinco sobrinhos das duas ocupadíssimas irmãs, porém desistiu à terceira tentativa (à terceira é um modo de dizer, foi provavelmente à décima, à décima primeira, a Ana não conta, insiste, não desiste, insiste, sai derrotada), porque, sem condescendências, escolheram sempre o filme e porque insistiram em escolher películas previsíveis e deprimentes, das que rotulam de comédias românticas, como se o amor fosse coisa de rir até à dor de barriga, até às lágrimas nos olhos, e não de sorrir de afecto.
E nunca riu, nem sorriu, quase chorou: de raiva!
E não chorou, pois tudo se aprende ou se perde.
Assim começou a ir ao cinema sozinha, obviamente evitando comédias românticas e outros êxitos de bilheteira. As salas de cinema meio cheias, o que mal camuflava a sua solidão, ela na terceira fila a partir do ecrã, sozinha na fila, sozinha no iluminado intervalo.
Depois as cassetes VHS, os downloads da internet, ela nada user friendly, as salas de cinema depois de meio cheias, completamente vazias, depois de vazias fechadas, para abrirem transformadas em lojas da China, como se outro o país.
E pensa que pouco ou nada sabe sobre cinema chinês, assim de repente lembra-se de Adeus Minha Concubina, um filme de 1993, e lembra-se que tinha 23 anos em 1993 e que a trabalhar desde os dezoito ia ao cinema a expensas próprias, lembra-se que a mãe dizia que era um desperdício de tardes de sol e de dinheiro.
Para a mãe tudo era um desperdício de tardes de sol e de dinheiro, e pensa que nunca viu a mãe passar uma tarde de sol fora da cozinha.
Foi cozinheira, criou as filhas a rissóis de carne e de camarão que vendia para fora, duas filhas formadas à custa de rissóis de carne e de camarão, e a terceira, a mais nova, a Ana, que para seu desgosto não quis estudar nem sabe bem o que quer da vida, dizia, com o cuidado de não usar a palavra desperdício.
Em rigor a mãe era costureira, porém a viuvez precoce obrigou-a a acrescentar às horas dos dias, o labor de cozinheira das horas das noites. Aos cartões de contacto como costureira, acrescentou a filha mais velha, a esferográfica azul e na letra de menina de escola primária que então era: fazem-se bolos e rissóis para fora.
A verdade é que bolos poucos fez, e não que não lhe saíssem bons e conformes às fotografias dos livros de receitas, nem que os não desenformasse inteiros e perfeitos, o problema era ulterior, no momento de os decorar, todos sem graça, e como primeiro as bocas comem com os olhos, uma desgraça, assim, pelos bolos o negócio não prosperou, e a bem dizer nem falta fez, porque os rissóis um sucesso, quantos mais fazia mais vendia, no fogão duas frigideiras a borbulhar em permanência, e a casa a cheirar a fritos, desde a alcatifa do chão às sanefas dos cortinados, pelo que a mãe da Ana passou a atender as clientes da costura ao domicílio, conciliando sempre que podia as provas de roupa com a entrega de encomendas de rissóis, tudo cartando, caixa de costura, tecidos e fritos, num carrinho de mão que puxava como um elefante pela trela pelo chão da cidade.
Enfim, continuando, não tem nenhum realizador chinês que a encante, diz a verdade Ana, repreende-se a si própria, não se lembra de nenhum, somos tão descuidados que metade do que dizemos são mentiras sobre minudências, e conclui, quando os chineses começarem a fazer cinema, quando o cinema for negócio da China, vão especializar-se em comédias românticas, conclui com desdém e orgulho na piada que acabou de magicar, para se arrepender de imediato, porque sabe que só os ignorantes são patetas o suficiente para rir e desdenhar sobre o que nada sabem, e no entanto há dias em que lhes tem inveja, aos ignorantes, explica-se, não é bonito mas é assim, por perceber que são construtores de felicidades sólidas.
No seu caso sólida: a solidão.
A Ana trabalha como recepcionista no consultório do Dr. Jardim há mais de vinte anos.
Quando entrou em funções, era uma rapariga nova, o corpo pouco gasto, os sonhos por usar, e o Dr. Jardim um homem de meia-idade, uma dentadura impecável, que o fazia sorrir por tudo e por nada, uma cabeleira, apesar do cinza nas fontes, farta e forte.
Agora é ela a que está nisso a que chamam de meia-idade, uma dentadura razoável, come demasiados chocolates, o cabelo pintado em tons de cobre e mais quarenta quilos.
