sábado, 19 de outubro de 2013

O desassossego de Pessoa que regressa pela Tinta-da-China

Talvez o meu destino seja eternamente ser guarda-livros, e a poesia ou a litteratura uma borboleta que, poisando-me na cabeça, me torne tanto mais ridiculo quanto maior fôr a sua propria belleza.



*retirado da página das Edições tinta-da-china - https://www.facebook.com/pages/Edições-tinta-da-china/301684475314

Snobidando: Jorge Luis Borges

A un gato, Jorge Luis Borges

No son más silenciosos los espejos
ni más furtiva el alba aventurera;
eres, bajo la luna, esa pantera
que nos es dado divisar de lejos.
Por obra indescifrable de un decreto
divino, te buscamos vanamente;
más remoto que el Ganges y el poniente,
tuya es la soledad, tuyo el secreto.
Tu lomo condesciende a la morosa
caricia de mi mano. Has admitido,
desde esa eternidad que ya es olvido,
el amor de la mano recelosa.
En otro tiempo estás. Eres el dueño
de un ámbito cerrado como un sueño


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Handwritten Manuscript Pages From Classic Novels: A. Conan Doyle

Já alguma vez pensou ver A. Conan Doyle desta forma? Então fique com uma das páginas de O Cão dos Baskervilles, escrita pelo próprio.

Visite o site http://flavorwire.com para encontrar mais. 
Siga o link directo.

O poetinha faria 100 anos

Vinícius de Moraes, nascido Marcus Vinicius de Moraes (Rio de Janeiro, 19 de outubro de 1913 — Rio de Janeiro, 9 de julho de 1980) foi um diplomata,dramaturgo, jornalista, poeta e compositor brasileiro. - in wikipédia. 


Minha Namorada

Maria Creuza/Vinicius de Moraes/Toquinho
Composição: Vinicius de Moraes / Carlos Lyra


Meu poeta eu hoje estou contente
Todo mundo de repente ficou lindo
Ficou lindo de morrer
Eu hoje estou me rindo
Nem eu mesma sei de quê
Porque eu recebi
Uma cartinhazinha de você

Se você quer ser minha namorada
Ai que linda namorada
Você poderia ser
Se quiser ser somente minha
Exatamente essa coisinha
Essa coisa toda minha
Que ninguém mais pode ter
Você tem que me fazer
Um juramento
De só ter um pensamento
Ser só minha até morrer
E também de não perder esse jeitinho
De falar devagarinho
Essas histórias de você
E de repente me fazer muito carinho
E chorar bem de mansinho
Sem ninguém saber porquê
E se mais do que minha namorada
Você quer ser minha amada
Minha amada, mas amada pra valer
Aquela amada pelo amor predestinada
Sem a qual a vida é nada
Sem a qual se quer morrer
Você tem que vir comigo
Em meu caminho
E talvez o meu caminho
Seja triste pra você
Os seus olhos tem que ser só dos meus olhos
E os seus braços o meu ninho
No silêncio de depois
E você tem de ser a estrela derradeira
Minha amiga e companheira
No infinito de nós dois



sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Livros de Auto ajuda? - Snoopy e Charlie Brown


Snobidando: Maria do Rosário Pedreira

Pai, dizem-me que ainda te chamo, às vezes, durante
o sono - a ausência não te apaga como a bruma
sossega, ao entardecer, o gume das esquinas. Há nos
meus sonhos um território suspenso de toda a dor,
um país de verão aonde não chegam as guinadas da

morte e todas as conchas da praia trazem pérola. Aí

nos encontramos, para dizermos um ao outro aquilo
que pensámos ter, afinal, a vida toda para dizer; aí te
chamo, quando a luz me cega na lâmina do mar, com
lábios que se movem como serpentes, mas sem nenhum
ruído que envenene as palavras: pai, pai. Contam-me

depois que é deste lado da noite que me ouvem gritar
e que por isso me libertam bruscamente do cativeiro
escuro desse sonho. Não sabem

que o pesadelo é a vida onde já não posso dizer o teu
nome - porque a memória é uma fogueira dentro
das mãos e tu onde estás também não me respondes.


*Maria do Rosário Pedreira



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Manifesto

Encontrado na página Improbables Bibliothèques, 
Improbables Librairies. A não perder por nada! 

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

O poema de Christina Georgina Rossetti - «A Dirge»

A Dirge

Porque nasceste quando a neve tombava?
Devias ter vindo quando o cuco chamava,
Ou quando as uvas estão verdes nas vinhas
Ou pelo menos quando as lestas andorinhas
        Voam para escapar
        Ao verão a acabar.

Porque morreste quando os cordeiros nasciam?
Devias ter morrido quando as maçãs caíam,
Quando o gafanhoto corre perigo,
E são restolho empapado os campos de trigo,
         E todos os ventos suspiram
         Pelas doces coisas que agonizam.

*Christina G. Rossetti 
poema encontrado no novo livro de J.K. Rowling (que assina como Robert Galbraith) - Quando o Cuco Chama
Editorial Presença, tradução de Ana Saldanha, Maria Georgina Segurado e Rita Figueiredo. 

Porque não compra o livro já no site da editora? http://www.presenca.pt/livro/quando-o-cuco-chama/

O primeiro parágrafo de «Quando o Cuco chama»

O zunzum na rua era como o zumbido de moscas. Os fotógrafos estavam apinhados por trás de barreiras patrulhadas pela polícia, com as máquinas narigudas preparadas, o seu bafo a subir no ar como vapor. A neve caía sem parar sobre gorros e ombros; dedos enluvados limpavam as lentes das máquinas. De vez em quando havia surtos de cliques ao acaso, com os presentes a ocuparem o tempo de espera tirando fotografias à tenda de lona branca que estava no meio da rua, à entrada da casa alta de tijolos vermelhos por trás dela e à varanda do último andar da casa, da qual o corpo tinha caído.


