sábado, 29 de agosto de 2015

Foto frase do dia: Leminski

 
 
 

Para Eduardo Prado Coelho

Querido Eduardo

O verão tem sido estranho. Calor ou frio, dá para tudo, a dona Idalina, na aldeia, diz-me que estamos protegidos pela Nossa Senhora do Cabo Espichel. Talvez seja. MM assegura que Lisboa se torna afável em Agosto, embora a vida se faça em torno deste dia. Sempre este dia. Podia contar-te algumas coisas, porém suspeito que o bom já o saibas - e te alegres! - e que o mau seja de evitar. É um país cheio de inveja e coisa pouca, de muitas... adversativas e hipocrisia. Este ano, com as eleições à porta e as presidenciais já firmes no horizonte, as línguas andam afiadas, o hate mail e comentários absurdos fazem a silly season com facilidade. Diria que te podias divertir com tudo isto. Mas não. Estou quase certa de que terias momentos de desalento. Há dias em que me interrogo se a bondade se desvaneceu, se a democracia é assim tão frágil, se haverá outro caminho que não este, sempre o mesmo, de ler os jornais e pasmar, de ver o facebook e pesar-me a solidão. Estou numa fase de buraco, terás de me perdoar.

Se desfiar as contas do rosário dos acontecimentos talvez fiques a ponderar que não foi má ideia partires quando o corpo decidiu que assim era. Fazes falta. Muita falta. Para pensar as coisas, para as dizer, para apresentar contraditório e bradar aos céus com a ferramenta tão inteligente da memória. Na gaveta dos bons acontecimentos, querido Eduardo, podes colocar os sucessos literários de quem amas, alguns encontros com risos e muita conversa sobreposta, sempre no intuito de dizermos o que pensamos ser importante, o que nos espanta. Não sendo um mundo novo, existem ainda algumas admirações. MM combate o horror todos os dias. Sabes como ela é. Eu procuro fazer o mesmo. Cada uma da sua maneira, é certo. E como nós, os outros que te lembram neste dia.
 
O tempo pesa de outra forma. A bungavília está pronta a despedir-se do verão. Já se sente o arrepio dos miúdos por saberem que a escola se aproxima. Descobriram um novo planeta, o 452b, demora 388 dias na sua rotação e, arrogantemente, designam-no como Terra 2. Mesmo que seja, assim o garantem os cientistas, um planeta mais velho do que o nosso, o pobrezinho é o segundo. Achas que alguém nos escuta ali, no 452b? E será o b o correspondente a planeta bom, planeta benéfico ou apenas a plano b? Divirto-me com isto, o que queres tu que te diga? É já tão tarde para te dizer tanta coisa e tão cedo para o resto.
 
Daqui te beijo, sem longe ou distância.
 
*por Patrícia Reis
 
 
*a foto de Patrícia Reis é retirada do seu facebook, da autoria de Carlos Ramos. A foto de Eduardo Prado Coelho é retirada do jornal Público

Foto poema: Walt Whitman

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

De ti

De ti
Sei-te o nome gravado em todas as horas da manhã
E o cabelo esculpido entre o sorriso da madrugada.

De ti
Sei-te o rosto mascarado pelo silêncio das flores
E as mãos tecidas apenas de finíssima alegria
Perfumadas pela canção do vento deslumbrado.

O hálito gelas-me em doce murmúrio
E a voz escorres-me como terno mel.

Sereia serena e sossegada
És o mais belo verso de mim
Para sempre calado.

Gonçalo Naves


Foto retirada daqui: http://suelifenixando.blogspot.pt/

Foto poema: Victor Hugo


quinta-feira, 27 de agosto de 2015

a-ver-livros: silêncios

Que há no silêncio que te apavora?
Que há na quietude das palavras
que assim te impacienta
e agonia?
Que há no mutismo que não te pacifica 
e antes, subversivo, 
te lança numa cruzada 
letra após letra, ditongos, hiatos,
vagas figuras de estilo,
queixas, clamores,
ironias disfarçadas de humor,
preces, insultos, sentenças e alvitres,
inquirições avulsas sem resposta possível,
sequer necessária, rodeios absurdos, 
tolices obscenas e outros desnortes?

Um dia quererás a quietação, sabes, 
e andará perdida
dentro de ti. 

Ana Almeida

* quadro do norte-americano Miles Hyman.
Para saber mais siga o link http://www.mileshyman.com/


Foto poema: Al Berto


quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Correndo o Brasil: uma noite imensa desagua numa manhã esplendorosa

Rio de Janeiro
10 de Agosto de 2014

Não sei bem o que me moveu, talvez a imensa sede de conhecer pessoas. Saí de uma discoteca na Lagoa Rodrigo de Freitas, a altas horas da madrugada, e rumei à praia.