Engordou à razão de dois quilos por ano, de forma lenta e inexorável, culpa do chocolate e da solidão.
E entre a solidão e a solidão, apenas o Dr. Jardim.
O Dr. Jardim que também gosta de cinema.
O Dr. Jardim que há 20 anos atrás a convidava para ir ao cinema.
Era Verão, depois do cinema um refresco numa das esplanadas da praça, mesmo há 20 anos ninguém dizia refresco, o Dr. Jardim dizia e efectivamente o corpo refrescava.
Foi um Verão fresco e feliz.
Trabalhou durante todo o Verão, dentro do conforto do ar condicionado do consultório do Dr. Jardim, dentro do ar condicionado das salas de cinema, do shopping, do supermercado, a ventilação do carro, a ventoinha de casa, a brisa nocturna residente nas esplanadas da praça.
A Ana a levitar dentro de vestidos finos e frescos, todos feitos pelas mãos da mãe. Vestidos que antes de vestir farejava como um cão de caça, para despistar o medo maior de encontrar o cheiro a fritos no tecido, porque o cheiro a fritos sempre no seu nariz.
A respirar um ar artificialmente suportável, em estado de respiração assistida.
O Verão quente, em chamas, o ar irrespirável.
A Ana dentro de um balão.
A Ana e o Dr. Jardim dentro de um balão.
Sobe, sobe, balão sobe
Vai pedir àquela estrela
Que me deixe lá viver e sonhar
Alheios às catástrofes num Verão que ficou para a história pela quantidade de incêndios, de terra ardida, de terra carbonizada.
Até que o fim do Verão, as primeiras chuvas, sobre os corpos casaquinhos de malha, e a mãe da Ana ao perceber, boca afiada de alfinete, óleo a ferver, a rebentar o balão, como quem inadvertidamente a coser, apesar do dedal, pica um dedo.
E descuido nenhum, que a mãe da Ana nunca deixou queimar um único rissol, nem tolheu uma peça de roupa por mal medir ou mal cortar o tecido, nada de desperdícios, uma vida inteira sem desperdícios, desperdiçada.
A Ana projectada à revelia e sem destino, a cair no chão sem amparo.
A Ana e a sua dor: ainda nem era amor.
Nem um beijo, nem mãos dadas, apenas conversas intermináveis sobre cinema.
Foi o Dr. Jardim que lhe apresentou o Bergman, ela encantada, Mónica e o desejo, poderia o Dr. Jardim ser o desejo?
Como é que era possível não conhecer o cineasta sueco? – Perguntou-lhe.
Era possível não conhecer o Bergman assim como era possível ter quase dezanove anos e nunca ter sido beijada, nem beijo de faz de conta, como dizem são os beijos de cinema, nem beijo nenhum, ou era possível porque cresceu numa casa onde faltou tudo, até o Bergman menos a comida na mesa (não sabe dizer quantos rissóis, de camarão ou de carne, comeu na vida, sabe dizer quantos beijos não deu: todos), menos a roupa no corpo, menos o dinheiro para os livros da escola, e que se lembre nunca viu o Bergman num livro de escola, talvez se os livros da escola falassem sobre cinema não tivesse desistido da escola, não sabe dizer, nunca gostou de estudar, não era como as irmãs, sempre agarradas aos livros, só tinha olhos para a televisão, ou era possível porque… eram tantas as respostas possíveis, porém nada respondeu, apenas encolheu os ombros tentou e esboçou um sorriso torto, o que também era uma resposta possível.
A mãe, que também não sabia quem era o Bergman, boca afiada de alfinete, a rebentar as suas ilusões-balão, a desalinhavar sem dó todas as esperanças, talvez sem más intenções, talvez apenas por não perceber que podia ser amor, pois que apenas queria o melhor para a filha, para todas as filhas, uma vida por medida e por encomenda, talvez como os rissóis, à dúzia, à dúzia e meia, às duas dúzias, que a vida não pode ser vivida sem medida, desmedida, que apesar de viúvo, guarde Deus a finada no seu eterno descanso, o Dr. Jardim tinha o dobro da sua idade, tinha filhos da sua idade, sobravam-lhe anos (tecido?) nos ombros, nas mangas, nas costas, que o tecido e o corte de má qualidade, sem arranjo ou remendo possível.
Sobravam agora para depois faltar, encolher, mirrar, ficar uva-passa, porque a vida passa.
E a vida foi passando, mais de vinte anos, enquanto a Ana alargava e sobrava, dentro da roupa, sobre o sofá, na cadeira ao balcão de recepção no consultório do Dr. Jardim, a vida foi passando em separado, sem sabermos como teria sido se juntos, cosidos um ao outro ou fritos como um rissol.
E às vezes, quase nunca, cruzam-se numa sala de cinema, ela na terceira fila a contar do ecrã, ele na quarta, cada um a camuflar a sua solidão.

