terça-feira, 19 de dezembro de 2017

alta noite já se ia

Image result for alta noite aurora boreal

alta noite já se ia,
ninguém na estrada andava.
no caminho que ninguém caminha,
alta noite já se ia,
ninguém com os pés na água.
nenhuma pessoa sozinha
ia, nenhuma pessoa vinha.
nem a manhãzinha,
nem a madrugada,
alta noite já se ia,
ninguém na estrada andava.
no caminho que ninguém caminha,
alta noite já se ia,
ninguém com os pés na água.
nenhuma pessoa sozinha
ia, nenhuma pessoa vinha.
nem a estrela guia,
nem a estrela d'alva,
alta noite já se ia, ninguém na estrada andava.
no caminho que ninguém caminha,
alta noite já se ia,
ninguém com os pés na água.

- arnaldo antunes -




quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Ana Cristina César


A imagem pode conter: texto


A página #mulheresqueleemmulheres é um projeto colaborativo que convida a todas as leitoras interessadas em compartilhar trechos de leitura, em vídeo ou áudio, de suas autoras favoritas; o objetivo, além de promover a leitura dos textos produzidos por mulheres, é incentivar a prática de sororidade como instrumento de luta contra o machismo e a misoginia.




quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

a pedra e o caminho

Ainda que não saibamos como, nem por onde ou quando; ainda que não tenhamos força para, nem alavanca que ou braços extras; ainda que as considerações ejam infindáveis... sempre haverá a pedra, o caminho, a pedra no caminho, e a impossibilidade de fugirmos para longe de nós mesmos.

PS. Talvez seja uma sorte excepcional termos a poesia para nos dizer coisas como essas. Do Brasil para Portugal, em trilhas de leitura com uma dose de Drummond.


terça-feira, 28 de novembro de 2017

Crónica tripeira de Lisboa: um fim-de-semana de invasão

Porto » Lisboa,
17 | 18 | 19 de Novembro




O cerco de Lisboa foi em 1147, durou alguns meses e a cidade foi conquistada por D. Afonso Henriques aos Mouros, com a ajuda dos Cruzados.

Este podia ser o mote das festas que uns amigos dão na cidade, oitocentos e setenta anos após a conquista. A solenidade pede aos convivas armas e munições (minis, vinho e sacos de gelo) e convoca pessoas do norte (especificamente do Porto e Minho), da capital, arredores, sul e outras paragens. É portanto uma mostra de Portugalidade.

Nota: muitos lisboetas acreditam que norte (o conceito regionalista) é Coimbra. Errata: não, Coimbra é centro! Norte é Minho, Trás-os-Montes e Douro Litoral. Lá pelo facto de qualquer terra acima de Lisboa ficar num ponto cardeal diferente, não quer dizer que a origem do termo possa assim ser tão banalizada.

Na festa, os grupos vão fazendo pequenas ilhas e medindo distância. As meninas tímidas protegem-se em bando, os rapazes mais novos vão para a pista improvisada. Os mais habituais ficam na cozinha ou corredores de acesso, circulando pouco. Quem já se conhece desfaz-se em cumprimentos, retoma conversas deixadas a meio num ponto anterior. E depois existe sempre "a novidade" – um número considerável de pessoas que aparece pela primeira vez e, com isso, arrasta todas as atenções.

Tudo parece calmo, as garrafas vão-se abrindo lentamente. Há uma grande panela com uma poção de Panoramix, a quem se vai dando pouco valor – "é suminho", dizem. Só que não é, não é mesmo! Como qualquer poção, esconde grandes poderes - já lá vamos aos efeitos.

Passo muito tempo à conversa, falo com um amigo que aparece na festa com uma garrafa de whisky do Futebol clube do Porto (provocação à casa maioritariamente benfiquista). Depois viro as atenções para outro grupo – discutimos a possibilidade de pegar nas histórias de um deles e transformar a sua vida numa personagem de um futuro romance meu. Ele será tudo aquilo que é, mas com um toque maquiavélico e perverso, nas doses certas.

A lua ainda sobe e a festa começa a deixar de ser uma conversa de café para passar a ser uma pista de talentos. Tudo com imenso cuidado, não vá a vizinha da frente assustar-se. Afinal Lisboa é isto: uma enorme aldeia de casas muito próximas.

Por volta das duas e pouco tudo desce à rua. A festa separa o grande grupo em pequenos aglomerados. Impossível seguirem todos para o mesmo local, organizar a logística de boleias, Uber e táxis. Fazem-se as primeiras vítimas: parte da organização, pais de crianças, pessoas da cidade, os rotineiros de levantar cedo... tudo isto abandona a noite.

Fico nas sobras (na minoria, talvez). Estamos convictos que a noite ainda espera algo de nós e descemos. O grupo é misto, inclui conhecidos e algumas pessoas que nunca vi. A viagem no Uber segue e eu sinto-me alheado do mundo lá fora. Resolvo ter uma conversa longa com uma amiga sobre assuntos sérios. Mas isso fica para depois, somos deixados à porta da catedral do som, na passadeira vermelha.

Fechou uma discoteca em Lisboa e tudo parece um caos de gente ainda maior. Não sei dizer quantas pessoas estão ali, mas nunca pensei ver esta multidão. Começo a perceber que a noite vai ser de perdas, de casos abandonados, de tropeços vários. E, portanto, sinto-me em missão – tenho que proteger o grupo das agressões exteriores.

Danço as poucas músicas que gosto, mas acabo por ir apagando – modinha brasileira martelada, com letras de bradar aos céus: não é o melhor de Lisboa. Consigo perceber que haja público para isto, mas não cantarolo uma frase sequer.

