sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Saudade

Saudade
É alegre ferida de navalha
Cerrando luz do coração.
Ver caída a meia noite
E nossos nomes afogados
Inundados um no outro.

Saudade
É amarga e incandescente chama
De conhecer os cantos à solidão.
Teus olhos-geada descobrir
De veludo e água coloridos
Sob minha pele descansados.

Saudade
É o toque subtraído ao tempo.
Malfadado saber
De saber o lugar da felicidade
Sentindo falta do outro
Sem dar conta de si.


Gonçalo Naves


Imagem tirada daqui: http://charivari.pt/2015/09/08/ilustracoes-digitais-de-inspiracao-pos-apocaliptica-retratam-negras-paisagens-distopicas/

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

A inquestionável urgência dos telegramaS

Os dias iguais, indistinguíveis, foscos, baços, desbotados, amarelos, todos, tantos, como se chineses, porque não Sábado, não Domingo, não Segunda-feira.
Que dia é hoje?
Dias feitos apenas de horas.
Como se os dias não fossem feitos de horas!
Sabe as horas ao minuto, ao segundo, sempre.
Dorme com relógio. Toma banho de relógio.
Tem, para o relógio, um pilha suplente na gaveta da mesinha de cabeceira, na gaveta do móvel da cozinha, na gaveta de uma secretária no trabalho, no cacifo do balneário do campo de futebol.
O seu Domingo é Terça-feira, um Domingo com a duração de três horas, banho incluído.
Terça-feira, o dia do jogo da bola com os colegas da escola primária. Ainda são amigos. Ainda jogam à bola.
Ainda moram no mesmo bairro O bairro maior mas o mesmo bairro.
As vidas iguais, indistinguíveis, foscas, baças, desbotadas, amarelas.
Tem um relógio suplente, dois empregos, dois filhos para sustentar, a mulher desempregada, a mãe doente, a sogra a viver debaixo do mesmo tecto.
Tudo o que podia correr mal correu mal.
E claro que sabe que podia ser pior.
As coisas.
Que coisas?
A vida, pode sempre correr pior.
Às vezes corre, de facto, quando joga à bola não corre, fica à baliza, incomoda-se menos, cansa-se menos.
Sente-se cansado.
A verdade é que nunca gostou de jogar à bola mas, ia jogar a quê e com quem?
Às vezes corre, tem de correr, os pés descompassados, não por gosto ou desporto, mas em fuga de mandíbulas caninas fiel e exclusivamente amigas dos donos das portas que guardam.
Claro que a vida podia ser pior!
Podia ter perdido a mãe, a mulher desempregada e diabética, o dobro dos filhos, e um gago, um coxo, um vesgo, um burro, a mesma sogra em casa, o cão com sarna, o gato sem dentes, só um emprego.
Carteiro ou mecânico, fica indeciso sobre qual manter.
Como carteiro, das 9:00 às 15:00:
DETESTA correr à frente de cães, de dias de chuva, de sapatos novos.
GOSTA, mais que gosta, adora, entregar cartas portadoras de notícias trágicas, de preferência a pessoas que não saibam ler, uma espécie em extinção.
Em regra, as notícias más chegam por telegrama, que são necessárias poucas palavras para explicar uma desgraça.
São coisa de urgência!
Pedala num voo, não pedala, vai de mota, os cães a correr atrás da mota, para entregar os telegramas.
E, urgência nenhuma, 90% das vezes o caso está morto, assim que, apenas a tempo do funeral e de umas palmadinhas nas costas que propina com carinho e para consolo próprio, porque naquele momento, olha para o relógio, olha para o destinatário identificado no envelope devidamente selado e sem excesso de peso, nome, morada, código postal, país, e pensa, se a felicidade medida de 1 a 10, 2, enquanto ele um 3, triste e permanente.
Como mecânico, 15:00 às 21:00:
NÃO GOSTA do fato macaco, reconhece que com o fato vestido tem atitudes de símio, o coçar as partes, o cocuruto, uma vontade inexplicável de bananas, que se contém de comer, o que mais lhe atiça a vontade, maldito fruto proibido, atendendo à exagerada propensão dos seus intestinos à prisão de ventre, estado ou situação que o obriga a ler o jornal desportivo, de fio a pavio, sentado na casa de banho, como se ele O Pensador de Rodin, cubículo que pelo menos tem uma janela, de onde consegue ouvir o canário da vizinha. Parece que está no campo. Sente falta de um grilo, talvez de uma cigarra, mas há bandas sonoras piores.
GOSTA, porque o divertem, como se estivesse à baliza e conseguisse defender todas as bolas, das reacções dos clientes aos seus comentários. Sempre os mesmos, que são necessárias poucas palavras para explicar uma desgraça. Às palavras que utiliza nos diagnósticos, sempre reservados, este barulho não é normal… se for o que eu estou a pensar… é só substituir peças… com certeza só depois de abrir… precisa do carro para quando, e às onomatopeias que vai enfiando no meio das frases, Humm, Oops, Olé, e um SssssS, que faz estalar corações, como se vidros de janela e tempestade de granizo, órgãos em riste a um descuido do ataque, só de pensar no tamanho da despesa.
Que conste que nunca enganou um cliente, que é uma pessoa séria, que se não fosse tão sério talvez a vida mais leve, menos triste, melhor.
E perde-se, não se perde, foge da vida que leva, do tempo imparável no relógio de pulso.
Foge a imaginar outras vidas, às vezes para os outros, às vezes para si, sempre uma vida pior do que a vida que leva, e pensa que podia ter perdido a mãe, a mulher desempregada e diabética, o dobro dos filhos…
Não é uma pessoa ruim, apenas procura conforto para a sua vida sem graça nas desgraças dos outros.
Às vezes questiona-se se é boa pessoa. Repete a si próprio que não é pecado imaginar, depois acrescenta o adjectivo, imaginar coisas más.
Pecado é fazer ou não fazer, dizia o senhor prior na homilia do Domingo que passou, como se as palavras do pároco lhe entrassem ouvidos adentro, como se não cumprisse o ritual à base de cotoveladas da mulher, ajoelha, levanta, senta, sob o constante olhar de desaprovação da senhora sua sogra, que nem na tropa as ordens lhe custavam tanto, como se enquanto o padre debitava a palavra do Senhor não o imaginasse, gordo como está, a estrebuchar derivado de uma trombose, que por sorte dois médicos na igreja, que por azar um ortopedista e um dentista, enquanto, de propósito, demora a decidir se a ambulância vai chegar a tempo ou urgência nenhuma.
E, enquanto os pensamentos, um sorriso inexplicável, um consolo pequenino, coisa de segundos, por vezes minutos… até que alguém lhe pergunta onde é que tem a cabeça.
 
