Que reacção provocava em nós? Curiosidade ou repulsa?
Vantagens em Viajar de Comboio, de Antonio Orejudo Utrilla é uma das melhores leituras que fiz este ano. A história é deliciosamente estranha, apela a manipulações e a comportamentos esquizofrénicos. Talvez ao lado mais maquiavélico e negro da nossa mente humana.
Até que ponto podemos acreditar numa história que nos contam? Aqui fica o mote.
A temática central do livro é a esquizofrenia. O enredo começa num comboio e na conversa entre duas pessoas que não se conheciam previamente. O homem, fazendo-se passar por psiquiatra, resolve falar dos seus pacientes. Foca a sua atenção num caso particular de um doente. Este afirma que há planos governamentais para controlar os cidadãos pela triagem dos seus próprios resíduos.
Numa das paragens, o suposto psiquiatra sai e deixa uma pasta. Nela estão depositados inúmeros casos clínicos que iriam servir de base a um livro que este projectava. A passageira que seguia com ele não se fez de rogada e resolveu investigar.
A restante narrativa expõe personagens que parecem ser uma coisa, mas são outra. Histórias de enganos, puras invenções de mentes perturbadas. Casos que contados, ninguém acredita... Mas não será o presumível psiquiatra um doente? Isso deixo para as vossas leituras.
Ao longo do livro vamos encontrando excertos magnificamente caracterizados. Como este que aqui vos deixo:
"Cá para mim, os passageiros de um avião que cai no oceano ou que se espeta contra o chão estão conscientes do desastre. Outra coisa, é explodir em pleno voo. Nesses casos a morte surge de improviso e os passageiros morrem no momento, sem darem por nada. São, de certo modo, mortos que não sabem que o estão. Devem ser estes mortos de surpresa os que aparecem nas lendas, os fantasmas, mortos que não conseguem assumir que o estão e vagueiam desorientados, como almas penadas, como estrangeiros em cidades desconhecidas, detendo-se em frente de cada igreja, admirando-se com todos os edifícios e consultando periodicamente um mapa onde não conseguem situar-se. Estes passageiros do avião que estão a colocar os auriculares ou a sentir o tacto cálido do chocolatinho quase regalado, quer dizer, quase derretido, já quase não se emprega o verbo regalar no sentido de derreter, e é uma pena, o chocolatinho quase regalado, quero dizer, que as companhias aéreas oferecem(1) como sobremesa, e, logo a seguir, já não o estão a fazer. Agora, sim. Agora, não. Estão mortos." (...)
(1) - Trocadilho entre regalar, oferecer, no original, e deliciar, presentear. (N.T.)
De assinalar o excelente trabalho de tradução de Jorge Fallorca, numa edição da Minotauro.