...perguntaste-me se tinha fome, disse que tinha fome de ti, dos nossos silêncios nocturnos, da hora do xadrez depois do jantar, da chegada dos nossos amigos ao serão, de sairmos os dois, abafados de casacos, juntinhos no banco de trás do carro oficial, mudos, serenos, despreocupados, mirando as luzes do Rato, descendo a Alexandre Herculano, atravessando a Avenida da Liberdade, subindo o Conde Redondo, desembocando na Graça, no Botequim da Natália Correia, que assomava à porta entre o fumo largo da boquilha, ordenando a um par de estudantes, ao modo de mãe, que se levantasse e nos cedesse a mesa, far-nos-ia companhia pela noite dentro, era a nossa madrinha, fora ela que combinara o nosso encontro na Varanda do Chanceler, um almoço, dissera-te ser eu uma princesa nórdica adormecida...
...disseste-me, havemos de passar uma noite inteira com a Natália, fecharemos o Botequim com ela, eu ri, afaguei-te o nariz, sujo de um cisco de cigarro, que apagavas no cinzeiro do assento, não pode ser, disse, a Natália fecha o bar às cinco da manhã e fica na rua a falar com as prostitutas, trata-as por dignas vestais de Afrodite, a deusa do amor, oferece-lhes dinheiro para elas irem para casa e elas, envergonhadas, nada tendo que retribuir, perguntam-lhe se quer que o chulo delas a satisfaça, a Natália abre a bocarra de madona e, carregando no sotaque açoriano, que as faz rir às gargalhadas histéricas, clama que de homens tem a vida cheia, já casou com quatro, enviuvou de um, namorou com mais três e concluiu que a força do mundo, a rosa mística que faz girar a humanidade, não pertence aos músculos dos homens, mas à ternura das mulheres – sede mulheres, fazei filhas às carradas, para mudarmos o mundo – rimo-nos...
