sábado, 15 de setembro de 2012

Poema à noitinha... Ana Hatherly

Um Calculador de Improbabilidades

«O poeta é
um calculador de improbabilidades limita
a informação quantitativa fornecendo
reforçada informação estésica.
É uma máquina eta-erótica em que as discrepâncias
são a fulgurância da máquina.
A crueldade elegante da máquina resulta da
competição pirotécnica da circulação íntima
e fulgurante do seu maquinismo erótico.
A psicologia do maquinal sabe que basta
que se crie um pólo positivo para que o pólo
negativo surja
ou vice-versa
e as evoluções telecinéticas pela força
das catástrofes desenvolvem suas faculdades
latentes ou absorvem-nas como a esponja absorve
as águas variáveis dos humores
que transforma em polaridade.
O maquinal eta-erótico está em astrogação
curso hipnótico dos polímeros.
Digo com precisão fenomenológica: o maquinal
circula em sua hiperesfera da maneira mais
excêntrica.
Digo e garanto:
o maquinal absolutamente absorve suas águas
variáveis e isso é o seu amplexo.
O maquinal eta-erótico é tu-eu.
O maquinal tu-eu
cuja tarefa árdua não é
definir a verdade está no meio da profusão
dos objectos
e considera o consumo a verdade deslocada
deslocação de grande tonelagem
laboriosa alfaiataria de eros
constante moribunda
e esse opróbrio dispersivo e vexável
indifere a vida esponjosa.
A história agrega a dificuldade essencial
das variáveis e o ensejo das coisas
prática difícil
está para o maquinal como uma indústria apócrifa»


*in "Um Calculador de Improbabilidades", editado pela Quimera.

a-ver-livros: equilíbrio perante Angelica Gerih

O primeiro comboio não passa antes das onze.
Quero lá saber do olhar libidonoso do velho barbudo.
O bode ignora-me. Deve achar que sou um pouco louca.

Equilibro-me nos rails e leio. 
Sou quase feliz.



* para conhecer mais do trabalho de Angelica Gerih é só seguir o link vacioesformaformaesvacio.blogspot.angelica-gerih

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Carta das Outras | livreiro vs Maria Teresa


(primeira carta escrita em papéis de multibanco esquecidos na carteira de ilustre leitora Maria Teresa para Livreiro Rodrigo que se despede da sua profissão de 17 anos)




Caro Sr. Livreiro ou Sr. Rodrigo,

Desculpe a carta nestes papéis dobrados. Mas não aguentei a notícia de sua partida, e estes foram os únicos meios que tinha para escrever-lhe.
Queria pedir-lhe, de forma egoísta e de filha única, que não vá. Quem vai aconselhar-me agora as boas novas palavras? E quem vai dizer-me que não vou gostar ou que já li este ou aquele autor em tempos?? Quem vai ler em conjunto comigo as críticas dos livros sentados naquelas poltronas verdes já gastas no forro e de tantas leituras..?
Acho que o amo.
A si… ou à sua profissão.
Estou envergonhada. A minha tez morena é agora repenicada por um tom rosa.
Não tenho mais papéis… espero que me leve consigo em novas leituras e que perdoe este meu jeito apressado e angustiado de quem segura futuras saudades.

Sua Teresa.


Querida Teresa,

Que surpresa! Adorei estes 4 papéis deixados na minha secretária de madeira abandonada.
Senti-me um ídolo, mesmo que falido. Sei o que sente e partilho-o. Adorava ser livreiro. Esta nova vida que escolhi vai afastar-me dessa rotina de palavras desenhadas mas não roubará as lembranças de cada minuto lido e relido.
Continuarei atento às novas capas.
Ao seu amor por mim… apanhou-me de surpresa. Serei eu assim tão atrapalhado que só leio as entrelinhas nos livros?
O que aconselhá-la a ler depois disto??
Não leia. Venha jantar comigo terça-feira.

Rodri, o seu fiel livreiro

1º Parágrafo: O Marinheiro de Gibraltar


Já visitámos Milão e Génova. Encontrávamo-nos em Pisa há dois dias quando decidi partir para Florença. Jacqueline concordou. Concordava sempre, de resto.