A noite termina com vários sobreviventes (vá lá). Arrasto dois até à roulotte dos hambúrgueres – para não irem para a cama de estômago vazio. Seguimos num táxi até à Lapa, já me deixaram a chave e não incomodo ninguém ao entrar. Os outros dois seguem para outros destinos, fica por ali esta aventura.

O dia seguinte acorda tímido, a vontade de sair da cama é pouca. Abro os olhos cedo, mas deixo-me ficar. A brigada da limpeza ainda não se juntou, vou aguardar que o primeiro se levante.

Saio da cama assim que ouço passos e começamos a encher sacos de lixo, quase em modo automático. Garrafas, copos vazios, cinzeiros, cascas de queijo, caroços de azeitona, lixo acumulado na cozinha. Há um pouco de tudo, a noite foi propícia à acumulação.

Passa quase uma hora até que vou para o banho, já com almoço marcado no Mercado de Campo de Ourique.


O banquete é com um amigo, enquanto mando mensagens a mais pessoas para aparecer. Pedimos ambos uma boa sandwich de carne, com um molho e umas batatas de acompanhamento. O grupo vai crescendo durante a tarde, cada vez maior e mais animado.

Quando saio da mesa para ir tomar um café, encontro a actriz brasileira das novelas da Globo, Giovanna Antonelli. Ela estava ali ao nosso lado a fazer perguntas sobre sumos, enquanto esperávamos. Olhei para a minha amiga e perguntei: “quem é?" - nos segundos seguintes liguei logo a cara à pessoa, mas não sabia o seu nome. Descontraidamente perguntei-lhe então o nome e se estava em Portugal em trabalho. Respondeu-me que não, que estava de férias. E depois tirámos uma fotografia os 3.

Já passava das nove quando fomos jantar à Casa dos Passarinhos – nos limites de Campo de Ourique, mas já a chegar às Amoreiras. Pedimos um bom naco de carne na pedra, acompanhava com batatas, um pouco de grelos e molhos. Cada um tratava dos seus bifinhos, passava pela pedra o tempo que quisesse. Aconselho desde já a visita, foi óptimo.

Depois de jantar, apanho um táxi para ir ter com outro grupo. Hoje vamos a uma festa de anos de 3 amigas, no bar Skones, em Santos. O bar fica numa antiga fábrica remodelada, mesmo na zona do rio - há também um enorme restaurante (que desconheço se é bom ou mau), um pequeno bar com mesas de bilhar e com um ambiente de adega de bons vinhos.

O grupo vai dançando ao som da música. O DJ parece não acertar muito com os estilos e passa de um clássico dos anos 80 para uma música moderna, indo depois a um folk. Nós não sabemos bem corresponder, mas há um esforço colectivo para nos destacarmos do grupo de mulheres de meia idade que nos rodeia. Ah, que figurinhas faziam! Impossível descrever.

Depois do aniversário e dos parabéns, voltámos à pista para os últimos cartuchos. Distribuíram-nos Chupa Chups, isso pareceu dar-me extra poderes de dança. Mas pouco depois é cortada a animação com o Tudo O Que Eu Te Dou, do Pedro Abrunhosa. Sim, esse é o sinal evidente de despejo.

Saímos, o frio aperta ali junto à beira-rio. Decidimos festejar o resto da noite em casa, uma dúzia de nós. Ainda há cervejas de sobra (da noite anterior) e o telemóvel faz a festa. Dança-se mais um pouco, conversa-se e fazem-se uns vídeos. Mas está tudo cansado, o sono começa a fazer os primeiros convites.

Vou-me deitar, um dos meus amigos dorme no sofá. Cubro-o com a bandeira do Benfica e tiro-lhe uma foto para recordação póstuma. Vou dormir, por hoje basta.

O domingo é para combinar a volta para o Porto. Marcam-me viagem para as 17, não tenho muito tempo para passear - mas ainda passo na Cristal, para o tradicional croquete. Desço as ruas da Lapa em direcção a Santos. Numa rua, avisto uma casa com pouco mais de 2 metros de diâmetro e imagino o que é viver ali, acordar e ir de uma janela à outra em poucos segundos.


Caminho mais e entro na Igreja de Santos-o-Velho. Sou imediatamente atraído pelo magnífico tecto pintado, com contornos dourados. Entre outras histórias (que investigo mais tarde) sobre este espaço, registo a seguinte curiosidade:

“O convento, entretanto entregue à Ordem de Santiago, foi também espaço de relevo em diversos momentos da nossa História, tendo ficado indelevelmente ligado à desgraçada saga Nacional de 1578, quando pela mão do Rei Dom Sebastião, Portugal se perdeu na Batalha de Alcácer Quibir.


Diz ainda a lenda que o rei, que muito gostava de passar temporadas neste espaço, ali ouviu Missa pela última vez antes de embargar para a sua derradeira viagem e que terá sido ali mesmo, algum tempo antes, que terá tomado a decisão que acabou por resultar na perda da independência de Portugal.”


Saio em direcção ao Cais do Sodré e paro na Igreja de São Paulo. Mais um tecto fantástico, em Trompe-l'oeil. Aprendo que esta magnífica e exemplar obra foi reconstruída depois do grande terramoto que arrasou a cidade.

Espanto-me com a sua beleza, com os pormenores que convidam a ficar em silêncio e contemplação. Tantas e tantas vezes ali passei, de noite é o nosso local de convívio. Mas passou-me completamente ao lado, até hoje. Visita cumprida.