Caminho pelas ruas do Leblon. O sol parece querer assumir-se a qualquer momento, mas ainda se nota a noite. Há luz suficiente para ver alguns entusiastas na praia, a maioria passeia os cães e faz jogging.

Arregaço as calças pelo joelho e vou para a linha da água. Está no ponto, penso, mas não me aventuro no mergulho. Começo a brincar com um cão na praia e ele rasga-me a camisola pela manga. Não protesto e sigo caminho.

Chego ao arpoador e o sol já se sente. Sinto a magia daquele lugar e agora percebo porque batem as pessoas palmas quando o sol se põe. Aquela rocha é mágica, dá para ver o Rio de Janeiro nas suas praias incríveis, recortadas por morros sem fim.

Peço uma garrafa de água a uma senhora que já lá estava a lutar pela vida. Pergunto-lhe porque vai tão cedo para ali? Responde-me que ela e o marido (que trabalha na praia ao lado) descem de uma favela todos os dias às 5:30 para vir trabalhar. Todos os dias do ano, só param no dia de Natal.

A Sra. lá me vai dizendo que tem 40 anos e é do Nordeste. Saiu de lá com a família, tinha 5 anos. Nunca mais voltou. É avó de 2 netos e apenas sabe o que é trabalhar. O dia começa às 5:30 e, muitas vezes, só termina de noite.

Junta-se um grupo de dois à conversa. O rapaz parece viver na sombra de um pai austero. Começa a falar-me dos problemas do Brasil e de como os sonhos são impossíveis. Ficámos na conversa durante mais de uma hora.

Todos falam da cidade maravilhosa onde vivem, como é linda a praia e o Cristo-Rei. Apesar das queixas dizem-se felizes. Foi a vida que Deus escolheu por eles.

Quando lhes perguntei sobre os sonhos, a Sra. disse-me que era regressar ao Nordeste para ver se encontrava a família que deixou para trás e nunca mais viu.

Quanto a ele, era visitar o Uruguai. Perguntei meio desconfiado: 'mas porquê?' 
'Simples', disse ele - 'o Uruguai ganhou a copa do mundo aqui mesmo no Brasil, em 1950'.

Despedi-me deles, ainda tinha um longo percurso pela frente até ao posto 3 de Copacabana. Caminhei, caminhei, caminhei... até não poder mais. Entrego a camisola a um mendigo e olho o mar uma vez mais.

Entro em casa, são 10 da manhã.

Rodrigo Ferrão 

O ingrato teatro do nosso destino

*in Ar de Dylan, Enrique Vila-Matas
Ed. Teodolito

Foto poema: Ruy Cinatti


terça-feira, 25 de agosto de 2015

conjugação


ir aonde só as aves vão
saber o tamanho dos braços
a que se cinge o tronco da árvore

uma incandescência que se desabotoa
sob o enamoramento das pálpebras
que permite o voo entre órbitas.


Helder Magalhães


Dirk Wüstenhagen Imagery

É do borogodó: DEVAGAR OU A CORRER, DE ANTÓNIO TORRADO

um poema pintado nos convida:
- é carregar na imagem!

(escolhido pela Penélope Martins, nossa ponte para o Brasil)




Foto poema: Umberto Saba


segunda-feira, 24 de agosto de 2015

João Pinto Coelho em entrevista


João Pinto Coelho nasceu em Londres em 1967. Licenciou-se em Arquitetura em 1992 e viveu a maior parte da sua vida em Lisboa. Passou diversas temporadas nos Estados Unidos, onde chegou a trabalhar num teatro profissional perto de Nova Iorque e dos cenários que evoca neste romance. Em 2009 e 2011 integrou duas ações do Conselho da Europa que tiveram lugar em Auschwitz (Oswiécim), na Polónia, trabalhando de perto com diversos investigadores sobre o Holocausto. No mesmo período, concebeu e implementou o projeto Auschwitz in 1st Per-son/A Letter to Meir Berkovich, que juntou jovens portugueses e polacos e que o levou uma vez mais à Polónia, às ruas de Oswiécim e aos campos de concentração e extermínio. A esse propósito tem realizado diversas intervenções públicas, uma das quais, como orador, na conferência internacional Portugal e o Holocausto, que teve lugar na Fundação Calouste Gulbenkian, em 2012. Perguntem a Sarah Gross é o seu primeiro romance e finalista do prémio LeYa em 2014.