* Tradução de Isabel St. Aubyn

a-ver-livros: no topo com Jose M Capitán del Rio

Na procura de uma montanha alta
do topo da qual ver o mundo
encontrei-te.
Fechado, sem conhecer o que seja
o ar rarefeito da altitude

E, no entanto, levantando uma voz
potente
que alcança os confins da terra


* para conhecer mais do trabalho de Jose M Capitán del Rio, ilustrador espanhol de Granada, é só seguir o link http://bagocapitan.blogspot.pt/

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Livro do mês: "Nunca Me Deixes" e a constante erosão da esperança



"Chamo-me Kathy H. Tenho 31 anos e trabalho há mais de onze como ajudante. Parece muito tempo, bem sei, mas a verdade é que me pediram que continuasse por mais oito meses, até ao final deste ano. Completarei assim doze anos de trabalho. O facto de ser ajudante há tanto tempo não significa necessariamente que me considerem uma profissional excelente. Sei de alguns ajudantes muito competentes que foram convidados a parar ao fim de apenas dois ou três anos. E conheço pelo menos uma ajudante que, apesar de ser uma inútil, trabalhou quase catorze anos. Não pretendo gabar-me de nada. Mas sei que a qualidade do meu trabalho tem agradado aos outros e, em grande medida, a mim própria. Os dadores a meu cargo sempre se saíram melhor do que o esperado, com períodos de recuperação surpreendentemente curtos."

Assim começa "Nunca Me Deixes", o romance de realidade alternativa do japonês Kazuo Ishiguro, que escolhi para leitura conjunta do mês de Setembro. Um primeiro parágrafo que custa a mastigar, não custa? Parece uma côdea de pão seco - mas há qualquer coisa naquele grão que nos impele a continuar. Não sabemos o que aí vem - mas precisamos de saber. 

O tom meio seco da narradora e protagonista, Kathy, começa por causar desagrado. Melhor dizendo, um incómodo. Uma sensação vagamente desconfortável algures no peito. Ao mesmo tempo, serenamente, atrai e, mais adiante, aniquila - fascinante e perturbador.

A seu tempo saberemos que tipo de ajudante é Kathy. A seu tempo saberemos quem são os dadores a que se refere. Até lá, fazemos um percurso por três épocas, percorrendo linha a linha a teia delicada e sinuosa que Ishiguro vai tecendo ante nós neste romance publicado em 2005. Até lá - e não foi por acaso que "Never Let Me Go" [no título original] esteve nomeado para o galardão Book Man Prize, que Ishiguro já tinha arrecadado anos antes com "Despojos do Dia" - vogamos entre recordações de infância, sentimentos vários, impulsos artísticos, traumas, segredos. A vida, em suma. Ou como alguém definiu, assistimos à constante erosão da esperança.

Claro que posso oferecer-vos o resumo 'pop-pastilha' deste livro: três amigos de infância protagonizam um triângulo amoroso. Ponto final. Este 'bacalhau' basta para quem lê como se estivesse a tentar bater um qualquer recorde do Guiness, como agora parece ser moda. Lê-se por aí como quem está numa fábrica a aviar molas para colchões. Mas este é um livro para saborear. E que nos deixará tudo menos indiferentes. 

O crítico M. John Harrison escreveu no "The Guardian": "Nunca Me Deixes dá-nos vontade de ter sexo, tomar drogas, correr uma maratona, dançar - qualquer coisa que nos convença de que estamos vivos, mais vivos, mais determinados, mais conscientes, mais perigosos do que qualquer dos seus protagonistas. (...) Este livro é sobre a razão pela qual não explodimos, pela qual não acordamos um dia e desatamos a descer a rua, chorando e soluçando, pontapeando tudo no nosso caminho, apenas pela crua e enfurecedora lucidez de que as nossas vidas nunca foram o que poderiam ter sido".

Se isto não vos faz correr para o volume alaranjado e começar a devorá-lo, não podem dar-se ao luxo de se considerarem verdadeiros leitores.

1º Parágrafo: Memórias de um Assassino Romântico


Tudo começa com uma encomenda. O cliente entra-me pelo escritório adentro e diz ao que vem. Depois, é o trabalho de campo: rotinar o alvo, escolher o local, a hora, esperar, e por fim o tiro. Só um. E até quando o cliente falta, mas eu meto na cabeça que alguém se encaixa bem no perfil, também serve e cai na mesma.