*in Quando o Cuco chama, Robert Galbraith (J.K. Rowling)
Ed. Presença

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É do borogodó: doce de abóbora

Já não acreditava mais em amor, nem queria saber dessas donas melosas com trocas de carícias e promessas jamais cumpridas. Queria encher o copo todo fim de tarde e não ter para quem dar satisfação; guardava uma grana para queimar em gasolina com sua moto e outro tanto para se beneficiar das paixões das moças da casa da Dona Zu. Até que um dia, naquele mesmo bar de esquina, viu entrar Maria do Perpétuo Socorro, uma morena com sinuosas curvas e uma leve brisa de abril no sorriso. Até mesmo as cadeiras do bar ofereciam passagem para Socorro e os garçons pousavam a bandeja para não deixar copos ao léu.
Era um avião de brasilidade aquela Maria, movimento preciso de coxas a embalar os sonhos de qualquer homem. Maria do Perpétuo Socorro sacudiu a cabeça de Oscar naquele dia e botou tudo a perder, a desilusão do amor, os trocados perdidos em quilometragem, todas as moças que o esperavam aflitas na boate. Oscar se rendeu de pronto e já era dela.
Deixou cair sua bolsa ao chão, abaixou o corpo com competência de ginasta, sem dobrar joelhos nem nada, deixando as pernas de fora no fino traço da combinação. Uma displicência elegante desfilava no corpo de Socorro. Oscar palpitou desconcertado. Zé Bolacha gritou do caixa:
“Oh Socorrinho, nem vi você chegar.”
Maria do Perpétuo Socorro e seu corpo de Baía de Guanabara alçaram ao balcão, a bolsa na cadeirinha giratória, um voo debruçado selando um beijo na boca do dono do boteco, sujeito pra lá de esquisito, com sotaque acaipirado de paulista e um carão espalhado que lhe rendia o apelido de Zé Bolacha.
“O quê? Esse fenômeno da natureza tá de caso com Zé Bolacha?” Alardeava o pensamento de Oscar. “Mas que se dane!” A fúria fez o rosto de Oscar corar com violência.
“Ô cumpadi, dá aqui uma cachaça!”
“Venha cá, meu amigo Oscar, para conhecer minha noiva, Socorrinho.”
Era só o que faltava para desilusão maior e amargor do velho Oscar, aproximar-se do balcão para brindar o amor dos pombinhos. Socorro naquele decote pronunciado que engolia os olhos de Oscar sem dó nem culpa. Os seios fartos subiam e desciam no respirar doce de fruta madura. A pele acobreada, o pequeno escapulário no vale entre os dois montes perfeitos.
“A senhora é católica?”, deslizou Oscar sua pergunta tentando justificar o interesse no decote da morena.
“Muito, rezo o terço todos os dias ajoelhada aos pés da cama.” Fazendo o sinal da cruz, respondeu a moça ao famigerado Oscar.
“Uma mulher sem concorrência, amigo Oscar, minha Socorrinho é uma dádiva, um presente de Nosso Senhor Jesus Cristo”; Zé Bolacha embalou no sinal cristão ganhando a simpatia da noiva, mas o bigode de suor denunciava a origem de sua crença. Socorrinho era a igreja na qual ele depositaria suas orações e seus préstimos, e estava cristalina, feito água benta, que a reza ao pé do altar conjugal de olho nos quadris da morena, não seria nem de longe um problema para ele.
“O Senhor é cristão?” – Maria do Socorro lambuzou Oscar com olhos inteiros jabuticaba, enquanto tocava o braço dele. Oscar estremeceu, pensou em armar uma mentira e até começar trabalhos voluntários na igreja daquela santinha, mas respondeu com gana de arrebatar a menina na curiosidade:
“Tenho a melhor formação pastoral, minha jovem, rezo as orações mais poderosas, e exorcizo os piores acabrunhados demônios que já se teve notícia existir sobre a face da terra, e isso somente usando a força do meu caráter. Basta crer.”
Zé Bolacha, um homem que sempre foi mais dado ao trabalho do que aos prazeres da própria carne, perguntou com espanto sobre a declaração de Oscar supondo que o amigo poderia ser homem capaz de abarcar a ambiguidade de santo pecador. “Mas e as moças de Dona Zu, as noitadas, as doses seguidas, são por causa de quê?” Oscar, com ar devocional para fiel convencimento de sua vítima, disse ao Bolacha: “Mas é justamente esse meu trabalho, amigo, tirar o pecado dos corpos das moças e ensinar os melhores mandamentos. No mais, não é o que entra pela boca que mata, você conhece o versículo, não?”
Socorro desandou três sinais da cruz beijando as mãos de Oscar, depois já convidou o salafrário:
“Este homem é um santo, meu bem, sinto mesmo ao redor dele as trombetas dos anjos. Vou levá-lo agora em casa para presenteá-lo com minhas compotas de doce de abóbora.”
“Mas além de dedicada cristã a moça é fina compoteira? Que dotes esses, Bolacha! Não acredito que seja possível tal façanha nos dias atuais.”
“Pois você está duvidando da qualidade de doceira de Socorrinho? Tem que levar ele agorinha mesmo, minha linda, para provar das riquíssimas compotas, distintas até na embalagem.”
“Sem contar que apuro tudo muito bem apurado, mexendo com toda dedicação.” Afirmou Socorro, imitando o gesto da colher de pau entre seus dedos.
Os dois seguiram rumo à casa da moça enquanto Zé Bolacha continuava o trabalho no bar, longe de fechar as portas. Já na esquina, Socorrinho apanhou a mão de Oscar e disse:
“Tu não me enganas…”
Penélope Martins

«Quando o Cuco Chama» - J.K. Rowling regressa como Robert Galbraith

Segundo escreve o Sunday Times, citado pela AFP, o romance foi “saudado pela crítica” como “uma primeira obra notável”. Houve quem tivesse falado numa “estreia brilhante” e quem reparasse na forma como um autor masculino descrevia tão bem a roupa feminina.