Continuo em direcção à rua do Alecrim, que sobe até Camões. Ali recordo um almoço que tive há uns meses, no Palácio Chiado, mesmo à frente do quartel dos bombeiros: uma experiência muito interessante. Passo à frente do teatro Trindade e estaciono uns minutos no miradouro de São Pedro de Alcântara. Impossível ignorar a vista da cidade, com o castelo a observar indiferente o casario que se estende até ao Tejo (foto no topo da crónica).

Passo pelo Príncipe Real, rua da Escola Politécnica, botânico. Registo mais um tecto de uma Igreja, a de S. Mamede. Mas saio à pressa, tiram-se fotos de um baptizado recente. Reparo na eminente abertura de uma nova livraria, a Almedina, mesmo a chegar ao Rato. Espreito lá para dentro, com pena de ainda não ter aberto – fica para a próxima.


Aproximo-me do jardim da Estrela, volto a registar a perfeição das tardes de domingo daquele lugar. Decido tirar uma foto à fachada da Basílica, que tanto me acompanha nas visitas a Lisboa. Sigo pela Buenos Aires e despeço-me de todos. Digo que agora só em 2018, vamos lá ver se cumpro.

Parto para o meu Porto, o número de quilómetros continua a aumentar e o tempo passa. E eu importado com isso!


Texto e fotos: Rodrigo Ferrão

sábado, 25 de novembro de 2017

Correndo o Brasil: um pneumotórax no rodopio no Rio

Rio de Janeiro
11 de Agosto de 2014




"Amanhã, vai ser outro dia." Acordo com Chico nos ouvidos e saio para a praia, ainda é cedo. A segunda-feira é agitada no Rio, mas Copacabana parece passar ao lado da cidade. Na praia, os vendedores atacam todas as pessoas que pareçam turistas, com um ar ligeiramente perdido. Nós não somos excepção, há raparigas no grupo e muitos bikinis para vender.

Bebo uma água de côco enquanto observo as ondas a quebrar e a morrer na areia. Hoje estão baixas, convidam ao mergulho. Assim faço, inaugurando as águas da América do Sul. Não sinto uma grande diferença para o mar de Portugal. Afinal, o atlântico que banha os nossos países é bastante semelhante - pelo menos naquele ponto do Rio.

É já de tarde que o grupo fica a saber que um amigo nosso teve um pneumotórax e está num hospital do Rio. A condição é estável, mas foi tudo de madrugada, numa casa onde estava uma outra parte dos convivas. O susto foi grande, mas está tudo bem. Preocupa-nos o facto de estar numa enfermaria, guardada por dois seguranças de metralhadora à porta. Como há muitos acertos de contas no Rio, é normal seguirem as pessoas até ao hospital. Esta é a forma de assegurarem que ninguém entra ali dentro - pôr policiais de vigia. Brutal, mas terrivelmente eficaz.


Sou dos que não vai ao hospital, já lá está meio mundo. Saio com um outro grupo para a Lapa. O objectivo é visitar a Escadaria do Selarón, mas, mal nos aproximámos do destino, o taxista avisa-nos que as obras religiosas estão a dar comida aos pobres e vagabundos. Isso significa que, lá pelo meio, há muitos gatunos prontos a atacar grupos de turistas. Somos desaconselhados a ir neste momento e é então que damos instrução para seguir viagem até Santa Teresa.

Este bairro de classe média-alta está cheio de lojas bem decoradas, de bons restaurantes, de casas de influência colonial, jardins luxuriantes e vistas maravilhosas para o Rio, do alto da serra. O caminho para lá chegar é relativamente perigoso, alguns taxistas recusam o percurso. Isto porque a estrada é de pedra e também porque há alguns moleques que espreitam um assalto, se a oportunidade surgir.

O grupo fica ali estacionado a tomar um bom lanche, conversando um pouco e a apanhar o sol da tarde. Não está um calor abrasador, mas está agradável. Falámos do nosso amigo no hospital, há uma médica no grupo que se dispõe a ajudar.


Dividimos as pessoas e eu fico com uma rapariga. Os táxis não param e decidimos apanhar o ónibus. É um veículo relativamente pequeno, com uma barreira que circula com a força do corpo, ao entrar. Pagámos o bilhete e vamos bem lá para o fundo. O caminho passa por bairros pobres até desaguar na baixa da cidade. O trânsito é uma preocupação àquela hora, mas a carreira vai ainda fazer um desvio ao aeroporto Santos Drummond. Uma grande volta até apanhar as grandes vias do Flamengo, seguindo depois para Copacabana.

Somos deixados no Arpoador, a rocha que entra pelo mar e divide Copacabana de Ipanema, onde tinha estado de manhã, no dia anterior. Perdemos o espectáculo das palmas que as pessoas batem ao pôr-do-sol, mas ainda estavam vários surfistas a apanhar ondas.

Ficámos um bom tempo à conversa, sentados na rocha. Contemplávamos a praia, as pessoas, a alegria. E decidíamos o que fazer a seguir, com tanto que o Rio nos tem para dar. E, de repente, aparece mais uma amiga! O grupo fecha para decidir onde ir. A noite será animada, ao ritmo do samba.

Rodrigo Ferrão 

terça-feira, 21 de novembro de 2017

deja entrar Violeta Parra


Violeta Parra foi uma mulher latinoamericana comprometida com a luta dos oprimidos. "Volver a los 17", mereceu uma antológica gravação com participação de Milton Nascimento, Caetano Veloso, Chico Buarque, Gal Costa e Mercedes Sosa.

Violeta foi poeta, letrista, musicista, e teve suas obras de pinturas e esculturas expostas no Louvre numa individual realizada em 1964.