* Carlos Ademar nasceu em Vinhais, em 1960. Em 1987 entrou para a Polícia Judiciária, onde exerceu durante quase duas décadas a actividade de investigador criminal na Secção de Homicídios.

a-ver-livros: ao almoço com Joseph C. Leyendecker

Noutro tempo
falavas de amor e bondade
e fazia sentido

Depois li a tua alma
como um livro
e encontrei gralhas
e incongruências

Arrumei-te na biblioteca
da minha memória


Talvez o pó te transforme 
na essência bonita de ti


* para conhecer mais da pintura do americano Joseph C. Leyendecker é só seguir o links  www.glbtq.com/arts/leyendeckerwww.encore-editions.com/categories/joseph-c-leyendecker

 

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

«O testículo» (sim, leram bem) - num livro de Philip Roth

Estou a ler «O Complexo de Portnoy» (é o livro que deixo no carro para as "emergências") e a achar hilariante o monólogo da personagem principal. Vejam bem porquê:

"A dado momento do meu nono ano de idade um dos meus testículos resolveu, aparentemente, que estava farto de viver no escroto e iniciou a sua deriva para norte. A princípio eu sentia-o saltitar, ainda hesitante, no rebordo da bacia - e depois, como se tivesse passado o momento de hesitação, a entrar na cavidade do meu corpo, como um náufrago içado das águas do mar para dentro do casco de um salva-vidas. E aí se aninhou, finalmente seguro, atrás da fortaleza dos meus ossos, deixando o seu companheiro temerário arriscar-se sozinho nesse mundo de rapazes, feito de chuteiras de futebol e paus de cerca pontiagudos, de pedras, paus e canivetes, de todos esses perigos que punham a minha mãe doente de apreensão, e contra os quais fui avisado e mais do que avisado. E tornado a avisar. E avisado outra vez. E outra vez.

E outra vez.

Portanto, o meu testículo esquerdo foi morar nas imediações do canal inguinal. Carregando com o dedo na dobra entre a púbis e a coxa, ainda conseguia, nas primeiras semanas do seu desaparecimento, sentir a curva da bola gelatinosa; mas vieram depois noites de terror, em que sondei em vão as minhas entranhas, procurei até cá acima, à caixa torácica - mas para minha desgraça o viajante partira rumo a paragens inexploradas e desconhecidas. Para onde teria ido? Até onde, até quando continuaria a viagem? Não correria o risco de abrir um dia a boca para falar na aula e de descobrir o meu tomate esquerdo na ponta da língua? Na escola cantávamos, com a nossa professora, Sou Senhor do meu destino, sou o Capitão da minha alma, e, entretanto, dentro do meu próprio corpo, uma das minhas partes pudendas lançara uma insurreição anárquica - que eu não conseguia dominar!" 

1º Parágrafo: Cão em Fuga


Aqui não vais encontrar gente comum. Não depois de escurecer, por estas ruas, sob os beirais dos velhos armazéns. Sabes isso, claro. A ideia é essa. É por isso que estás aqui. Rajadas de vento vindas do rio agitam a poeira dos edifícios em demolição. Junto ao paredão, vagabundos acendem fogueiras em bidões enferrujados. Podes vê-los agrupados, envoltos em toda a sorte de roupa resgatada ao lixo, casacas, camisolas ou qualquer combinação de ambas. Há camiões estacionados junto aos armazéns, alguns deles ocupados, homens que fumam na sombra, à espera que os homossexuais saiam dos bares em redor do Canal Street. Estugas o passo, embora não para escapar ao frio. Gostas deste vento cortante. Dobras uma esquina e mergulhas brevemente nele, sentindo as tuas coxas agradavelmente modeladas sob o tecido esticado. Estilhaços de vidro brilham como mica branca nos lotes vagos. O rio tem um odor a almíscar esta noite.


