Os dias iguais, indistinguíveis, foscos,
baços, desbotados, amarelos, todos, tantos, como se chineses, porque não
Sábado, não Domingo, não Segunda-feira.
Que dia é hoje?
Dias feitos apenas de horas.
Como se os dias não fossem feitos de horas!
Sabe as horas ao minuto, ao segundo,
sempre.
Dorme com relógio. Toma banho de relógio.
Tem, para o relógio, um pilha suplente na
gaveta da mesinha de cabeceira, na gaveta do móvel da cozinha, na gaveta de uma
secretária no trabalho, no cacifo do balneário do campo de futebol.
O seu Domingo é Terça-feira, um Domingo com
a duração de três horas, banho incluído.
Terça-feira, o dia do jogo da bola com os
colegas da escola primária. Ainda são amigos. Ainda jogam à bola.
Ainda moram no mesmo bairro O bairro maior
mas o mesmo bairro.
As vidas iguais, indistinguíveis, foscas,
baças, desbotadas, amarelas.
Tem um relógio suplente, dois empregos,
dois filhos para sustentar, a mulher desempregada, a mãe doente, a sogra a
viver debaixo do mesmo tecto.
Tudo o que podia correr mal correu mal.
E claro que sabe que podia ser pior.
As coisas.
Que coisas?
A vida, pode sempre correr pior.
Às vezes corre, de facto, quando joga à
bola não corre, fica à baliza, incomoda-se menos, cansa-se menos.
Sente-se cansado.
A verdade é que nunca gostou de jogar à
bola mas, ia jogar a quê e com quem?
Às vezes corre, tem de correr, os pés
descompassados, não por gosto ou desporto, mas em fuga de mandíbulas caninas
fiel e exclusivamente amigas dos donos das portas que guardam.
Claro que a vida podia ser pior!
Podia ter perdido a mãe, a mulher
desempregada e diabética, o dobro dos filhos, e um gago, um coxo, um vesgo, um
burro, a mesma sogra em casa, o cão com sarna, o gato sem dentes, só um
emprego.
Carteiro ou mecânico, fica indeciso sobre
qual manter.
Como carteiro, das 9:00 às 15:00:
DETESTA correr à frente de cães, de dias de
chuva, de sapatos novos.
GOSTA, mais que gosta, adora, entregar
cartas portadoras de notícias trágicas, de preferência a pessoas que não saibam
ler, uma espécie em extinção.
Em regra, as notícias más chegam por
telegrama, que são necessárias poucas palavras para explicar uma desgraça.
São coisa de urgência!
Pedala num voo, não pedala, vai de mota, os
cães a correr atrás da mota, para entregar os telegramas.
E, urgência nenhuma, 90% das vezes o caso
está morto, assim que, apenas a tempo do funeral e de umas palmadinhas nas
costas que propina com carinho e para consolo próprio, porque naquele momento,
olha para o relógio, olha para o destinatário identificado no envelope
devidamente selado e sem excesso de peso, nome, morada, código postal, país, e
pensa, se a felicidade medida de 1 a 10, 2, enquanto ele um 3, triste e
permanente.
Como mecânico, 15:00 às 21:00:
NÃO GOSTA do fato macaco, reconhece que com
o fato vestido tem atitudes de símio, o coçar as partes, o cocuruto, uma
vontade inexplicável de bananas, que se contém de comer, o que mais lhe atiça a
vontade, maldito fruto proibido, atendendo à exagerada propensão dos seus
intestinos à prisão de ventre, estado ou situação que o obriga a ler o jornal
desportivo, de fio a pavio, sentado na casa de banho, como se ele O Pensador de Rodin, cubículo que
pelo menos tem uma janela, de onde consegue ouvir o canário da vizinha. Parece
que está no campo. Sente falta de um grilo, talvez de uma cigarra, mas há
bandas sonoras piores.
GOSTA, porque o divertem, como se estivesse
à baliza e conseguisse defender todas as bolas, das reacções dos clientes aos
seus comentários. Sempre os mesmos, que são necessárias poucas palavras para
explicar uma desgraça. Às palavras que utiliza nos diagnósticos, sempre
reservados, este barulho não é normal… se for o que eu estou a pensar… é só
substituir peças… com certeza só depois de abrir… precisa do carro para quando,
e às onomatopeias que vai enfiando no meio das frases, Humm, Oops, Olé, e um
SssssS, que faz estalar corações, como se vidros de janela e tempestade de
granizo, órgãos em riste a um descuido do ataque, só de pensar no tamanho da
despesa.
Que conste que nunca enganou um cliente,
que é uma pessoa séria, que se não fosse tão sério talvez a vida mais leve,
menos triste, melhor.
E perde-se, não se perde, foge da vida que
leva, do tempo imparável no relógio de pulso.
Foge a imaginar outras vidas, às vezes para
os outros, às vezes para si, sempre uma vida pior do que a vida que leva, e
pensa que podia ter perdido a mãe, a mulher desempregada e diabética, o dobro
dos filhos…
Não é uma pessoa ruim, apenas procura
conforto para a sua vida sem graça nas desgraças dos outros.
Às vezes questiona-se se é boa pessoa.
Repete a si próprio que não é pecado imaginar, depois acrescenta o adjectivo,
imaginar coisas más.
Pecado é fazer ou não fazer, dizia o senhor
prior na homilia do Domingo que passou, como se as palavras do pároco lhe
entrassem ouvidos adentro, como se não cumprisse o ritual à base de cotoveladas
da mulher, ajoelha, levanta, senta, sob o constante olhar de desaprovação da
senhora sua sogra, que nem na tropa as ordens lhe custavam tanto, como se
enquanto o padre debitava a palavra do Senhor não o imaginasse, gordo como
está, a estrebuchar derivado de uma trombose, que por sorte dois médicos na
igreja, que por azar um ortopedista e um dentista, enquanto, de propósito,
demora a decidir se a ambulância vai chegar a tempo ou urgência nenhuma.
E, enquanto os pensamentos, um sorriso
inexplicável, um consolo pequenino, coisa de segundos, por vezes minutos… até
que alguém lhe pergunta onde é que tem a cabeça.
Raquel Serejo Martins
Foto: Nobuyoshi Araki