O Sunday Times descobriu a “marosca” ao investigar as circunstâncias que levaram um escritor “com um passado no Exército e depois nos serviços privados de segurança a tornar-se numa revelação literária”, como se pode ler no site do jornal. Acabou por chegar ao nome de J.K. Rowling, que depressa admitiu a autoria, embora tenha dito que “esperava poder guardar o segredo durante mais algum tempo”.

“Tornar-me Robert Galbraith foi uma experiência absolutamente libertadora”, disse a autora de Harry Potter, através de um comunicado. “Foi maravilhoso ter publicado um livro sem que ele motivasse toda essa grande expectativa e confusão, e foi um verdadeiro prazer ter visto como ele foi acolhido sob um nome diferente”, acrescentou a escritora, revelando que o seu editor David Shelley foi “um autêntico cúmplice no crime”.


(...) The Cuckoo’s Calling vendeu cerca de 1500 exemplares desde o seu lançamento em Abril. Mas logo que foi revelada a identidade do seu verdadeiro autor, subiu mais de cinco mil lugares no top de vendas da Amazon. (...)


Chegou ontem às livrarias portuguesas o novo livro de J.K. Rowling e nós leitores já sabíamos desta pequena mentira. Quando o Cuco Chama é o primeiro policial da escritora e promete fazer furor nas livrarias. Como já é previsível, vai haver muito burburinho e curiosidade em acompanhar a carreira da autora, depois do boom que foi criar Harry Potter. Despir essa pele não será certamente fácil, mas temos assistido a um percurso sólido, pensado e inteligente. 

O Clube de Leitores vai dedicar este dia a dar-vos as pistas deste policial. E desde já vos endereça um convite: vamos lê-lo juntos nesta quinzena de Outubro. J.K. Rowling vai estar em destaque no blog, fiquem connosco.

Para já, aqui fica a capa da edição portuguesa (publicada pela Presença) e a sinopse. 


«Quando uma jovem modelo, cheia de problemas na sua vida pessoal, cai de uma varanda coberta de neve em Mayfair, presume-se que tenha cometido suicídio. No entanto, o seu irmão tem dúvidas quanto a este trágico desfecho, e contrata os serviços do detetive particular Cormoran Strike para investigar o caso. Strike é um veterano de guerra - com sequelas físicas e psicológicas - e a sua vida está num caos. Este caso serve-lhe de tábua de salvação financeira, mas tem um custo pessoal…

Um policial envolvente e elegante, mergulhado na atmosfera de Londres. Quando o Cuco Chama é um livro notável, um romance policial clássico na tradição de P. D. James e de Ruth Rendell, que marca o início de uma série verdadeiramente singular escrita por Robert Galbraith, o pseudónimo de J.K. Rowling, autora da série Harry Potter e do romance Morte Súbita.»

Curiosos?

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quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Snobidando: Gonçalo M. Tavares e Bénédicte Houart encontram-se

*Gonçalo M. Tavares, Short Movies

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Cartas Portuguesas, de Mariana Alcoforado

«CARTAS PORTUGUESAS» NAS LIVRARIAS

Com prefácio de Maria Teresa Horta e tradução do francês de Pedro Tamen, as «Cartas Portuguesas» de Mariana Alcoforado já estão nas livrarias, numa edição da Divina Comédia. Na contracapa, duas citações de relevo. De Stendhal: «É necessário que amemos como a freira portuguesa, com aquela alma ardente cuja marca incandescente nos foi deixada nas suas cartas». De Rainer Maria Rilke: «E acima de tudo, Mariana Alcoforado, aquela criatura incomparável, em cujas cinco pungentes cartas se cartografa pela primeira vez o amor feminino... desenhado como que pela mão de uma sibila.»

MTH, conhecedora da freira de Beja desde o tempo das «Novas Cartas Portuguesas», num prefácio esclarecido e esclarecedor, segue em frente. E parte da paixão da traída Mariana para recriar, ao seu jeito, a «memória sonhada» na vida da enclausurada, já para além das cartas. 

«”Tu, meu cisne”», continuaria a murmurar-lhe em sonho Noël de Chamilly, enquanto ela se alongava nua a seu lado, alva de lua nos ásperos lençóis da estreita cama de religiosa desamada.
Exaltada e exultante.

“Oh, minha ávida entrega sem limites!”, repetia a si própria Mariana, lembrando-o a debruçar-se sobre o seu corpo, acariciando-o, afastando-lhe dos ombros o manto dos seus frisados cabelos negros, que à revelia das madres há muito não cortava, limitando-se a escondê-los debaixo do negrume do véu.

Mas, mal começavam os alvores da aurora e o sonho terminava, a Mariana restava-lhe ainda a ficção das sua cartas, que à medida que os anos passavam, para ela se iam tornando cintilância estelar, na escuridez da sua existência; espelhos diante dos quais se idealiza revendo-se, reinventando-se mais e sempre mais, naquele ardente paixonamento, que aos seus olhos a iam mantendo rosa e chama, brasa luzente, a iluminar as espessas e sombrias paredes do convento da Nossa Senhora da Conceição – simultaneamente leito nupcial e seu túmulo».

Nada do que aqui deixa dito prejudica, antes justificará, essa frase que a co-autora das «Novas Cartas Portuguesas» transcreve da quinta e derradeira epístola ao Cavaleiro de Chamilly, em que Mariana acentua: «Senti que me éreis menos caro que a minha paixão». E expõe Maria Teresa Horta: «Paixão enquanto jogo, através de uma ilusória cortina de bruma, desarrimo perante a inconstância, mas sempre na ambição do contentamento, em palavras de abordar a escrita das emoções e dos sentidos, tessitura literária empolgante, abrasadora, a darem-nos a ver a medida exacta das afeições tumultuadas.» 

