Joana, não D’Arc, mas D’Arte,
ajeitou os revoltos cabelos que teimosamente caíam para os olhos.
Sempre que se
apresentava, Joana D' Arte, lá vinham os trocadilhos e risadas:
- D’Arte? Não é D’Arc?
Agora já nem ligava.
Houve tempos, em que essas observações faziam-na maldizer o dia em que o pai,
pintor e escultor, lhe atribuiu tal nome.
Leonardo D’ Arte, nascido no seio de uma
família próspera e pouco convencional, desde cedo mostrou que os caminhos que
percorreria seriam de todo diferentes do resto da prole.
Em criança fugia do
Colégio e, sem que ninguém desse conta, pintava com o giz colorido, surripiado
nas aulas, as paredes brancas do enorme muro que envolvia o Colégio. Muitas
foram as horas do recreio passadas de esponja na mão, desfazendo o que tão inspiradamente, tinha pintado.
Nestas alturas, em revolta silenciosa, pensava para com os seus botões:
- Vai chegar um dia em
que a minha pintura será isolada com plástico para que a chuva e
o vento não a estrague. E, nessa altura, quando todos a quiserem ver, vou pegar
em tinta branca e apagar tudo… tudinho. Não me chame Leonardo D’ Arte!
Passaram os anos. Leonardo D' Arte foi amadurecendo: o corpo e a loucura de pintar paredes brancas.
Já homem de família, colocava pão na mesa com o ordenado de professor universitário. Cumpria
religiosamente as suas obrigações, algo
surpreendente para a restante família que sempre julgou que o futuro de Leonardo D' Arte seria a prisão, tal era a loucura que o acompanhava.
Nas horas que lhe
sobravam do dever, dedicava-se ao fazer: fazer pinturas em todas as paredes
brancas que encontrava. E, já sem o castigo de pegar numa escova e limpar,
começava a adquirir estatuto de pintor.
Tinha uma paixão secreta: muros brancos.
Joana D’ Arte, dos 3
irmãos, era a mais nova e aquela com quem o pai encontrava mais afinidade.
Desde cedo que Joana dava sinais de algum fascínio por... claro... paredes e
muros brancos.
Um dia, Leonardo D’ Arte
foi chamado ao Colégio, ao mesmo onde tinha estudado. Sim, porque ele era louco,
mas sabia o quanto era importante a formação académica dos filhos no futuro.
Continuou a tradição familiar de colocar os filhos no melhor Colégio da cidade.
A Directora, mulher
robusta e de poucas palavras, pô-lo ao corrente das tendências “pouco normais”
de Joana D' Arte. Pegava nas canetas de feltro, as mais coloridas, e pintava o
mural branco do colégio.
Foi nesta altura que
Leonardo D' Arte percebeu que tinha, na sua descendência, alma gémea. Desde dessa
altura, os momentos melhores da sua vida eram passados em frente de um muro
branco; tintas coloridas, muitas, pincéis e Joana D’ Arte.
Quem olhasse diria que
ali estavam duas pobres almas perdidas na sua loucura. Em silêncio, quase em
estado hipnótico, pintavam mil cores, mil formas e, no fim, depois da obra completa,
viravam as costas e nem olhavam para ver o resultado. Era assim, invariavelmente
que Leonardo e Joana D’ Arte, faziam Arte.
Uma noite Leonardo D’
Arte entrou de rompante no quarto da filha e sem pudor, olhou para ela, nua,
feita mulher. Viu uma lindíssima mulher, de corpo bem torneado, seios duros com
os mamilos hirtos. Pernas longas, terminando numa anca bem acentuada. Os cabelos
ondulados, longos a cair pelas costas... de repente, imaginou estar perante um nu de Klimt e
sentiu um prazer enorme, quase proibido. Percebeu que a menina de caracóis tinha-se transformado numa mulher sensual, selvagem, fonte de muitos pecados.

-
Veste-te. Anda... descobri o paraíso!
Joana da Arte nem
precisou de questionar nada. De imediato, vestiu umas calças de ganga, uma
t-shirt branca, e colocou a echarpe. Este acessório era imagem de marca. Nunca
saía sem uma echarpe. Tinha tantas quantos muros e paredes brancas que tinha pintado. Por cada muro, por cada parede, uma echarpe. Hoje levava uma de seda, lisa, da cor do fogo. A sua cor... fogo por fora, fogo por dentro.