* Tradução de José Miguel Silva
* Revisão de texto de Joana Serafim
* Capa e foto da capa: Carlos César


a-ver-livros: sonhando com John Tarahteeff

Deito a cabeça no colo 
das tuas palavras,
sonho as linhas com que coses o meu âmago 
delicadas e insanas

acordarei um dia
talvez em Setembro 
e saberei de cor a tua alma


* para conhecer mais da pintura do americano John Tarahteeff é só seguir o link  www.sdgallery.com/catalogs/tarahteeff

terça-feira, 11 de setembro de 2012

O Clube volta ao Bairro!

Depois de termos integrado o Bairro dos Livros, em Julho, o Clube de Leitores volta a participar neste evento da CulturePrint, agora na sua edição de Setembro, que vai decorrer já nos dias 21, 22 e 23 deste mês nos Jardins do Palácio de Cristal, no Porto. E de uma forma ainda mais activa. 

Nos vários espaços da Avenida das Tílias, por exemplo, a equipa Clube de Leitores vai realizar a intervenção de rua Peregrinos da Leitura, que levará a palavra escrita aos visitantes, fazendo leituras individuais, divulgando poesia e prosa. 

Além disso, vamos fazer ainda sessões de Cadáver Esquisito. Uma decorrerá ao longo dos três dias, recolhendo participações avulso, que serão reveladas no total no domingo. Outra terá lugar no Poetry Corner na noite de sábado. Ambas serão depois divulgadas no blog bem como nas páginas de Facebook a ele ligadas. 

Também no sábado e no mesmo local, pelas 15 horas, terá lugar o lançamento a norte do livro “A Solidão dos Inconstantes” da autora Raquel Serejo Martins, nossa colaboradora aqui no blog. 

Mais detalhes irão surgir nos próximos dias. Fiquem atentos! 





1º Parágrafo: O Velho e o Mar


Era um velho que pescava sòzinho num esquife na Corrente do Golfo, e saíra havia já por oitenta e quatro dias sem apanhar um peixe. Nos primeiros quarenta dias um rapaz fora com ele. Mas, após quarenta dias sem um peixe, os pais do rapaz disseram a este que o velho estava definitivamente e declaradamente salao, o que é a pior forma de azar, e o rapaz foram por ordem deles para outro barco que na primeira semana logo apanhou três belos peixes. fazia tristeza ao rapaz ver todos os dias o velho voltar com o esquife vazio e sempre descia a ajudá-lo a trazer as linhas arrumadas ou o croque e o arpão e a vela enrolada no mastro. A vela estava remendada com quatro velhos sacos de farinha e, assim ferrada, parecia o estandarte da perpétua derrota.



* Tradução de Jorge de Sena

a-ver-livros: um abraço com Daire Lynch

Importa o que se lê?
Importa se as letras que se juntam 
falam de algo que morreu
de passados que passaram
de futuros que não se sabe se teremos?

Importa se a sequência em que se completam 
ilustram estados de alma 
paixões rasgadas
ou meros reflexos de luz numa gota de água 
que se equilibra perclitantemente
numa pétala?

Importa se as palavras se aninham
umas nas outras
para simular o teu abraço?


* para conhecer mais da pintura da irlandesa Daire Lynch é só seguir o link richardkiernan.com/daire

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

o Senhor MendeS

No mês, Fevereiro, em que fez 78 anos, o senhor Mendes, engraxador na Rua do Carmo desde os 12 anos, regressou à sua aldeia em Trás-os-Montes.
E não era a mesma aldeia, as casas desbotadas, os telhados desdentados, os vasos nas varandas vazios, as tílias no Largo secas e mirradas.

Não era o mesmo senhor Mendes, antes um menino moncoso e de pés descalços, agora um senhor de chapéu de velcro e sapatos irrepreensivelmente engraxados.

Continuando, no mês, Fevereiro, em que fez 78 anos, o senhor Mendes, engraxador na Rua do Carmo desde os 12 anos, regressou à sua aldeia em Trás-os-Montes e concretizou um sonho antigo: abriu uma livraria.