Sobre a tradução de Pedro Tamen, a escritora faz questão de sustentar: «Pela primeira vez, é-nos dado a ver a primordial dimensão operática de “Cartas Portuguesas”, num belíssimo e rigoroso trabalho sobre a recuperação da escrita epistolar feminina culta do século XVII. Num primoroso e exaustivo levantamento de linguagem da época».


*Informação Maria Teresa Horta-Página Oficial

A Pandora no Clube: «Lúz à altura», acto III

Lúz à altura
Acto III

Há quanto tempo tinha surgido, esquisita, a ideia do palhaço, estando eu bem acordada?
Um ano? Meses?
Um dia, o tão habilidoso e triste palhaço da minha história pôs maquilhagem a mais. E traiu-se.
Dele eu esperava uma revelação como as que acontecem aos vampiros: em frente ao espelho, ele seria entregue pela falta de imagem refletida. Seria assustador, eu correria, ele se afastaria também, receoso de que eu denunciasse a sua condição.
Mas foi tão diferente!
Eu vi mais naquele dia, vi o que não estava explícito naquele rosto, vi a camada de tinta que uma base queria encobrir.
A clareza veio e reconheci o traço escuro e arqueado de cada sobrancelha, o contorno esbranquiçado e grosso em torno de cada olho, o vermelho vivo das maçãs do rosto, a ponta do nariz que dava um ar perverso, e o abatimento de todo o conjunto. Era um palhaço cansado.
Tinha sido um disfarce, o tempo todo?! Um palhaço disfarçado de companheiro?
Disfarçado me levava pela mão à rua, disfarçado conduzia nosso carro, disfarçado fazia amor comigo antes de chegar o sono, disfarçado fazia o imenso favor de tolerar a minha insegura existência.
Virá hoje a usar esse disfarce? Terá, ao contrário, aberto o guarda-fatos para escolher outra pele, outro disfarce?
Possuirá uma máquina como a minha? Será cuidadoso com ela, a dar-lhe corda para funcionar? Terá um coração vermelho rubi, para legitimamente desejar que alguém esteja à altura dele?

Tiro da carteira uma presilha. Sem importância, rosa pálido e lânguidas flores roxas. Comprimo-a de leve com uma das mãos e com a outra ajeito o cabelo à altura da nuca. Prendo os fios, achando que com essa aparência me tornei parente próxima da costureira de um conto já fora de moda, costureira que trabalha todo o dia e nem por isso consegue comprar uma prenda à filha, a menina Tati. Que lembrança! A precisar de fôlego e com uma heroína dessas à cabeça! E, mais ainda, um artista sonhador a mover cordelinhos!
Estico-me, dou uns passos para o lado, mas não encaro de frente o palhaço que, neste preciso instante, entra na sala.
Respiro fundo.

Se desisti de sentar na plateia, sozinha, para o espetáculo que não tem artista, tem um farsante…
Só mais um pouco, querida, só mais um esforço, e a história termina com o fruto que não vai ser repartido, que não será engolido nem cuspido de volta à terra.
Seu fruto, carne da sua carne, a partir de hoje é livremente seu e aprenderá de ti a ter concentração e a desviar-se de embustes. Aprenderá de cor.
Você atendeu ao convite. No plano do artista estava escrito: “darás teu coração e ele lhe será devolvido, com outra forma, por outras mãos, batendo forte e com uma luz familiar”.
Mãe tem poder. À sombra da árvore de que a mãe toma conta não descansam palhaços, nem em seus galhos pousam predadores que consigam levar mais do que uma vaga recordação do seu fruto.
Enquanto uma mãe representa, vem como se fossem duas, em sonho e com os nervos à flor da pele.
É a missão que a unifica.
O próximo acto precisa ser organizado por sonhadores atarefados e hábeis.


*Retirado do blog Pondera, Pandora - de Betina Ruiz.
Se quiser ler o conto todo, por favor consulte o blog: http://www.ponderapandora.blogspot.pt/
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Betina Ruiz é doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Docente na Escola Superior Artística do Porto - Guimarães.

Castrim - de que metal é feito o teu coração?

Para muitos, Mário Castrim é nome de crítico de televisão. Icónico, coerente, uma referência.
Para alguns - como a mulher, a jornalista e escritora Alice Vieira, e a filha, a também escritora e jornalista Catarina Fonseca - Castrim é também nome de poeta. 


Tenho o privilégio de lhe conhecer também esse lado. Partilho-o convosco neste dia em que passam exactamente onze anos sobre o momento em que desligou a televisão e pousou a caneta. 


Ana Almeida

terça-feira, 15 de outubro de 2013

A Pandora no Clube: «Lúz à altura», acto II

Lúz à altura
Acto II

Antes de chegar à fonte, ao pilar, à inscrição e à sala com jeito de cubo, no entanto, tive um sonho. Os artistas sonham e realizam, eu sonho.
Depois de entrar no grande cubo, observar e insistir na minha história, algo na atmosfera fez-me recuar à entrada deste prédio e, dela, recuar mais, até a madrugada.
Voltei a ocupar-me do sonho. O facto é que de manhã saíra do estado de sonolência para o de vigília a pensar nesse sonho, tentei lembrar-me dele diante da fonte e da inscrição profética.
Lembro-me dele agora.
O sonho me lançava, sem mais, a um detalhe da fachada de um edifício antigo e cativante.
Ali eu experimentava um prazer infantil com a visão de umas pedras escuras, notáveis mesmo sob a pouca claridade daquela hora.
Ah, sim, revelei que era noite, no meu sonho? Era. Minha efabulação parece preferir o escuro e o silêncio.
As pedras do edifício revestiam uma parede côncava. Eram grandes placas escuras e brilhantes, e disfarçado, no centro da concavidade, estava um nicho.
Eu não desviava o olhar até a imagem que o nicho protegia, para mim não havia santo ou milagre mais presentes do que o meu.
Os olhos passeavam sem compromisso, mais de uma vez eles riram para a centelha que eu trazia ao colo, a minha natureza, meu milagre, meu feixe de luz.
Eu não estava sozinha no sonho.
Ele sorria também e roçávamos, na passagem estreita, as folhas das plantas enfileiradas - e elas eram ainda mais lustrosas do que as pedras.
Num piscar de olhos já tínhamos subido a um apartamento todo branco, de limpeza e de reflexos, iluminado como meu filho, iluminado como eu podia ser.
E assim, com a sensação de serenidade por termos cruzado a porta de casa e reencontrado nossos aposentos e nossa simplicidade, o sonho se desvanecia.
Restavam duas coisas: a certeza de que nós dois seríamos felizes e uma estranha luz a insistir em iluminar cada um dos cenários em que eu nos vi.