A noite estava vestida de
prata. Era verão. Uma lua cheia banhava
o rio e conferia-lhe um ar quase surreal. As ruas à beira-rio estavam cheia de
pessoas. Nas esquinas, grupos de jovens riam por tudo ou por nada. Mais à
frente, um casal dava largas ao desejo e mesmo ali, no meio da rua, beijavam-se
apaixonadamente.
- Isto é que é vida Joana
– disse o pai – isto sim... como se não houvesse amanhã.
Subiram por uma estreita
rua, de passeios quase inexistentes. Os prédios que a acompanhavam eram velhas relíquias, umas recuperadas, outras caindo aos pedaços. As janelas, sobreviviam
ao tempo com grades torneadas, cheias de beleza. Finos cortinados escondiam a
intimidade de cada uma. De vez enquanto, uma janela entreaberta, deixava sair o
som de vozes, música ou simplesmente o silêncio que lá habitava.
Após uma longa caminhada,
Leonardo D’ Arte abre os braços e exclama:
- Voilá, chegámos!
À sua frente um muro
enorme, de textura irregular, pintado... pintado????
Joana de Arte ficou a
olhar incrédula: então o paraíso não era um enorme muro branco? O paraíso para
o pai tinha mudado e achou tal facto tão aberrante que não conteve o seu
estado de choque:
- Pai, mas isto está pintado. Ainda por cima
com um enorme coração de cores berrantes. Não é um muro branco - e frisou bem a
última expressão.
- Pois não e, por isso
mesmo, é o paraíso - responde-lhe em total euforia.
Joana D' Arte há muito
que se tinha ambientado a estes momentos explosivos do pai. De coisas tão insignificantes,
dava largas à emoção e num contentamento quase infantil, ria, cantava, dançava.
Percebeu naquele momento
que não valia a pena argumentar. Esperaria que o pai lhe explicasse a suposta
incongruência em que tinha caído.
- Hoje, quando vi isto,
escondi as latas de tinta e os pincéis atrás do muro. Não vínhamos carregados
com isso... iam-nos chamar loucos!
Joana D' Arte deu uma
estridente gargalhada. Achou delicioso o pai dizer isto. Loucos eram eles, com
ou sem latas na mão.
E, pela noite fora, pintaram de branco quase incandescente, um paraíso que tinha um coração pintado de cores quentes, como a
noite de verão....
...
Olhou o pequeno espelho
que trazia na carteira.
Estava com um ar cansado,
mas retocou a maquilhagem para esconder as noites sem dormir.
Desde da partida do pai
que não dormia bem. Sentia falta das noite sem dormir em que pintavam muros
brancos. Nessa altura o sono era compensado pelo sonho de pintar junto do pai .
Saiu do aeroporto e sem
pressa caminhou para a rua.
Não tinha pressa.
Nunca se importou com relógios, horas. Tinha
aprendido que o tempo é aquele que se faz, dentro de nós e não o espatilho de
um tique-taque que nos conta os minutos de vida. E, naquele dia, especialmente
naquele dia, queria esse tempo, aquele que o pai tão ardilosamente, tinha
cultivado dentro dela.
- Para onde? –
pergunta-lhe o taxista
Apeteceu-lhe dizer – Para
o muro branco. Mas sabia que isso era apenas destino dela, não de um taxista.
Rolaram pela cidade.
Estava tudo diferente.
Avenidas novas, auto-estradas, prédios altos vestido de vidro e aço e pressa
à solta dentro de carros que voavam. Sentiu o cheiro a escravidão do tal tempo,
que nunca foi o dela, nunca foi de Leonardo D’Arte.
- Aqui por favor. Quanto é?
Paga e sai.
Sente de imediato a
presença dele. Sempre foi assim, desde que partiu.
E, pela primeira vez,
desde que começou a pintar muros brancos com o pai, vê!
Nunca olhavam para a
pintura que faziam... nunca; mas hoje, quebra o ritual e, à distancia de um olhar, vê o muro que numa noite quente ao luar, Joana D’Arte e Leonardo D’Arte,
pintaram o paraíso de branco celestial.
Leonardo D’Arte era um
menino que coloria muros brancos e um dia, já homem, coloriu de branco um muro. Em sua memória nasce agora uma planta junto ao seu coração.
Joana D’Arte sorriu... estava
tudo certo... estava tudo perfeito.
Ajeitou a echarpe hoje branca... deixou-se ficar!
Algures por ali, Leonardo D’arte ri, salta, dança com uma lata de tinta
branca na mão.
Elsa Martins Esteves