Uma livraria pequena no rés-do-chão da casa que herdou do pai.
O pai que o mandou servir para Lisboa, “Onde fica Lisboa?”, para o proteger da fome e do frio, “Vai para tão longe o menino!”, “Da fome e do frio quanto mais longe melhor.”
Uma livraria: duas paredes forradas a estantes, as estantes cheias de livros e, na montra, os livros que o senhor Mendes mais gostava.
Vários Camilos, um Calvino, um Pavese, lembrou-se que, se fosse vivo o Pavese teria a sua idade, um Dario Fo, um Tolstoi, tinha que ter um Tolstoi, mais os dois que acabou de ler, um Tabucchi, “Definitivamente gosta de italianos.” pensou, e um português, “Como se chama?”, um sujeito médico de profissão, a exercer no Miguel Bombarda, um livro de que muito gostou, apesar do título, em referência explícita e directa aos fundilhos do discípulo que por trinta moedas de prata entregou o criador aos bandidos.
Há pessoas que simplesmente não têm qualquer jeito para o negócio.
No mês, Fevereiro, em que o senhor Mendes fez 78 anos, foi a primeira vez que o Pedro, já com 17 anos, viu uma montra cheia de livros, uma livraria.
Antes apenas os livros da escola, da escola primária, não mais e não toda, até à terceira classe, e não feita, livros que de pouco lhe serviram pois, o pouco que aprendeu já desaprendeu.
Assinava o nome, primeiro e último, em bom rigor, desenhava o nome, não sabia desenhar, de resto, mal sabia ler e escrever, e as contas, para lá das centenas, outra aflição.
Passaram seis meses e o senhor Mendes não vendeu um único livro.
Passaram seis meses, em que todos os dias o Pedro passou pela montra da livraria à procura de livros novos. Procurava-os não pelo título ou pelo autor, que por mal saber ler não se esforçava por ler, mas pelas capas que o faziam viajar e supor histórias.
Sabia que os livros tinham histórias dentro.

Todavia, o tempo pode mudar mas não parar.

Passaram mais seis meses e o senhor Mendes sem vender livro nenhum.
Tudo somado passou um ano, o senhor Mendes agora com 79 anos, “Se o Pavese fosse vivo teriam a mesma idade.”,  79 anos e, há falta de mulher que o apoquentasse e lhe mostrasse os defeitos da sua situação, começou o senhor Mendes a moer-se a si próprio.
A pensar no que deveria fazer para remediar a situação, apesar da situação lhe agradar. Agradava-lhe o passar os dias rodeado de livros, o ter já dois gatos, o Camões e o Torga, por companhia e há dois meses um ajudante.
E não é que precisasse de ajuda, era que, apesar das arrelias, gostava das tardes na companhia do rapaz.
E o rapaz tem as tardes desocupadas porque as noites são os seus dias de trabalho e as manhãs as suas noites de sono, é padeiro.
O mesmo rapaz que pontual como as Avé Marias do sino da Igreja (não são pontuais, estão doze minutos atrasadas, mas é o sino da aldeia que marca as horas na aldeia, pelo que as televisões da aldeia perdem sempre os primeiros doze minutos do telejornal), todos os dias, cinco minutos, parava para apreciar os livros na montra.
O senhor Mendes não demorou cinco minutos para perceber que o rapaz, um homem feito, mal sabia ler.
Como um Quixote, namorou-o todo o Verão, e nem uma vez, apesar de todos os dias um convite, o Pedro entrou na livraria.
Perceber-lhe o medo atiçou-lhe a vontade.
Apresentou-lhe personagens, a Bovary do Flaubert, a Gabriela e a Dona Flor do Amado, o Velho do Hemingway, a Karenina do Tolstoi, a baleia do Melville, o Huckleberry Finn do Twain, o Ega do Eça, a Brísida do Vicente, a Gertrudes do Hesse, o Mr. Darcy da Austen.
Apresentou-lhe os autores, contou-lhe feitos as fraquezas, o Hemingway que combateu contra os franquistas, o mesmo Ernesto que com um fuzil de caça terminou com a própria vida, o Byron que tinha um pé torto, apesar de ninguém saber dizer se o direito, se o esquerdo, o Amado que gostava de bolas de Berlim, mas não umas bolas quaisquer, as bolas do Natário, um café sito em Viana do Castelo, que assim ganhou fama e mais proveito.
O Pedro encantado e relutante mantinha-se, como árvore ou arbusto, não planta dentro de vaso à qual escolhemos janela ou varanda, do lado de fora da porta da livraria, pelo que, chegado Agosto, o senhor Mendes viu-se obrigado a comprar um chapéu, uma palhinha que lhe protegesse a moleirinha da torridez solar para manutenção diária das conversas.
Até que um dia de Outono já com um frio de Inverno, o senhor Mendes resoluto, decidiu que não arriscava uma gripe por causa do rapaz e pensou, mudando de táctica contra o cagaço, bagaço!
A frase era do pai, e fazia parte do diminuto espólio de memórias que guardava do pai, memórias que se reduzem a meia dúzia de gestos e frases, lapidares como provérbios, e não provérbios, por vezes quase o contrário de provérbios, mas de múltipla aplicação, pelo menos o pai assim as aplicava.