Em 1967, Violeta cometeu suicídio. Alguns podem dizer que o fato esteve relacionado com sua decepção amorosa, mas acompanhando a trajetória da mulher, artista, podemos perceber que a dor de sua alma era muito mais profunda...

Em homenagem à Violeta Parra, completando seu centenário neste ano de 2017, fiz um poema que foi musicado pela Socorro Lira, outra artista que tem tecido uma jornada contra a opressão de milhares...

A voz de uma pessoa pode ser pouca para o desafio que é elevarmos a nossa humanidade. Mas temos a chance de juntarmos vozes e deixarmos na arte o registro de que lutamos contra as injustiças. 

Agora escute a canção, e sinta-se no abraço. 

- Penélope Martins (do Brasil para a nossa ponte de leituras com borogodó) -


Deja entrar

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deja entrar
socorro lira | penélope martins
* para Violeta
deja entrar despacito
la lengua diluida sin palabra
deja ser nada
el vacio que llena
la humedad de la boca
saca de la fruta la semilla (poesia)
deixa as mãos cheias de abismo
deixa os pés no improviso
línguas, bocas, olhos, cílios
descortina gota a gota... boca, gota, boca
a tramar esse segredo
a pele, o pelo, o fio, novelo
sem destino se demora
nas cores da aurora
||: feito pluma, feito espuma, feito dúvida,
feito alento nas cordas do pensamento :||
deixa a mordida no ombro
deixa o assombro
deixa súbita
deixa gemer pelos cantos
||: yo te extraño, tanto... tanto :||

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Crónica tripeira de Lisboa: os ares do campo e a cidade lazer

Porto » Lisboa » Santo Estêvão, 
27 | 28 | 29 de Outubro



Apanhar boleias pelo Facebook, sites ou até grupos de WhatsApp é relativamente normal para quem faz várias vezes a estrada entre Porto e Lisboa. Esta sexta-feira não é excepção e já tenho a minha viagem marcada, encontro com o desconhecido na estação de Campanhã.

Nestas dinâmicas também já assumi a condução. Não é algo que o faça com muita regularidade, pois o meu Clio não vai para novo. Num Santo António já me avariou, e tive que trazer as boleias num automóvel pago pelo seguro, na volta. Normalmente só o uso quando tenho mesmo que encaixar Lisboa a outro destino qualquer.

Assim aconteceu há pouco tempo, quando, no mesmo dia, tive dois casamentos no Ribatejo. E isso tem muito a ver com a crónica de hoje, pois vou regressar à Mata do Duque, Santo Estêvão. Mas já lá vamos!

Interessa contar 2 episódios de boleias que dei. No primeiro, acordei transportar uma pessoa através de um site. Ia com outras pessoas, um amigo meu inclusive. Este homem pareceu-me uma pessoa interessada: não exigiu que o fosse buscar a lado algum, apareceu à hora marcada e cumpriu com o pagamento. Só tinha um senão: ia completamente bêbado. Por momentos achámos (eu e os restantes), que nos ia abandonar na bomba de serviço. Mas não, ele contou-nos histórias do infinito e mais além, um mundo que dificilmente conseguiríamos alcançar naqueles quilómetros que partilhámos. 

O segundo episódio, talvez mais épico ainda: aceitei dar boleia a três desconhecidas e a um amigo. Mas duas eram mãe e filha, a criança tinha uns 7 anos. Tudo corria bem até que, do nada, o meu carro deu sinal que não tinha água. Encostei-o na área de serviço da Mealhada, saio para ver o que se passa. Mal abro o capô, vejo uma enorme mancha e não está lá a vareta que tapa a saída do óleo. 

Viro-me para o meu amigo e digo: "não stresses, não digas nada, vem comigo". Entrámos na área de serviço e pergunto ao homem se é normal a vareta saltar. Ele diz-me que é impossível, que isso não acontece. Volto ao carro, tentando perceber o que fazer. 

Passou-me várias vezes pela cabeça que ia ficar numa área de serviço, com 3 desconhecidas (entre elas uma criança) e o meu amigo. Mas, descontraidamente, enchi o carro com água e virei-me para ele e disse: "não entres em pânico, vou ali ver se arranjo qualquer coisa e tapo isto - vamos ter que chegar a Lisboa."

Vejo um arbusto, retiro um pau. Encontro uma prata no chão, de um maço de cigarros, e enrolo-a. Dirijo-me ao carro, olho para o cano e simplesmente espeto o pau lá dentro, com a prata. O meu confidente olha-me com alguma estupefacção e, admirado com os meus recentes dotes de MacGyver, disfarça quando lhe digo: "está calado, temos que chegar ao destino."

A viagem rolou normalmente, como se nada tivesse passado. Nesse dia chegámos a Lisboa, tal como hoje. Sou conduzido por uma professora da Póvoa de Varzim. O carro atrasou, estava um trânsito infernal no Porto e a nossa última boleia teve que vir ao nosso alcance, de metro.

A viagem é feita de conversas profundas, toda a gente põe algo de si. Nem sempre se encontram pessoas interessantes, mas, se pensarmos bem, ir de carro é sempre um convite para conversar um pouco. E isso ajuda o tempo a passar.

Chegado a Lisboa, contas feitas, abandonado na Basílica da Estrela, sigo para a Buenos Aires. Lá me espera o jantar, já toda a gente chegou e bebem uns copos. Estão pessoas que frequentam os mesmos espaços, mas, na minha história de vida, surgiram em tempos e situações diferentes. 