Rodrigo Ferrão: Escrever foi uma necessidade que foi crescendo dentro de ti ou uma consequência natural do teu percurso?
João Pinto Coelho: As duas coisas, se bem que a vontade de passar uma ideia para o papel seja muito mais tardia do que a a minha relação com a leitura. E é essa relação que delineia o percurso que me fez autor. Poderia dizer que comecei a escrever este romance a partir do momento em que li o meu primeiro livro. Sempre tive a tendência para idealizar alternativas para as histórias que lia, projetar os enredos dos livros que me passavam pelas mãos para outros contextos, soluções diferentes. A leitura é um ato criativo, a verdade é essa, e por isso digo que o livro que escrevi tem todas as páginas que li.

Auschwitz é local central no teu livro. Queres falar-nos um pouco da tua experiência enquanto investigador sobre o Holocausto?
Dividiria essa experiência por dois períodos distintos. Uma primeira fase inclui tudo o que li – que foi muito – sobre o Holocausto entre o final da adolescência até ao ano de 2009. A partir daí a aproximação tornou-se muito mais aprofundada, quer por causa das ações do Conselho da Europa em que participei e que me colocaram dias a fio a trabalhar em Auschwitz com alguns dos mais proeminentes investigadores internacionais sobre o Holocausto, quer pelo trabalho de investigação a que me obrigou a escrita do romance. Foram 3 anos de pesquisa intensa, o regresso à Polónia para recolher mais materiais. Foi um caminho tortuoso, há muita informação sobre Auschwitz-campo, mas contam-se pelos dedos de uma mão os livros que nos falam de Auschwitz-cidade.

Sentiste em algum ponto que a realidade e ficção se misturavam? O que pode o leitor esperar de uma história que retracta um período tão negro da história?
Isso foi permanente, sobretudo quando a narrativa se situava na Polónia. Houve uma preocupação quase obsessiva de envolver a ficção em matéria comprovada. Isso é especialmente importante quando se aborda um tema com implicações tão sensíveis como o Holocausto. Mas, além dessas questões maiores, a preocupação estendeu-se aos pormenores, coisas como o nome de uma rua tal como era conhecida na altura, a descrição de um hotel em Cracóvia ou de um terminal de comboios em Nova Iorque.

A reacção do público surpreendeu-te? Queres contar algum episódio em particular?
É preciso ver que esta foi a minha primeira aproximação à escrita. A minha relação com a literatura tem 40 anos, mas exclusivamente enquanto leitor. Só parti para esta experiência porque a dada altura achei que tinha uma história verdadeiramente boa para ser contada, um enredo que valia o risco de lhe dedicar 3 ou 4 anos da minha vida para produzir um romance. A questão era saber se a história que existia à priori se mantinha boa uma vez escrito o livro. Quando o terminei convenci-me de que sim. E por isso tenho de te dizer que não me surpreende o interesse que o livro tem suscitado. Já da crítica não posso dizer o mesmo, não posso dizer que esperava as cinco estrelas com que o Público e o Expresso avaliaram o romance. Lá está, olha-se frequentemente para a crítica literária com alguma desconfiança, quando, por vezes, não é nela que está o preconceito.

Sarah Gross foge de um passado e procura enterrá-lo. Sentes que quem sobreviveu ao Holocausto teve o mesmo comportamento?
Não me parece que existam modelos comportamentais. Ao longo dos últimos anos, encontrei antigos prisioneiros que contam histórias muito diferentes sobre as suas vidas depois de Auschwitz. A verdade é que para eles não existe um “depois de Auschwitz”. Como eu digo no livro: “só se sobrevive a Auschwitz no dia em que se morre”. Esse será possivelmente o único traço comum no que lhes resta viver. Uma das personagens mais fascinantes que conheci pessoalmente chamava-se Kazimiersz Smoleń, um polaco que foi preso pela Gestapo e enviado para Auschwitz, onde lutou por sobreviver durante cinco anos. Passado pouco tempo após a libertação, voltou a Auschwitz, dirigiu o Museu, passou a viver naquele lugar e dedicou os muitos anos que lhe restavam a revisitar o passado. Foi um dos sobreviventes mais ativos na divulgação da história do campo, quer junto dos inúmeros grupos que visitavam o campo, quer como consultor – por exemplo, colaborou com o Laurence Rees, quer no livro, quer no documentário da BBC “Auschwitz: The Nazis and ‘The Final Solution”. Só saiu de Auschwitz no dia em que morreu. Tinha noventa e um anos, foi pouco tempo depois de se ter encontrado comigo, e – que coincidência excecional – partiu no dia 27 de janeiro, data em que se comemora a libertação do campo. Seja lá por que razão for, aí está o exemplo de quem se alimenta de um passado tenebroso para lhe sobreviver.