Raquel Serejo Martins
 
Foto: Nobuyoshi Araki

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Estantes de sonho: a paragem dos sonhos

Aguardo que o autocarro me leve para o país dos conhecimentos...

Encontrado na página Improbables Bibliothèques, 
Improbables Librairies. A não perder por nada! 

Um sonho na mão

Encontrado na página For Reading Addicts

Pelo buraco da fechadura, uma visão de Selçuk

Encontrado na página For Reading Addicts

Foto frase do dia: F. Scott Fitzgerald

Encontrado na página For Reading Addicts

Da série "o que os gatos não gostam"

Encontrado na página For Reading Addicts

Páginas dos livros

Encontrado na página For Reading Addicts

Star of Bombay, Helder Magalhães

Star of Bombay

Como se ao primeiro gole
o mar desaguasse nas fortalezas de Bombaim
sob o cheiro da terra vermelha
na ondulação morna das primeiras chuvas

muitos séculos volvidos
a lenta rebentação das águas do Tejo
ondeia na carne da língua 
a generosa descoberta das especiarias

junto ao cais a noite
desfralda a superfície do horizonte
o corpo náufrago de esplendor
que a chama da destilação sopra dentro.

*Helder Magalhães


Porque aqui vai nascer um projecto diferente de gin, não perca os nossos poemas.


Foto frase do dia: Sherman Alexie

Encontrado na página For Reading Addicts

terça-feira, 15 de setembro de 2015

espelho


pelas horas do ofício
o corpo consome a matéria
nada permanece à superfície
que não o espelho da água
da profundidade das mãos
o desgaste emerge luz
de silêncio a fome.