Dedico-me mais a matar saudades e a aprofundar conversas. Existem pessoas novas, conheço-as naquilo que posso e que o tempo permite. O jantar evolui sempre muito rápido e lá descem os conquistadores ao Zé Tó, no Cais do Sodré. Já começa a ser hábito ir fechar o estaminé, é quase um trajecto sagrado.

Hoje alguns rapazes e raparigas entram na dicoteca Lust. Dança-se, dança-se mais, canta-se e os olhos acompanham as luzinhas. Perdemo-nos, encontramo-nos, o drama de partir o grupo ameaça e esconde-se a todo o momento. A sorte da noite mede-se mais ou menos assim. 

Saímos já cansados, todos, com os sons bem martelados na cabeça. No meu caso, já só me interessa dormir. Viver la vida loca é muito bonito, mas todas estas viagens saem-me do corpo. Táxi até casa, contar até dez e adormecer. 



Acordo relativamente cedo para quem viveu a noite anterior mais do que o que devia. Estou bem disposto, hoje vamos ao campo.

Aparecem para nos apanhar, já a meio da tarde, e depois de já ter passado de um sofá para uma cama. Seguimos cinco para Santo Estêvão, Ribatejo profundo.  

A festa de anos é de bons amigos, habituados a fazer bem as coisas e a receber principescamente. Ali juntam-se gerações de pais, filhos, amigos e crianças. A conversa que hoje procuro é com os mais velhos, sobretudo sobre as memórias dos tempos da juventude deles, em Lisboa. Mas também as aventuras de quem, como eu, já viveu no Porto. Assim se percebem os tempos, as raízes, as nossas famílias. 

A pista anima, um DJ português nascido no Reino Unido passa o som. As pessoas usam máscaras, perucas e outros acessórios que sobraram do casamento que quase todos nós vivemos ali no mesmo local, uns meses antes. 

Tiro uma fotografia na casa-de-banho, para a posteridade - "Lembre-se que estamos no campo." Esse é o sentimento que nos faz esquecer a cidade e que me fica nesta noite gravado.

A hora muda e isso faz com que todos ganhem uma nova energia. Largados uma vez mais no Cais do Sodré, junto dois a mais um grupo de perdidos que entretanto se cruza com o nosso bando. A noite não foi mais do que dar umas voltas, celebrar um momento mais no calendário desta cidade, já a lua ia alta. 

Eu e um amigo partilhámos um táxi na volta. Mas antes ainda comemos um hambúrguer, mesmo ali ao pé do Tejo. Falámos um pouco do fim-de-semana, do que cada um leva. 



O sol ilumina a residência e hoje vou almoçar a casa de duas primas e de uma amiga (que não está). Saio lento, óculos escuros aplicados. Cumpro o ritual de croquete e café na Cristal, ignorando as "Tias" de Lisboa. Passo pela Taberna dos novos Tempos, dos bitoques (prego no prato, assim diria no meu Porto) que a Patrícia nos dá à noite, quando decidimos ir lá. 

Entro no meu jardim preferido de Lisboa, o da Estrela. As crianças brincam, as pessoas respiram ar puro, os patos passam alinhados até ao lago, só se vê sorrisos. Sim, aquilo podia ser o Céu ou a personificação do Paraíso, numa ordem cósmica perfeita e muito ajustada, uma confraternização pura. 



Apanho uma amiga minha no Pingo Doce, o do Rato. Comprámos uma entrada e uma sobremesa, depois do café tomado. Ela insiste em apanhar um táxi, temos como destino o Terreiro do Paço. Vou resistindo, vou resistindo; mas ela ganha. Conseguimos um, metros abaixo, descemos até ao destino.

A casa das minhas primas é lá bem no alto, vários lances de escada. A entrada é um pouco sinistra - qualquer comparação com um beco escuro da Idade Média não será certamente exagero. As escadas rangem e nós vamos ficando sem ar. Mas, já no destino, as meninas abraçam-nos e recebem-nos com o melhor sorriso do mundo.

Estas construções são frágeis, cheias de acrescentos bem engenhados por um qualquer portuga desenrascado. Assim é a casa-de-banho, um corredor cheio de pequenas janelas até ao local propriamente dito. Mas depois os olhos cedem perante o casario encavalitado de Lisboa, com a Sé a espreitar, lá ao fundo. 



Do lado oposto, temos o Terreiro do Paço, imponente expressão da Lisboa reconstruída após o terramoto. O almoço vai tomando o seu rumo, entre risadas longas e conversas sobre a vida na capital, os projectos e sonhos de cada um. 

Descemos até ao café cá baixo. Enquanto pedem o meu, resolvo ir à Igreja de Nossa Senhora da Conceição Velha. Com uma brilhante porta Manuelina, destaca-se naquela rua, escondida na sombra alta dos antigos ministérios. 

A Igreja foi reconstruída depois do terramoto, substituindo a primeira Misericórdia do país. O interior denota o estilo Pombalino, decorado com azulejos e estuque trabalhado. O tecto é um verdadeiro acontecimento, registo isso numa fotografia.



Eu e a prima (que sobrevive ao grupo) subimos ao Chiado, rumo ao Largo do Carmo. Cheio de gente, nem parece Domingo. Lisboa celebra o último dia de descanso assim, na rua. Talvez isso no Porto seja diferente, mais caseiro. Aqui vive-se o sol, bebe-se uma cerveja - tudo finge que amanhã não é segunda. Abraço esta ideia, ignorando que ainda faltam trezentos quilómetros até ao meu Norte.