Raquel Serejo Martins




Foto frase do dia: Cora Coralina


Vamos aos Banhos com a Snob?

2ª EDIÇÃO DA FEIRA DO LIVRO INDEPENDENTE

Travessa dos Banhos Velhos, Caldas das Taipas
25/7 - 27/7
De 25/7 às 18:00 até 27/7 às 18:00

Co-Org. Livraria Snob
Entrada Livre

Segunda edição da Feira do Livro Independente, nos Banhos Velhos, que junta editores independentes de todo o país e não só.

Além de novidades das várias editoras que decidirem estar presentes, a feira terá também uma área dedicada ao livro descatalogado e de alfarrábio.

Durante o fim-de-semana, além dos numerosos livros, haverá apresentações e lançamentos, exposições workshops e o concerto do projecto Osso Vaidoso, no dia 25 de Julho, sexta-feira.

PROGRAMA

25 de Julho
18H Abertura da Feira

21H Inauguração da Exposição 40 X Abril – com a presença de João Paulo Cotrim, editor da Abysmo.

40 X ABRIL
Autores vários

São 20 ilustrações e outros tantos poemas num livro que se desdobra de mil modos para celebrar a liberdade, mergulhando raízes na utopia e sem esquecer aquilo que o presente nos exige em nome de um futuro distinto.

21.45H Apresentação da Grisu - com a presença dos editores João Almeida e Ana Guimarães e também do autor Eduardo Brito.

A Grisu



22.30H Osso Vaidoso


26 de Julho
11H Oficina de Origami com Maria do Mar

A folha de papel é o mote para aprender esta técnica secular japonesa de representação das formas que a natureza inspira. Saber um pouco da história do origami e de lendas associadas é o ponto de partida. Deixando a imaginação comandar, pretende-se ensinar todos os passos necessários, desafiando o raciocínio, estimulando a memória e cultivando o fascínio por esta arte.

15.30H Oficina de encadernação com António Campos Soares

Ex Sapientia é uma marca de produtos artesanais direccionada para a encadernação e produção artesanal de repositórios de escrita, imagens, recortes e para as artes gráficas. Foi criada por António Campos Soares, após ter adquirido a aprendizagem necessária para se entranhar nas páginas desta arte. Esta marca surge, então, com o intuito de aprofundamento e aperfeiçoamento de conhecimentos para criar produtos diferentes e singulares que suportem a criatividade e a memória, quer de uma comunidade, quer de um só indivíduo.