Mas e o que vem a ser isso de felicidade? Ela agora tem luz, por acaso? Se eu nunca tive garantias nenhumas!
Quem me dera uma máquina que pudesse concretizar sonhos, concretizar o maior dos sonhos, a felicidade! Penso nisso, na existência dessa máquina, em algum lugar, para eu consentir em dizer meu “sim” à vida sem timidez, pois eu quero ser feliz.
Seria necessário um alarme, como naquele jogo infantil dabatata quente quente quente. No meu caso, o alarme viria de uma máquina.
A tentativa de recordar o sonho tinha acabado de me ajudar a descobrir um mecanismo, em mim, que era capaz de emitir esse sinal.
A felicidade como uma luz de presença, só que andante, um foco, melhor dizendo, um arquivo em movimento, um recado de que a escuridão tem um caminho e tem suas presenças, também. À escuridão não se chega sozinha.
Eu que ao longo de oito anos perdera forças e vira um poço fundo, com uma máquina muito bem calibrada, que eu nem desconfiava ter, seria capaz de mostrar uma réstia do poder e do mistério de conhecer, finalmente, a minha missão.
Uma máquina de corda, uma máquina que iluminava tudo o que estivesse à altura do meu coração.
Ela sinalizaria os meus acertos.

Mas calma! Água nessa fervura. Para o lado com a máquina do coração e com a missão.
Eu estivera a divagar sozinha, em pé diante de uma fonte e de uma frase latina, por causa de um sonho, e estava a esvair-me do cubo do artista. Já são embrulhos a mais!
Preciso me inserir de novo nesta realidade de natureza morta, estar só e expectante, pois quando a hora se impuser e a decifração completa do sonho for interrompida, aqui, dentro do cubo, tudo o que pode ser chamado de inteligência vai ser exigido de mim; preciso fazer luz ainda sem a máquina, pois sei que houve um agente, fui interditada por um palhaço.
Na madrugada, quando o sonho virou fumo, foi o rosto dele que eu vi.
...

*Retirado do blog Pondera, Pandora - de Betina Ruiz.
Se não quer esperar pelo III acto, vá já ao blog ler todo o conto -
 http://www.ponderapandora.blogspot.pt/
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Betina Ruiz é doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Docente na Escola Superior Artística do Porto - Guimarães.

É do borogodó: quibe de bandeja

Descascava a laranja com delicadeza e perfeição; preenchiam a fome dos olhos de Hassan todas as pequenas habilidades dela. Boas maneiras na cozinha, esplêndida fartura: especiarias maceradas para za’atar, pães quentes, refogado de carne, cebolinha miúda, castanhas, uvas passas, exageros de canela erguendo provocação rubra (capaz de despertar até os mais esquecidos). Afaf era a própria vida na cozinha. Refletia no corpo toda abastança da alma: coxas enormes e tornozelos levemente assinalados depois das panturrilhas, quadril farto de mulher parideira que já somava a conta de seis filhos, seios grandiosos que saltavam mesmo para decotes mais tímidos.

Afaf era um berço de graça.
Desde que tinham chegado ao Bom Retiro, abriram um pequeno restaurante de delícias libanesas para alimentar compradores, vendedores, turistas e quem mais fosse ao comércio paulistano. Afaf ficava na cozinha, quase nunca era vista no balcão. Hassan era o atendente, o gerente e também o sujeito que fica pronto para avistar qualquer novidade na porta da rua. Anfitrião por natureza.
Um acordo entre as duas famílias, lá mesmo no Líbano, trouxe Afaf para o Brasil na qualidade de esposa de Hassan. Um arranjo de casamento para os arranjos da vida em solo estrangeiro.
Afaf nunca tinha saído de perto dos pais. Os primeiros anos de casamento foram difíceis para ela. A timidez dela sufocava a paixão que logo abateu aquele homem caloroso. Hassan, contudo, era persistente e engendrava pequenas travessuras entre pia e fogão, para que Afaf se tornasse permeável ao amor.


Numa daquelas primeiras manhãs de vida conjugal, ainda cedinho, Afaf trabalhava quitutes, estendia a massa do quibe de bandeja. Hassan, ainda com as portas fechadas, a observava por trás, numa pequena janela passa-pratos. Afaf pilava especiarias e sacudia as cadeiras lindamente, depois se debruçava sobre a pia erguendo as ancas numa promessa de deleite aromatizada por pimenta e salpicada pelas cores de canela.
Hassan não mediu consequências quando partiu ao abraço apertado do corpo da esposa, forçando-a contra o balcão da pia num flagrante delírio. Afaf se intimidou, pensou em não resistir ao marido que era sim seu senhor proprietário (e dono!), mas num arroubo de loucura (por medo, talvez), empurrou o corpo magro de Hassan até que ele se encontrasse com o chão da cozinha, depois mobilizou o marido com seu pé, fixando-o contra o piso. Hassan ficou cheio de raiva enquanto Afaf já amargava total arrependimento, temendo vingança.