Vamos ao Topo Chiado (primeira foto, acima) e derretemos a tarde à conversa. Sigo pelo Camões, passo a Assembleia e noto que a noite já me abraça. A hora mudou, penso. 

Descarto uma boleia antes de ir apanhar a mala a casa - uma casa não minha, mas que funciona como porto seguro, de onde avisto todas as aventuras que a cidade me esconde. Memórias que insisto viver.

Texto e fotos: Rodrigo Ferrão

terça-feira, 14 de novembro de 2017

pisaremos as jabuticabas

Nenhum texto alternativo automático disponível.
Adão segura duas folhas - Carla Diacov


não pisaremos as fronteiras
amor dos ombros meus
pisaremos ladeiras clarinetes e balas de goma
mas não as fronteiras
dê cá tua palma esquerda
não pisaremos aqui e nem aqui
não pisaremos o pescoço
mas pisaremos o dorso
nunca a virilha
mas as pernas
dê cá tua blusa
dê cá tua casa
dê cá teu idioma
dê cá tuas paixões
não pisaremos as páginas mas pisaremos os números
amor dos ombros meus
pisaremos as armadilhas o sexo das sombras
a explosão roxa das jabuticabas
sentimentais
pisaremos as jabuticabas
descalços
as jabuticabas




- Carla Diacov, poeta e artista visual. 

* Conheça mais sobre a poeta: https://doudacorreriablog.wordpress.com/tag/carla-diacov/

  e sobre a artista - https://www.instagram.com/diacovcarla/

** este post integra a série assinada por Penélope Martins, do Brasil para Portugal, sob rubrica é do borogodó!

terça-feira, 7 de novembro de 2017

o poema e a poeta

A imagem pode conter: texto

No Brasil, lendo para a ponte, com o Clube de Leitores, a poeta portuguesa, Adília Lopes; eu que sou brasileira e portuguesa de nascença.

É do borogodó a poesia e nossa mátria, a língua portuguesa.

Penélope Martins

terça-feira, 31 de outubro de 2017

detraquê




* Cora Coralina no dizer inzoneiro com Penélope Martins para firmar a ponte Brasil - Portugal, é do borogodó! Um vídeo produzido por Sérgio Silva para a página de leitura #mulheresqueleemmulheres - que convida leitoras mulheres a lerem suas autoras favoritas ampliando a discussão sobre o protagonismo feminino nas artes e nas ciências. 


quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Crónica tripeira de Lisboa: dias felizes e depois o fogo

Porto » Lisboa,
12 | 13 | 14 de Outubro

Logísticas à sexta-feira: sair do Porto implica sempre um golpe de sorte, uma ténue linha entre o que pode ser uma viagem tranquila e a rápida transformação numa carga de lenha - a transportar às costas, depois de uma semana inteira de trabalho.

Sair do emprego a horas, mala já preparada.
Trânsito da cidade - especiais notas para a VCI e ponte da Arrábida.
Apanhar boleias.
As pessoas serem pontuais, no local combinado.
O carro ter o depósito cheio.
Não apanhar trânsito à chegada de Lisboa.
O condutor deixar-nos num sítio central.


Neste fim-de-semana sabia que não ia ver muitos dos meus habituais. É pura coincidência estar um vazio de amigos na cidade, mas vi nisso uma oportunidade de dias mais calmos. É imperativo passear, é obrigatório encontrar pessoas que nos são especiais e voltar ao ponto de conversa anterior, como se tivéssemos estado juntos ontem mesmo.

Saio rumo à capital com essa consciência, num carro a três. O tempo é passado a desbobinar a minha vida recente; nessa arte consigo ser exímio quando me encontro inspirado. As músicas rolam, entre as mais recentes baladas sul-americanas descobertas pelo condutor.

Depois de fazermos um pequeno pit-stop na casa onde eles ficam, seguimos para o XL, na Calçada da Estrela. Aí ficámos dois e, de cerveja na mão, corro o menu a ver o que há. Depois de uma entrada, escolho um bife com um molho supersónico, o meu amigo vai para outro, mais rústico.

Ambos bem servidos, cheios e satisfeitos, garrafa de vinho traçada. A conversa desdobra-se em mil sonhos, mil diagnósticos e prognósticos, algumas conclusões e (in)certezas. E nisto chega a minha prima, o namorado e o amigo que me vai acolher esta noite em sua casa.

O grupo desfaz-se e partimos três para pousar a mala. A dificuldade em estacionar começa a fazer comichão. Depois de mil voltas na Lapa, conseguimos abandonar a viatura no local possível, de legalidade duvidosa. É só o tempo de deixar as trouxas e partir. O rumo habitual é o Zé Tó, na zona do Cais do Sodré. Uber a chegar, siga.

Este café vira uma mega bica de cerveja à noite e é mesmo isso: não mais do que um sítio para uns finos (sim, não me vendo ao conceito de 'imperial'). É lá que qualquer perdido encontra alguém e, ritual que se repete, assim é comigo - o grupo aumenta sempre, concluo.

A noite não é para levar até tarde. Já com muitas despedidas feitas e algumas pessoas perdidas, abandonámos o local a pé. Eu e o meu amigo pomos a conversa em dia, caminhámos até à sua casa. Cais do Sodré, Santos, subir pela Estrela e finalmente Lapa. Transformámos uma curta viagem de táxi em meia-hora de passo lento.

Acordar na Lapa e não ir à Cristal é quase pecado. Que o digam as tias: figuras míticas do imaginário português, de certas zonas do Porto e Lisboa. A revista ¡HOLA! é a mais presente nas mesas das senhoras de cabelo armado, os senhores apostam no Expresso. Lá vejo a Helena Sacadura Cabral, uma habitué desta rua.