No inferno não encontramos contrabandistas.
Aos mortos não é preciso tirar medidas.
Burro só é velho quando pára de aprender línguas.
Só quem se deita na cama conhece a escuridão do quarto.
Os olhos são as candeias do corpo e alumiam duas vezes.
Nem todas as mãos dominam a arte de arrombar portas. Quem diz portas, diz janelas, diz ouvidos, estômagos ou corações.
Só se as andorinhas regressarem no natal, é que podem dizer que o mundo ficou de patas para o ar.

O pai a chegar a casa depois de um dia de campo de sol a sol, a livrar a burra dos arreios, a afagar-lhe o lombo, a chegar-lhe um balde com água fresca.

E agora nem pai nem burra nem nada.

O senhor Mendes espantou os maus pensamentos, repetindo a estratégia, contra o cagaço, bagaço, e um dia de Outono já com um frio de Inverno, foi o primeiro dia do Pedro dentro da livraria, uma vez que, incapaz de recusar o convite para partilhar um copo, entrou vencido.
Ao segundo bagaço, já embalado, o senhor Mendes contou-lhe a história da sua vida.
Não havia muito para contar.
Engraxador desde os doze anos, portanto 66 anos a engraxar sapatos, a dúzia e meia de sapatos por dia, um ano tem 365 dias, pelo que dá, dá, dá 433.620 pares de sapatos.
O Pedro deslumbrado, apesar de, deslumbrado com qualquer número que resultasse dos cálculos do senhor Mendes, porque para si, qualquer um válido.
Contou-lhe porque não casou e, com sinceridade disse, falta de vontade e paciência. A paciência roubou-lha toda uma primeira namorada da qual já não se lembra o nome, uma paciência consumida em milhares de horas, minutos, segundos, que não foram milhares, mas que hoje lhe parecem milhões, milhões de segundos à espera, não se lembra de quê, e dois beijos sumidos que não sabe se deve ou pode classificar como beijos. Uma namorada que o deixou porque um sujeito bem menos paciente, a engravidou em menos de uma lua. À data ainda pensou, como bom trasmontano, limpar-lhe o sebo, hoje ri-se do facto, da afoiteza, da ingenuidade simples de ter pensado no gesto.
Depois da rapariga sem nome, “Como é que ela se chamava mesmo?, Aida, Adília, Adélia?”, veio a Efigénia, uma puta do Cais do Sodré mais conhecida que as putas, um doce de senhora, com um grau de transparência e ingenuidade inesperado, que lhe resolveu as primeiras núpcias e todas as que se seguiram, porque não conheceu outra mulher.
E a vida não era má, o clima de Lisboa bom, o comboio para Caxias, a casita, os sapatos para engraxar, livros para ler, a Efigénia.
A primeira vez que teve um livro nas mãos, Os Fidalgos da Casa Mourisca.
Anda à porta da pensão com Efigénia, o cliente seguinte do mesmo quarto, com o qual se cruzou nas escadas, a entregar-lhe o livro deixado perdido na mesinha da cabeceira.
O livro é seu?
Pode ser. – Respondeu. Enfiando-o no bolso do casaco.
Em bom rigor o senhor Mendes, já com 17 anos feitos, mal sabia ler, mas depois do esforço e dedicação, da muita curiosidade por desvendar as linhas, não pensava nas palavras, pensava nas linhas, aprendeu a ler, e a leitura transformou-se em vício.
Que há quem os tenha para todos os gostos, beber, fumar, jogar, mulheres, cavalos, carros, berlindes, alfinetes e até sapatos.
Tive um cliente que engraxava todos os dias a quem, em mais de 50 anos, nunca viu um par de sapatos repetidos!
Depois a Efigénia morreu.
Não o devia dizer, mas chorei-a mais do que à minha mãezinha.
Também pudera, se saí de casa com 12 anos e depois disso não a vi uma dúzia de vezes.
Isto é o que tem de bom ser velho, podemos dizer o que nos apetece.
A gaita é que é a única coisa que tem de bom ser velho, mais nada.
E pronto, depois da Efigénia não havia mais para contar, assim não contou da resolução solitária das necessidades do corpo, de uma operação ao apêndice, da diabetes, das cataratas nos olhos.
Depois o Pedro contou que era filho e neto e provavelmente bisneto e trineto de padeiros.
Que deixou a escola em evasão, em fuga, do tamanho, do comprimento, do volume, da espessura, da consistência do terror que se vivia dentro das quatro paredes da sala de aula.
Todos os motivos serviam para justificar uma falta.
À data dispunha de várias técnicas que em menos de trinta segundos colocavam um termómetro nos 39, 40 graus Celsius.
Tudo por causa da bate-chapas, a professora que metodicamente o atormentou durante os cinco anos de escola primária, os mesmos cinco anos que não foram suficientes para concluir a terceira classe.
Não explicou porque é que lhe chamavam bate-chapas, por lhe parecer ser óbvia a dedução.
E de amores?
O Pedro corou.
Corou e pensou que o tema não servia para conversa de machos, mas como o senhor Mendes tinha idade para ser seu avô, ou isso ou o quarto bagaço, respondeu.
Quem eu quero não me quer.
Quer dizer, acho que gosto da nova professora primária, quanto mais a afasto dos pensamentos mais a penso, já viu a minha sorte, eu embeiçado pela substituta da bate-chapas.
E porque é que não a convidas para um passeio, depois um lanche. Bolo de chocolate, não conheço rapariga que não goste.
Era só o que me faltava.
Porque não Pedro?
Porque não.
O senhor Mendes percebeu que estava a enfiar o dedo na ferida e, para não escarafunchar, mudou de assunto.
E assunto foi coisa que não lhes faltou, uma vez que a conversa durou até de madrugada, durou até que o Pedro percebeu que tinha faltado ao trabalho, e cheio de pressa para levar um raspanete do pai, despediu-se do senhor Mendes.