A sorte já não era a mesma, nada livraria Afaf do cérebro engenhoso do marido.
Afaf fez menção de se desculpar, quase implorou, Hassan quase aceitou, mas no mesmo instante – ordem absoluta frente a todo rol de sortimento de ideias que teria ao longo de toda sua vida – um juízo um tanto melhor para castigar a ousadia da amada surgiu em seu tutano.
Continuou ali, deitado sobre o piso frio da cozinha de Afaf, mas dessa vez entre as pernas da sua esposa, vendo-lhe toda a boa fartura no preparo das bandejas de quibe (que eram muitas).
Afaf corou, abafou o pequeno choro que fomentava, mas nem pensou contradizer a pena que lhe impôs o marido. Envergonhada seguia a receita a risca. Eis que, aos poucos foi cedendo o rubor e tomando conta um bicho que cocegava as entranhas… Os olhares macios de Hassan deslizavam sobre a pele de Afaf.

A vergonha da mulher foi se diluindo em puro encanto pela sanha do ousado algoz, seu par.
Com as mãos embebidas em canela, na boca um punhadinho de passas a lhe adoçar a língua, Afaf suspendeu o vestido negro e se juntou em Hassan numa de suas mais memoráveis receitas.  Pena que desta feita não se podiam tirar quitutes dignos de prova por nós, meros clientes da boa lojinha libanesa.

Penélope Martins

Gabriela Ruivo Trindade ganha Prémio Leya

O romance Uma Outra Voz, de Gabriela Ruivo Trindade, uma portuguesa residente em Londres, ganhou esta terça-feira o Prémio Leya, no valor de cem mil euros. Tal como acontecera com o vencedor da edição de 2001, João Ricardo Pedro, a autora, uma psicóloga de 43 anos, está neste momento desempregada.

Manuel Alegre, presidente do júri, depois de aberto o envelope onde está escrito o nome do concorrente, comunicou por telefone a Gabriela Trindade a notícia de que era vencedora do Prémio Leya. Nessa altura ficou a saber que ela nunca tinha escrito um romance e também nunca tinha publicado. “É um romance onde se cruzam histórias individuais com a história colectiva. É um romance onde se cruzam várias personagens e é também a história de uma cidade do Alentejo, Estremoz”, disse ao PÚBLICO o escritor.

“Tem personagens femininas muito fortes, isso foi uma das coisas que mais me marcou e uma história de amor também muito forte”, acrescentou. E tem ainda “traços de originalidade e modernidade” como o facto de mostrar algumas fotografias de um personagem que a certa altura vai para África, são fotografias dos anos 30, numa fazenda de café. “Foi uma boa escolha. Vê-se que num período de crise destes, as pessoas estão a procurar soluções pela criatividade e neste caso pela criatividade literária.”

A obra vencedora, anunciada esta terça-feira de manhã, foi escolhida por um júri que incluiu também os escritores Nuno Júdice, Pepetela e José Castello, e ainda José Carlos Seabra Pereira, da Universidade de Coimbra, Lourenço do Rosário, reitor do Instituto Superior Politécnico e Universitário de Maputo, e Rita Chaves, da Universidade de São Paulo.

O poeta Nuno Júdice disse que destacaria em primeiro lugar “a qualidade da escrita” na obra da premiada. “A coerência com que a história de uma família de Estremoz é narrada desde o século XIX até este século sem seguir o cânone do romance realista do século XIX.” Retrata a realidade, pouco conhecida, da emigração para África muito antes da guerra colonial. "É uma visão muito inovadora da nossa história com pouco mais de um século."


Com cerca de 300 páginas, é um romance contado a várias vozes, com personagens femininas muito fortes, em que o ponto de vista da história se vai alterando. Júdice, tal como Alegre, explicou que não se trata de uma narração simples, mas de um romance em que por vezes encontramos documentos visuais que nos permitem ver melhor o que foi essa época: “Junta fotografia com ficção.”

A força do livro está para o crítico literário brasileiro José Castello, que também fez parte do júri, “na insatisfação” que gera a escrita de Gabriela Ruivo Trindade. “É uma escrita polifónica, uma escrita que mistura fotografia, árvore genealógica, é uma escrita inquieta”, disse Castello ao PÚBLICO. “Muitas vezes existem livros bem narrados, bem organizados mas escritos com medo. Escritos dentro de modelos clássicos, repetitivos. E esse livro, mal você começa a ler começa a descobrir que está entrando num terreno que nunca pisou."

Para o crítico, "esse esforço e essa aposta numa escrita muito original, num olhar original sobre o mundo me parece que foi o motivo mais forte para premiar esse livro”. O romance que tem “um entrelaçamento de histórias” mas onde “o principal são as vozes”: “Você nunca sabe direito os limites de fantasia e de realidade. É um livro muito interessante, só lendo mesmo para poder entender”, acrescentou.

Segundo o grupo Leya, esta foi, até agora, a edição “mais concorrida e internacional” do prémio, com 491 originais oriundos de 14 países. Instituído em 2008 com o objectivo de distinguir anualmente um romance inédito escrito em língua portuguesa, o prémio foi nesse ano atribuído ao livro O Rastro do Jaguar, do jornalista e ficcionista brasileiro Murilo Carvalho. No ano seguinte venceu o escritor e historiador moçambicano João Paulo Borges Coelho, com o romance O Olho de Hertzog, e em 2010 o júri, também então presidido por Manuel Alegre, decidiu não atribuir o prémio, entendendo que nenhum dos originais recebidos tinha qualidade para o receber.

Nos últimos dois anos, o Prémio Leya ficou em Portugal: em 2011 recebeu-o João Ricardo Pedro, com O Teu Rosto Será o Último, e ano passado foi a vez de Nuno Camarneiro, com o romance Debaixo de Algum Céu.

John Fante de regresso com mais Bandini!