Ignoro-as copiosamente, estou mais focado no café (recuso usar o termo 'bica', mas também parece disparate aplicar ali um 'cimbalino') e nos croquetes. Este é o manjar possível quando a manhã vai longa - a dose certa de energia para me fazer à estrada.

Caminho a passo largo pelo jardim da Estrela, há muito que quero ir à Fundação Árpád Szenes-Vieira da Silva, mesmo ali ao lado do Reservatório da Mãe d'Água das Amoreiras, que ainda não conheço. Depois de cruzar o Rato, subo até lá cima e dou uma volta ao jardim, zona por explorar. Potencial não falta: o aqueduto, a maravilhosa capela de Nossa Senhora de Monserrate, encaixada num dos seus arcos. Tudo sítios de uma singela harmonia.


A colecção do museu impressiona-me, anoto nomes. Podia passar horas a falar de tudo o que vi, mas hoje deixo apenas uma referência: Susumu Shingu. Toda a obra de Arpád Szenes e Vieira da Silva é apaixonante, isso já sabia. Mas o museu dá-nos muitos mais artistas, trabalha o nosso imaginário de uma forma difícil de expressar. Só vendo.

Shingu foi o nome que trouxe para casa. Talvez por sair completamente fora daquilo que já vi ou pensei sequer ser objecto de arte. Como não imaginar um futuro em harmonia com a natureza? Talvez eu seja um pessimista crónico e este japonês um visionário!


Desço ao Príncipe Real, hoje é dia de feira e mercado biológico. Observo o corrupio de gente, antes de decidir parar num café de esquina, onde mato uma sande de panado. O meu próximo destino é o Convento dos Cardaes.

Uma voluntária chega para me cobrar os 5 euros do bilhete e me prometer uma visita guiada. E que bem valeu a curta espera, o Convento e a Igreja são absolutamente imperdíveis, um dos sítios mais surpreendentes que Lisboa guarda.

Fundado por Luísa de Távora para alojar religiosas da Ordem das Carmelitas Descalças, o quinto desta ordem em Portugal, todo o espaço é arte. A pedra do túmulo da fundadora está intocada, mesmo depois de movido o processo dos Távoras, por Dom José e o Marquês de Pombal, já no século XVIII. Na verdade, todos os brasões desta família foram picados e destruídos no reino, mas não se sabia que Luísa estava sepultada neste convento, porque estamos dentro de uma ordem de clausura.


Aqui contemplei o estilo maioritariamente barroco da Igreja, mesmo que tenha alguma pintura maneirista. A senhora explicou-me a diferença surpreendente entre os azulejos holandeses da capela (que destacam mais o branco do que o cobalto, com menos preenchimento do espaço) dos azulejos portugueses. A arte da azulejaria portuguesa, posterior, usa mais o cobalto que o branco e ocupa o espaço. Isso é bem visível aqui, um bom exemplo de comparação.

Vejo as colecções que as freiras (geralmente senhoras da nobreza que se convertiam) trouxeram como dote, a riqueza da colecção é formidável. Surpreendente a organização do refeitório, com as mesas próximas das paredes e um grande corredor central. Por fim, os pátios interiores a fazer lembrar alguma influência árabe, com árvores de fruto e água a correr para o centro.

Desço ao Chiado, encontro agora uma amiga. Parámos na Kaffeehaus e gastámos toda a conversa que a distância não consegue resolver e pôr em dia. Passadas umas horas, vamos lentamente em direcção à Assembleia, subindo novamente à Lapa.

De volta a casa, está na hora de ir ao supermercado e organizar o jantar. Duas pessoas trouxeram amigos, alguns trazem cerveja e vinho, umas sobremesas e, de repente, somos dezasseis. Nestes encontros aleatórios aparece sempre alguém que conhecemos de outras bandas e, surpresa minha, o sobrinho de uma professora amiga, de Sacavém, entra em casa com uma guitarra à mão. Ele e o amigo vão-nos dar música, mal o jantar de alho francês à brás termina.

Conversa puxa conversa, risadas altas, alguns pontos de ruído espalhados pela casa. O sarau dura até à última gota de vinho branco e até à última mini guardada no frigorífico.

O destino é novamente o Zé Tó, no cais: a história repete-se. Fazem uma Insta story de mim e publicam, enquanto estou distraído. Só no dia seguinte percebo que me transformaram em coelho.

A noite estica um pouco mais, terminámos num bar da rua cor-de-rosa. Mas a vontade de voltar a casa é maior e seguimos quatro num táxi.

Enquanto a massa de atum se auto-cozinha, vamos tendo conversas metafísicas, mega profundas, com o seu toque espiritual. Durante a cena cinematográfica, o telemóvel passa música, um corpo jaz no sofá, três mosqueteiros aguardam o pitéu. Cenário ajustado para os primeiros raios de sol, assim se cumpre.

Metade do grupo acaba por ir embora e eu, cheio de sono, deito-me por volta das 6.

Domingo arruma-se rápido, há sempre pressa para planear a volta. Desço à Cristal, hoje troco o café por um sumo e aposto em dois croquetes. Já em casa, voltámos a sair para o supermercado. Cozinhámos um belo bife de atum, começámos a preparar as coisas para partir.

Passam algumas horas, aparece um primo num lusco-fusco, para um abraço. Depois apanham-me na Estrela.

Na despedida prometo voltar, como sempre.

Autoestrada rumo a norte e somos obrigados a sair. Já tínhamos passado por um incêndio, mas sabíamos que havia muitos mais. Sem perceber totalmente a dimensão de tudo, mas entendendo a gravidade da situação, chego mais tarde do que habitual ao Porto.