21H Apresentação da Flanzine, com a presença do editor João Pedro Azul

A Flanzine é um fanzine que surgiu em 2013, pelas mãos de João Pedro Azul e Luís Olival, dois convictos das potencialidades do Facebook. Lançaram três números, com os temas “Mala”, “Medo” e “Boca”, e acabam de lançar o quarto, com o tema "Carrossel".

21:30H "Fontelo", primeiro livro de Gonçalo Mira. Apresentação a cargo de Marta Elias e conversa com o autor.

Editor de um dos mais influentes blogs da blogosfera portuguesa, o Orgia Literária (activo desde 2006), Gonçalo Mira é também critico literário no Ipsilon e em outras publicações. Apresenta agora o seu primeiro livro de poesia.

22H Apresentação de NicotinaZine e da editora A Tua Mãe*, a cargo dos editores Marta Elias e João Silveira.

O Nicotina é um fanzine pouco amigo de puritanos da saúde. Tem prosa, poesia, ilustração, banda desenhada, fotografia e é feito com as novas tecnologias (paginação no computador, impressão de boa qualidade) e as velhas práticas (quem edita também escreve, pede os textos, ajuda a paginar e ainda vende o objecto final).
(via Cadeirão Voltaire)

A recente editora A Tua Mãe* "é uma editora dependente de bons textos", o que se comprova pelos dois livros até agora publicados.

22:30 Performance de leituras da Flanzine, Nicotina e A Tua Mãe* pelos "Lobos de Pavlov".

27 de Julho
11H Workshop infantil de ilustração, com Nelson Xizemen

Sem nunca se querer acorrentar a apenas uma área de intervenção, é um artista que se adapta a qualquer tipo de formato dentro da expressão plástica, desde arte urbana, digital, desenho artístico, mas é sem dúvida na área da pintura que encontramos o seu harém, podendo considera-lo como um artista bastante ecléctico, diversificado e polivalente. São trabalhos com uma enorme explosão de cor, característica essa que se tornou na sua imagem de marca.

18H Encerramento da Feira




a-ver-livros: plena batalha

Recolho as garras 
sanguentas
vibrantes
recolho-as à carne quente
pulsátil
pingando
o escarlate escuro das tuas veias
recolho os restos mortais
desta paixão violenta
polpa matéria
gangrena fétida
ferida aberta

Recolho as garras
e fecho os olhos
exangue

Ana Almeida

* para saber mais sobre a pintora japonesa Shiori Matsumoto
siga o link http://www.ne.jp/asahi/secret/label/

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Snobidando: Calvin & Hobbes

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Foto frase do dia: Séneca

a-ver-livros: navegação à vista

Adorna-se-me a alma
quando vais ao mar
fico sem fundo
fico sem vela

Lanço ferro nos teus braços
quando tornas
reapresento os sorrisos aos lábios
presos na corrente 
que nos leva

Ana Almeida

* para saber mais sobre o pintor francês Pierrick Tual
siga o link http://tualpierrick.blogspot.pt/

terça-feira, 15 de julho de 2014

Snobidando: Henry Miller

Tal como nós precisamos de vós, leitores! 
Henry Miller em OS LIVROS DA MINHA VIDA, trad. Ana Bastos, Antígona, 2004


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É do borogodó: recolhe os restos

recolhe os restos de mim

os trapos que ainda se arrastam

grudados aos seus sapatos, o fio

linhas que me erguem

tempestades que me esgotam

recolhe os restos de mim,

manda-me pelo correio.

junta a saliva pouca daquelas respirações

ofegantes, os olhos reviravam e quase vinha a tona

o desejo de reduzir a pó

para que fosse – sobretudo –

inspirado num gole de espuma. Jeito de amantes, tínhamos.

recolhe os restos, os gestos, os trapos, os fiascos,

os ridículos bilhetes, o sumo que inundou os lençóis

: manda-me pelo correio.