Aos dezoito anos, Arturo Bandini vive com a mãe e a irmã em San Pedro, o porto de Los Angeles. Obrigado, pela morte do pai e pela grande crise de 1929, a trabalhar em empregos duros e mal pagos, tem nas revistas pornográficas o seu único alívio, um hábito muito censurado pela beatice da mãe e da irmã. As suas outras leituras consistem nos livros que procura na biblioteca, obras de grandes autores como Nietzsche e Schopenhauer, que Arturo mal compreende mas que gosta de se gabar de ter lido. Lê-as, ao mesmo tempo que emprega um vocabulário forçadamente erudito, na esperança de cumprir o sonho de ser escritor. Arturo Bandini, um italo-americano a tentar vingar na vida em plena Grande Recessão, é uma personagem intrigante, bizarra e absolutamente única, que John Fante nos deu o privilégio de seguir numa saga em quatro volumes. Estrada para Los Angeles, o primeiro romance de Fante, descreve os rituais de iniciação de Bandini na vida adulta, para a qual está gritantemente impreparado.
«Fante era o meu deus. E eu sabia que os deuses não deviam ser importunados — não podíamos simplesmente bater-lhes à porta.»
Charles Bukowski

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Uma parte de mim que fecha


Há uma parte de mim que ainda não quer acreditar que a Leitura do centro comercial cidade do Porto fechou. Do dia para a noite, assim. E assim desaparece uma casa, a minha primeira casa. Palco de tantas alegrias, muito trabalho, verdadeiros amigos e clientes que não esqueço.

A história da livraria começa a ser montada num grande armazém da Maia. Ali conheci os primeiros livreiros dos muitos com que me cruzei mais tarde noutras paragens. Uns com experiência, outros sem nenhuma. Mas um grupo com um sentimento generalizado - fazer nascer uma boa livraria, um espaço de referência na cidade.

O peso da responsabilidade era grande - herdar um nome com tamanha tradição no Porto e na Europa, uma referência de tantos e tantos apaixonados por livros. Acho que a equipa correspondeu, verdadeiramente. Na simpatia, no primor com que embrulhavam um livro, no atendimento sem "regras de supermercado". A Leitura do shopping criou uma relação com muitos clientes. E são eles que ficam mais pobres. Pessoas que iam lá diariamente, que voltavam para perguntar o que é feito dos que já haviam partido - como eu e muitos, fomos saindo a conta-gotas.

Aprendi com os melhores e ainda hoje reconheço o gozo de ter aberto aquele espaço. De organizar determinada secção ou de destruir involuntariamente o trabalho de um colega... Levar na cabeça por não conseguir montar direito uma montanha de livros ou ordenar com lógica uma montra. As pequenas guerras feitas por querer as coisas de uma maneira... e vir outro e pensar de outra.

Foi tudo feito com amor, nada em vão. O espaço viveu e conviveu com as manias de todos, procurando realçar o bom que havia em cada um.

E de repente... ali ao fundo chegava mais uma consignação para dar entrada. Criar ficha de produto, inserir o ISBN, conferir factura, etiquetar. Depois dividir por secção e arrumar. Um gesto tantas vezes repetido. Um gesto que hoje termina.

Há uma parte de mim que fecha. Uma parte que leva tantas memórias. Tantos e tantos momentos que guardo com as pessoas que comigo se cruzaram. E que ficaram para sempre.

Rodrigo

Snobidando: João Cabral de Melo Neto

Num Monumento à Aspirina

Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.

Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.

*João Cabral de Melo Neto


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A Pandora no Clube: «Lúz à altura», acto I

Esta semana vamos publicar um conto de Betina Ruiz. Será em III actos, para ir aguçando o apetite... Espero que acompanhem esta micro história. Estou certo que vos vai deixar curiosos!

Lúz à altura
Acto I

«A que hecatombe sobrevivi?
Dentro de um cómodo que faz lembrar um grande cubo revestido de azulejos, faço-me essa pergunta.
Os tons de verde que vão da água-marinha ao piche parecem-me muito impessoais, o pé-direito é altíssimo e, no entanto, eu não saí de mim ao entrar aqui, eu não me sinto intimidada. Tento estar, apenas.
Às minhas costas, a porta de madeira deslizou com todo o seu peso, mas não fez barulho. Estou presa, obrigada a contemplar. Afinal, o espaço é só um átrio, não um palco para uma surpresa qualquer. O que temer?
Pois.
Entretanto, a pergunta inicial muda pois eu treino e insisto, mas não sei o que é estar apenas, acabo por ser a menina de sempre, a menina que fantasia para poder estar. Pergunto-me, então, se estou neste cenário para atender ao convite de um artista, para viver sob o efeito do ambiente com que ele sonhou. Imagino-o a imaginar, a montar o cubo, plano após plano, e a mandar-me o chamado, até me ver entrar.
São obras dele os três bancos de madeira encostados à parede?
Estou tão cansada que não cedo à tentação de sentar, que estou eu a magicar, então?
Sigo em frente e, quando chego ao banco - e ele está vazio -, permaneço em pé.
Olho para a porta, de novo.
Nem pull nem push, nenhuma aragem pela fresta. Nem uma minúscula linha de luz vinda do exterior.
Há sussurros e ao procurá-los noto um longo balcão. Uma das suas pontas está atrás da linha da porta, protegida por uma coluna. Não enxergo a outra. Talvez esteja atrás de mim, além do limite até onde eu avancei.
São funcionários que sussurram por detrás desse balcão. Parecem trabalhar para que eu me sinta inquieta, enquanto falam entre dentes.
É melhor evitar o ruído. Deve haver muito mais gente corredor afora.
Este corredor terminará?
Mais uma vez esforço-me para estar alienada do clima que minha observação ruidosa criou: começo a repassar item por item o que terei de dizer na próxima sala, a sala que eu não consigo antecipar como é. É mesmo um espanto eu ter reprimido esse discurso durante tanto tempo!
Finalmente, repito em silêncio as orações que sei.
Quero estar comigo na outra sala e se lá eu chegar a falar, farei-o só por mim, só em meu nome, sem levantar bandeiras.
Eu consigo.