No dia seguinte, pontual como as Avé Marias do sino da Igreja (não são pontuais, estão doze minutos atrasadas), o Pedro em frente à montra da livraria.
O senhor Mendes não à porta, dentro da livraria, atento aos pés e aos passos do Pedro, e o Pedro a entrar na livraria, sem ser empurrado nem precisar de convite.
O mesmo dia em que o senhor Mendes contratou os serviços do Pedro.
Do contrato, verbal, constavam apenas três cláusulas:
Que era da sua obrigação manter as estantes limpas e arrumadas.
Que, derivado das cataratas do senhor Mendes, tinha que proceder todos os dias, pelo período mínimo de quarenta minutos, à leitura de contos, novelas, romances, ensaios, autos, odes, poemas, jornais, almanaques e etc.
Que aos Sábados, porque os Domingos não eram dia de pão fresco, tinha que lhe fazer companhia em dois bagaços, três se dia de festa.
E assim passaram quatro estações.
O senhor Mendes fez 80 anos, “Se o Pavese fosse vivo teriam a mesma idade.”
Quatro estações, um ano.
Um ano, no fim do qual, o senhor Mendes a vender o oitavo livro.
O Pedro a comprar, pela primeira vez, um livro.
Um livro para oferecer.
Para oferecer à primeira pessoa por quem se apaixonou.
Tudo novo.
No mesmo dia, a substituta da bate-chapas, já agora, de nome Cecília, depois do lanche, bolo de chocolate, recebeu um livro, um Camilo, sugestão do senhor Mendes, infalível para inflamar paixões, disse enquanto piscava um olho.
E Cecília, a substituta da bata-chapas quase chorou, porque foi a primeira vez que lhe ofereceram um livro, para mais embrulhado em papel de cetim e com uma fita vermelha.
 
Raquel Serejo Martins