* Penélope Martins




a-ver-livros: livro a livro

Livro a livro
construo o castelo 
para que as pedras não chegaram
reforço as paredes
do sonho 
abro as janelas para o mar
alimento a fogueira
que aquece os pés desnudos
como a alma

Ana Almeida

* para saber mais sobre o pintor norte-americano Curtis Parker
siga o link www.curtisparker.com

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Snobidando: Sophia

As Pessoas Sensíveis

As pessoas sensíveis não são capazes 
De matar galinhas 
Porém são capazes 
De comer galinhas 

O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa

Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra

«Ganharás o pão com o suor do teu rosto»
Assim nos foi imposto
E não:
«Com o suor dos outros ganharás o pão»

Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito

Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem

Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Livro Sexto'



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Sai novo livro de Neill Lochery - «Brasil»

P.V.P.: 19,90 € 
Data de Edição: 2014
Nº de Páginas: 432
Editora: Editorial Presença

Rest in peace, Nadine Gordimer

"A censura nunca acaba para aqueles que já passaram por isso. É uma marca no imaginário que afecta a pessoa que a sofreu, para sempre."

"Temos que viver plenamente a fim de extrair a substância do nosso trabalho, mas temos que trabalhar sozinhos."

"A solidão da escrita é muito assustadora. Está muito perto da loucura, desaparecemos por um dia e perdemos o contacto."

"Toda a tua vida estás, na realidade, a escrever um livro, que é uma tentativa de compreender a consciência do teu tempo e lugar - um único livro escrito a partir de diferentes etapas das tuas capacidades."

"Qual é o propósito da escrita? Para mim, pessoalmente, é realmente para explicar o mistério da vida, e o mistério da vida inclui, claro, os pessoais, os políticos, as forças que nos tornam aquilo que somos enquanto existe outra força dentro de nós a lutar para que sejamos algo diferente."

"Os livros não precisam de pilhas."

Foto frase do dia: Malcolm Gladwell

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domingo, 13 de julho de 2014

Foto frase do dia: Jean-Paul Sartre

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Forma de belo


"Por mim, se tivesse de escolher uma única forma de Belo não apontaria o Amor – muito menos a generosidade, inteligência ou a vontade de ousar. Tudo isso nos faz ser maiores e oferece-nos um sentido, mas se testemunhasse sobre o que julgo sermos, não hesitaria: o mais maravilhoso que podemos encontrar é um velho coberto de sonhos. 

Nada me comove tanto. Sempre que os vejo juro não desistir dessa estrada carregada de horizonte e utopia. (...) Apenas da nossa inclemência com os velhos que até ao fim falam e esbracejam como se fossem jovens. Dos que não têm medo do ridículo. Dos que execram a expressão ‘sénior’ para substituir a palavra velho, expressão liofilizada que, sob um ridículo manto da dignidade, arruma homens e mulheres num museu do politicamente correcto.

Isso e a ditadura de desejar para os nossos filhos uma vida de vitórias e grandes objectivos. Desejo compreensível e redutor. Porque os que vivem apenas focados nos grandes objectivos (pelos menos os que conheço), crescem deformados e morrem vazios, mesmo que as pessoas os celebrem como pessoas cheias. O mesmo para os que vivem em função do trabalho ou até da condição de pais ou mães. No exercício de viver devemos abrir a porta também ao que não tem aparente importância – gritar por uma equipa, ver filmes, fazer colecções de caixas de fósforos ou o que quer que seja. É nas pequenas coisas que está o oxigénio para as grandes. Sem elas morreremos envenenados de tão tóxicos. E envenenados de contradições."

Excerto da crónica de Luís Osório, 
no Semanário Sol: "Os chineses não adoecem ou morrem"
18-11-2013


Cabanas de Tavira, 2013, foto de Marta Antunes