E é então que consigo começar a processar aquilo que vivi. Deixo uma nota no Facebook, no dia seguinte:

Ontem fiquei assustado com a ideia de me desviar de uma autoestrada, sair para a Nacional 1 e ver tudo parado. Perceber que ao fundo havia mais fogos. Acho que perdi a conta por quantos passámos, a certa altura parecia o Inferno de Dante, um clima de bafo apocalíptico.

Parados na saída da Pampilhosa, cortar por estradas secundárias, passar pela Mealhada e ver trânsito de hora de ponta de uma grande cidade. O GPS enviar-nos para Cantanhede, outro incêndio. Passar pela A17 e perceber hoje que há um vídeo que mostra um condutor cercado de chamas em Vagos, por onde passámos antes.

A minha viagem esticada nunca foi de pânico, mas sentia-se um nervoso. O volume de carros era impressionante. Hoje acordei e pensei que atiçar mais uns quantos fogos, ali perto da estrada, podia significar uma tragédia de proporções nunca vistas. A juntar à tragédia que me parece que já estamos a assistir.

Pensar que grande parte destes mortos são pessoas que nunca tiveram nada, que trabalharam uma vida toda. Pensar também nas pessoas que assistiram e sobreviveram: perderam tudo. Sentir que vão ter que ter coragem para continuar.

Tudo isto me dói.

A minha irmã está sem comunicações a espaços, ontem chegou a casa e tinha um manto de cinza na mesa da varanda. Um amigo meu não sabia se ia ficar sem a sua casa de família.

São tantas e tantas histórias nossas a juntar às que nunca saberemos.

Estes são os nossos atentados, basta destes terroristas. É preciso haver responsáveis, é preciso deixar de se assobiar para canto. O mundo e o nosso país continuam a ter mais calor. Não vamos mudar estas notícias se não começarmos nós próprios a mudar alguma coisa.

Texto e fotos: Rodrigo Ferrão

terça-feira, 24 de outubro de 2017

O Cântico dos Cânticos

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" Eu sou a rosa de Sarom, o lírio dos vales. 
Qual o lírio entre os espinhos, tal é a minha amada entre as filhas.
Qual a macieira entre as árvores do bosque, tal é o meu amado entre os filhos; desejo muito a sua sombra, e debaixo dela me assento, e o seu fruto é doce ao meu paladar.
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Levou-me à sala do banquete, e o seu estandarte sobre mim era o amor.
Sustentai-me com passas, confortai-me com maçãs, porque desfaleço de amor.
A sua mão esquerda esteja debaixo da minha cabeça, e a sua mão direita me abrace.
Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, pelas corças e cervas do campo, que não acordeis nem desperteis o meu amor, até que ele o queira."
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* Texto: versículos do capítulo 2, Cânticos de Salomão.
** Imagens do Livro O Cântico dos Cânticos, de Angela Lago. 
Essa grande artista brasileira,  em Belo Horizonte (Minas Gerais),  manteve dedicação imensa para produzir narrativas para crianças, com produção de textos e imagens. Seus experimentos com o livro não cessaram durante toda sua carreira, incluindo uma exploração ampla dos recursos digitais. Seu talento foi e é reconhecido dentro do território brasileiro e em outros países. Pessoalmente, Angela Lago combinava inteligência com elegância numa delicadeza que nada tinha de permissiva, uma vez que era uma mulher atuante na manifestação de seu pensamento filosófico e político. No domingo passado, Angela partiu desse mundo deixando amigos e admiradores com saudades pra sempre.





quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Eu poético: As lágrimas

AS LÁGRIMAS

Naquele dia de manhã
soltas as amarras dos lençóis,
chegas à janela e sentes o calor abrasador.
Esticas as pernas com força para sentir cada músculo
e avistas a cidade ainda serena, também ela a acordar devagarinho.
Pões música enquanto as torradas dançam
e o cheiro do café te entra pelo corpo adentro.
Distraído com as horas, deixas o tempo passar
porque lá fora o futuro espera sempre,
com a ingratidão fria e distante
de nunca aguardar um segundo por ti.
Ouves na rua o amolador, o som do metro cresce e trepa as paredes do quarto.
As gaivotas, num voo nervoso, furam os céus.
Consegues perceber a rotina mágica dos dias,
um a suceder ao outro sem repetir a mesma história.
Vita brevis, ars longa - o teu lugar pequeno na lógica cósmica.

E depois dizem-te que o mundo ardeu
e com ele levou homens, mulheres, crianças.
Ceifou casas, fábricas, carros e jardins.
Animais domésticos e selvagens, campos de trigo, árvores.
Esperanças e vidas de trabalho,
sonhos simples e modestos,
o pouco dinheiro de uma vida,
a subsistência,
o pão do dia-a-dia,
a fé numa outra vida melhor que esta.
A Deolinda, o Joaquim, a Dona Gertrudes,
o pequeno Samuel e a doce Helena.

Apocalipse.
Inferno de Dante.
Terra árida,
sol de cinza.
Portugal.

Tu, cidadão do trânsito,
levas um murro.
Sentes então que há dias e dias,
há imagens que ficam,
há rostos que partem.
Percebes que desaparece tudo,
que os pedaços de chão se apagam,
que o canto madrugador dos melros se silencia
e que fica mais só quem só sempre se sentiu.

Que a chuva nos lave estas memórias.
Que Deus verta, por fim, todas as lágrimas.

Rodrigo Ferrão

Foto: Jornal Público