Helder Magalhães


Dust in time by Katia Chausheva Photography

É do borogodó: Meninas de sinhá

Tive a felicidade de brincar muito de roda. Minha mãe brincava comigo e com as crianças da rua que a gente morava. Outros adultos, vizinhos, também se juntavam à ciranda. Minha avó brincava com os netos no quintal da casa dela, mesmo dia de domingo que todo mundo se juntava para comer macarronada. Meu avô fazia a gente dançar o vira para lembrar Portugal, ele tocava a consertina, cantávamos alecrim dourado naquele mesmo ritmo.

Brincar de roda era juntar cantiga, correria, mistério, verso, passa anel, lencinho na mão. Não tinha tempo de acabar aquilo. E nunca acabava.
Na volta da casa dos avós, minha mãe puxava as canções batendo palmas. O caminho era muito melhor de passar.

Eu não sei cozinhar sem cantar. Quando tenho roupa para lavar, tenho que cantar. Criei meus filhos com música e na hora de dormir, os primeiros anos de vida deles, era balanço e cantiga.
A criança que mora em mim reconhece na música um diálogo com o outro, um melhor entendimento do que eu sou.

E nesse mundo tem gente interessada em dialogar, saber do outro, pegar na mão para girar a ciranda. A história das meninas de sinhá vem para nos ensinar sobre essa capacidade humana de motivar o outro a acreditar em si mesmo através da impatia, do estar junto, lado a lado.

Esse grupo de senhoras do aglomerado do Alto da Vera Cruz, em Belo Horizonte, foi formado por dona Valdete. No vídeo, dona Valdete conta que percebeu que suas contemporâneas estavam se consumindo em depressões e uso de remédios, por isso ela teve a ideia de juntar a mulherada em noites de artesanato. Mas a ideia não resolveu o problema, o uso de psicotrópicos continuava e a infelicidade era um estado de espírito constante. Foi, então, que dona Valdete trocou o fazer artesanato pela brincadeira: juntou as meninas para cantar e resgatar memórias de infância.

Deu certo. Deu muito certo.
As Meninas de Sinhá formaram uma irmandade que já se apresentou em diversos lugares ao lado de artistas famosos – tanto quanto elas.


A leitura de mundo de dona Valdete salvou vidas. Não só daquelas mulheres mineiras afetadas diretamente pela provocação dela, mas a de todos que entram em contato com esse trabalho, bendita fonte de crescimento do amor próprio e diálogo permanente.

O exemplo de Dona Valdete faz parecer fácil mudar o mundo. Eu gostaria de beijar as mãos de Dona Valdete. Mãos que seguraram outras mãos para brincar de roda e deixar a magia acontecer.
Minha sabiá (esteja onde estiver), mando um beijo num sonho procê.


Penélope Martins








Um poema perdido em Gente Independente, Halldór Laxness

*Gente Independente, Halldór Laxness - edição Cavalo de Ferro

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Segredos na Floresta, Jimmy Liao


Passou-me recentemente pelas mãos o livro de Jimmy Liao, um ilustrador de Taiwan. Em Portugal está publicado pela Kalandraka, uma editora que nos habitua aos melhores livros para crianças (e adultos fascinados). Segredos na Floresta fez-me pensar no imaginário da infância, quando a minha mãe saía do quarto e ficava tudo escuro. Nem tudo eram monstros terríveis, muitos dos meus pensamentos seriam assim de aventuras, como o livro, pelas jornadas longínquas das camadas mais profundas da consciência.

Um livro para pensar um pouco. Folheie o livro e depois convide uma criança a fazê-lo consigo.



Sinopse:

… Uma tarde de quarta-feira, o vento soprava enquanto eu dormia… As cortinas brancas flutuavam levemente. O Coelho Felpudo tinha chegado e assobiava-me do lado de fora da janela. Assim começa Segredos na Floresta cujas frases iniciais bastam para que o o leitor não consiga deixar de seguir a pequena protagonista, que responde ao chamamento de Coelho Felpudo para brincar com ele na floresta. Na floresta, que dissimula os seus segredos, ela lembra-se dos seus sonhos… Mas será que já não está no coração do próprio sonho? Que motivo há então para que não se divirta a confundir sonho e realidade? Que motivo há para que o leitor não faça o mesmo? As ilustrações de linhas elegantes, a cinza e branco, completam harmoniosamente este texto doce e poético, assente em frases minimalistas que dizem apenas o essencial. Uma verdadeira ode ao imaginário da infância e à poesia. Uma pura maravilha.

Foto poema: Paul Valéry