Minha hecatombe foi de ordem moral, é importante que eu diga.
O que quero explicar é que eu não cruzei uma linha na rua, a partir da qual vi tudo em ruínas. São os meus nervos que estão em pandarecos e não os edifícios, a sinalética desta vila ou o calçamento de paralelos. Sinto calafrios a percorrerem meus braços. Tenho visões em que sucumbo à fraqueza.
Minha história se arrastou por mais ou menos oito anos.
Sinto uma enorme culpa, mesmo sabendo que seria muito melhor escolher a hipótese do convite ao “faz de conta que isto, hoje, …”. Eu dependeria do artista e não de mim, dona de escolhas tão questionáveis.
Volto a fixar o tríptico verde do cubo, o balcão, a coluna. Ao lado dela, numa parte em que já não restam azulejos, veem-se rachaduras finas.
Mais uma vez, neste dia, alguém fala para mim sem que eu ouça. Uma cabeça de perfil, com o ouvido em evidência, projeta-se na minha direção. Parece dizer:
- Escuta!
E eu escuto.
- Estão todos curiosos. Mas ninguém a seu favor. Não descaia, tudo se ouve, grava e repercute como o seu oposto.
O oposto. Será a regra deste jogo?
Qual é o oposto da frase que se lê à entrada deste edifício, então, qual é?
Não estou certa quanto ao que virá, mas houve um antes, uma entrada até este lugar. Eu passei por uma frase, tenho a certeza.
Esforço-me para virá-la do avesso e… nada.
Meu latim enfraqueceu, a frase não faz sentido para mim.
Tenho receio de que seja a epígrafe da minha história, de que seja uma profecia.
No pilar em que se lê “Iustitia Fons Pacis”, vi também uma fonte banhada de sol, murmurante, tão viva quanto uma criação artificial pode ser.
A agitação da água não produziu em mim um efeito calmante quando passei. Bloqueei tudo por onde passei até agora. Nenhum sinal de vida concreto.»
...
*Retirado do blog Pondera, Pandora - de Betina Ruiz.
Se não quer esperar pelo II e III acto, vá já ao blog ver como acaba o conto - http://www.ponderapandora.blogspot.pt/
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Betina Ruiz é doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Docente na Escola Superior Artística do Porto - Guimarães.

Manuel António Pina regressa pelas mãos do seu amigo Álvaro Magalhães

O Senhor Pina é um conjunto de dezasseis ficções que ergue um retrato íntimo, sensível e muito bem humorado do poeta Manuel António Pina, desde o seu modo peculiar de olhar e viver a vida e a literatura até à sua relação com Joanica-Puff, o Urso com Poucos Miolos que ele tanto admirava. E é tudo verdade ou não? Ou é tudo imaginação? É tudo verdade e não. E é tudo imaginação.

Um livro infantojuvenil de Álvaro Magalhães onde Manuel António Pina assume o papel de personagem principal e que vai captar a atenção de miúdos e graúdos.




domingo, 13 de outubro de 2013

Poema à noitinha... O esplendor de Álvaro de Campos



O Esplendor

E o esplendor dos mapas, caminho abstracto para a imaginação concreta,
Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha.

O que de sonho jaz nas encadernações vetustas,
Nas assinaturas complicadas (ou tão simples e esguias) dos velhos livros.

(Tinta remota e desbotada aqui presente para além da morte,
O que de negado à nossa vida quotidiana vem nas ilustrações,
O que certas gravuras de anúncios sem querer anunciam.

Tudo quanto sugere, ou exprime o que não exprime,
Tudo o que diz o que não diz,
E a alma sonha, diferente e distraída.

Ó enigma visível do tempo, o nada vivo em que estamos!

*Álvaro de Campos, in Poemas 
Heterónimo de Fernando Pessoa

Snobidando: Dylan Thomas

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Prémio Fernando Namora para Agualusa

O último romance do escritor angolano José Eduardo Agualusa, Teoria Geral do Esquecimento, é o vencedor do Prémio Literário Fernando Namora, anunciou de sábado para domingo o júri. Esta é a 16.ª edição do galardão de 15 mil euros instituído pelo grupo Estoril-Sol.

Pela primeira vez foram divulgados os finalistas, que além de Agualusa incluía obras dos escritores Afonso Cruz (Jesus Cristo Bebia Cerveja), Ana Cristina Silva (O Rei do Monte Brasil), Julieta Monginho (Metade Maior) e Rui Nunes (Barro).

No comunicado enviado à imprensa a escolha do júri é justificada pela “escrita ágil de um autor que sabe realizar uma especial economia de efeitos, encontrando uma linguagem em que o português é falado em intercepção com outros modos”, segundo o texto da acta. No mesmo documento o júri salienta que “esta obra engrandece o apurado estilo literário da ficção do autor”.


O júri foi presidido pelo escritor Vasco Graça Moura e integrou Guilherme d`Oliveira Martins (Centro Nacional de Cultura), José Manuel Mendes (Associação Portuguesa de Escritores), Manuel Frias Martins (Associação Portuguesa dos Críticos Literários), Maria Carlos Gil Loureiro (Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas), Maria Alzira Seixo e Liberto Cruz, convidados a título individual, e ainda Nuno Lima de Carvalho e Dinis de Abreu, pela Estoril Sol.

A narrativa do livro de José Eduardo Agualusa centra-se em Luanda, começando nas vésperas da proclamação da independência (11 de Novembro de 1975), quando uma portuguesa decide erguer um muro para se separar do edifício onde mora, acabando por sobreviver isolada durante cerca de 30 anos.

José Eduardo Agualusa nasceu em Huambo, em 1960, é membro da União de Escritores Angolanos e estreou-se literariamente com A Conjura (1989), que lhe valeu o Prémio Sonangol. Entre novelas, contos e romances, é autor de cerca de 25 títulos.

Teoria Geral do Esquecimento, editado o ano passado pela D. Quixote, é o seu mais recente romance, que sucedeu a Milagrário Pessoal. O PÚBLICO tentou obter uma reacção do escritor ao prémio, mas tal não foi possível.

*in Público.
http://www.publico.pt/cultura/noticia/jose-eduardo-agualusa-vence-premio-fernando-namora-1608972