É importante não fechar as portas do passado. Sentes, de alguma forma, que escrever foi também uma forma de participares na memória colectiva de um acontecimento tão presente e doloroso?
Há uns anos recebi um e-mail surpreendente. Foi-me enviado por um senhor chamado Elie Wiesel, um judeu romeno, um homem absolutamente notável que sobreviveu a Auschwitz e a Buchenwald e que foi galardoado com o prémio Nobel da Paz em 1986. Nessa mensagem, entre outras considerações mais pessoais, ele escreveu: aquele que ouve uma testemunha, torna-se uma testemunha por sua vez. Não escrevi com outro objetivo que não fosse contar a história que me ocorreu a dada altura, mas sempre soube que colocar a ação nessa arena de perversidade que foi Auschwitz seria inevitavelmente um prolongamento das vozes que vinha encontrando ao longo dos últimos anos, as vozes dos que testemunharam com os próprios olhos o desastre da Shoah. E isso, enquanto autor, comprometia-me com o rigor e com a sensatez. É o princípio mais elementar para quem fala de Auschwitz.

Como se deu o contacto da televisão? Queres contar como foi a reportagem para a SIC?
Salvo raras exceções, os contactos preliminares com a imprensa são sempre feitos através da editora. Foi assim que aconteceu desta vez. Fui desafiado para ir com uma equipa da SIC e do jornal Público à Polónia. A ideia era fazer reportagens em Auschwitz e Cracóvia em torno do romance. Produziu-se material de grande qualidade, e isso só foi possível graças à imensa qualidade dos jornalistas que viajaram comigo.

Resumidamente, queres desvendar um pouco da história? Que sensações pensas estar a passar ao leitor(a)?
A narrativa divide-se ao longo do romance em dois contextos diferentes: nos finais dos anos 1960, em St. Oswald’s, um colégio elitista situado em Shelton, que é uma pequena cidade do Connecticut, na costa leste dos Estados Unidos, e, no período entre as duas guerras mundiais, em Oswiécim, na Polónia, a cidade que os alemães rebatizaram como Auschwitz em 1939. A ação abrange também os anos de ocupação pela Alemanha nazi. Como qualquer romance, este também conta histórias diversas, neste caso as histórias de duas mulheres, Kimberly Parker, uma jovem professora de Literatura Americana, e Sarah Gross, a diretora de St. Oswald’s, uma judia polaca nascida em Chicago. Pela história pessoal de Sarah, o romance descobre a cidade que acolheu o campo de concentração e extermínio, mostrando ao leitor como um lugar feliz se transforma num símbolo da iniquidade, no inferno de Auschwitz. De resto, sei bem que não há abordagens epidérmicas quando nos aproximamos do Holocausto. O leitor é confrontado com o que de mais abominável o ser humano é capaz de produzir e isso é brutal. Muitas pessoas me disseram que tiveram de pousar o livro para assimilar certas coisas, mas, lá está, tudo aquilo aconteceu. Não há interpretações nem hipérboles, há descrições; cada qual lidará com elas à sua maneira.

Vês-te a escrever novo romance num futuro próximo? Ou Sarah Gross foi personagem única criada por ti?
Quero acreditar que a fonte não esgotou, ainda é cedo para isso. De qualquer maneira, só me inicio na escrita de um novo livro se idealizar uma história que me apeteça muito ler e que ainda não tenha sido escrita. Tal como aconteceu com Perguntem a Sarah Gross.

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Em 1968, Kimberly Parker, uma jovem professora de Literatura, atravessa os Estados Unidos para ir ensinar no colégio mais elitista da Nova Inglaterra, dirigido por uma mulher carismática e misteriosa chamada Sarah Gross. Foge de um segredo terrível e procura em St. Oswald’s a paz possível com a companhia da exuberante Miranda, o encanto e a sensibilidade de Clement e sobretudo a cumplicidade de Sarah. Mas a verdade persegue Kimberly até ali e, no dia em que toma a decisão que a poderia salvar, uma tragédia abala inesperadamente a instituição centenária, abrindo as portas a um passado avassalador. Nos corredores da universidade ou no apertado gueto de Cracóvia; à sombra dos choupos de Birkenau ou pelas ruas de Auschwitz quando ainda era uma cidade feliz, Kimberly mergulha numa história brutal de dor e sobrevivência para a qual ninguém a preparou. Rigoroso, imaginativo e profundamente cinematográfico, com diálogos magistrais e personagens inesquecíveis, Perguntem a Sarah Gross é um romance trepidante que nos dá a conhecer a cidade que se tornou o mais famoso campo de extermínio da História.
 
Perguntem a Sarah Gross
João Pinto CoelhoPublicado em 04-2015
Dom Quixote

Fotos: DR
Entrevista foi publicada também na plataforma Excelência Portugal