sábado, 18 de fevereiro de 2012

in O Último Minuto na Vida de S.

...perguntaste-me se tinha fome, disse que tinha fome de ti, dos nossos silêncios nocturnos, da hora do xadrez depois do jantar, da chegada dos nossos amigos ao serão, de sairmos os dois, abafados de casacos, juntinhos no banco de trás do carro oficial, mudos, serenos, despreocupados, mirando as luzes do Rato, descendo a Alexandre Herculano, atravessando a Avenida da Liberdade, subindo o Conde Redondo, desembocando na Graça, no Botequim da Natália Correia, que assomava à porta entre o fumo largo da boquilha, ordenando a um par de estudantes, ao modo de mãe, que se levantasse e nos cedesse a mesa, far-nos-ia companhia pela noite dentro, era a nossa madrinha, fora ela que combinara o nosso encontro na Varanda do Chanceler, um almoço, dissera-te ser eu uma princesa nórdica adormecida...

...disseste-me, havemos de passar uma noite inteira com a Natália, fecharemos o Botequim com ela, eu ri, afaguei-te o nariz, sujo de um cisco de cigarro, que apagavas no cinzeiro do assento, não pode ser, disse, a Natália fecha o bar às cinco da manhã e fica na rua a falar com as prostitutas, trata-as por dignas vestais de Afrodite, a deusa do amor, oferece-lhes dinheiro para elas irem para casa e elas, envergonhadas, nada tendo que retribuir, perguntam-lhe se quer que o chulo delas a satisfaça, a Natália abre a bocarra de madona e, carregando no sotaque açoriano, que as faz rir às gargalhadas histéricas, clama que de homens tem a vida cheia, já casou com quatro, enviuvou de um, namorou com mais três e concluiu que a força do mundo, a rosa mística que faz girar a humanidade, não pertence aos músculos dos homens, mas à ternura das mulheres – sede mulheres, fazei filhas às carradas, para mudarmos o mundo – rimo-nos...

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

in As velas ardem até ao fim

Cruza os braços no peito e fala com a impassibilidade e a indiferença com que descreveria as circunstâncias de um acidente na esquadra da polícia.

- Eu estava em frente do piano e olhava para as orquídeas – diz depois. – Essa casa era como o disfarce de uma pessoa. Ou talvez o uniforme fosse o disfarce para ti? És o único a poder dar resposta a isso, e agora como já tudo passou, deste a resposta com a tua vida. Afinal, uma pessoa sempre responde com a sua vida inteira às perguntas mais importantes. Não importa o que diz entretanto, com que palavras e argumentos se defende. No fim, no fim de tudo, com os factos da sua vida responde às perguntas que o mundo lhe dirigiu com tanta insistência. Essas perguntas são as seguintes: Quem és tu?... Que querias realmente?... Que sabias realmente?... A que foste fiel ou infiel?... A quê ou a quem mostraste ser corajoso ou cobarde?... São essas as perguntas. E uma pessoa responde como pode, duma maneira sincera ou mentindo; mas isso não tem grande importância. O importante é que no fim, uma pessoa responde com toda a sua vida.


A minha estreia na apresentação de livros... Com Ana Paula Oliveira

Um dia recebi esta mensagem:

Boa noite:

Não nos conhecemos, a não ser do facebook, mas conheço e sigo o seu blogue. Não querendo ser atrevida nem inoportuna, venho fazer-lhe um convite: a editora Calendário de Letras pretende fazer uma apresentação do meu segundo livro "O Santo guloso" na FNAC do Gaiashopping, no próximo dia 26, pelas 11h30. Seria uma honra para mim se aceitasse fazer a apresentação. Caso não aceite, compreendo e não levo a mal, só espero que me perdoe a ousadia.

Cumprimentos.
Ana Paula Oliveira


Acham que perdoei?


Fiquem com as palavras da autora e conheçam a sua obra. Para mim é uma honra participar desta apresentação. Estão todos convidados!

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Notícias à Quinta

Inicia-se hoje a rubrica Notícias à Quinta. Aqui daremos destaque a lançamento de livros, notícias do mundo literário, editoras, livrarias, autores e até jardins, tertúlias e cafés com letras.

Hoje o espaço vai para a Editora Guerra & Paz*!

Amanhã, dia 17 de Fevereiro esta Editora lança o livro de Delmore Schwartz Nos Sonhos Começam as responsabilidades e outras histórias.
Delmore Schwartz nasceu a 1913. Poeta e ficcionista foi o maior expoente literário da sua geração. Em 1935 escreveu «Nos Sonhos Começam as Responsabilidades e outras histórias». Uma obra-prima de literatura norte-americana do século XX, pela primeira vez  traduzida em português cujo prefácio é de Lou Reed. Em Nos Sonhos Começam as Responsabilidades e outras histórias um jovem, cujo nome nunca saberemos, assiste à projecção de um filme mudo num velho cinema de Nova Iorque. Para seu espanto as imagens que desfilam à sua frente são as do romance dos próprios pais. Um livro que é uma ode nostálgica à cidade que nunca dorme. A mais bela, alucinatória e comovente que alguma vez terá sido escrita. 


Além deste livro, no mês passado saiu a tradução de Soljas escrito pelo jornalista de investigação e editor do Sunday Mirror  Graham Johnson.
Depois de três anos infiltrado no submundo dos ganges, Johnson escreve este livro, em que a ficção revela toda a verdade. Um relato chocante sem pudor no vocabulário.
Em Soljas, as armas são tão comuns nas mãos dos adolescentes como os telemóveis. Do crescente crime organizado à distorcida cultura de celebridades, aqui está retratado um mundo em queda livre. Uma narrativa explosiva, com uma linguagem sem pudor. E se este retrato já estiver às portas das cidades portuguesas?


Da colecção prestigio da Guerra & Paz saiu, também no final de Janeiro, Correspondência 1943 – 1959, o livro que revela, pela primeira vez, as cartas que foram trocadas entre dois nomes incontornáveis do século XX: o poeta Jorge de Sena e o filósofo Delfim Santos. O volume conta com uma apresentação de Mécia de Sena e um estudo rigoroso e sistemático de Delfim Santos.

A amizade entre o poeta e o filósofo nasceu nas tertúlias e nos cafés literários de Lisboa, sobre os quais as cartas contêm oportunas referências - quer a estabelecimentos, quer a grupos constituídos, como o de Carlos Queiroz ou de José Marinho e Álvaro Ribeiro, por exemplo. Um retrato do ambiente cultural do pós-guerra e dos anos 50 em Portugal.


Fica a sugestão! Aguardem uma viagem aprofundada a alguns destes títulos!

*A informação detalhada: Cortesia de Catarina Rodrigues, Guerra & Paz Editora




Livros que deram filme: A Invenção de Hugo Cabret

A Invenção de Hugo Cabret
de
Brian Selznick
Paris, anos 30.

Após a morte de seu pai que era relojoeiro, Hugo Cabret vive clandestinamente numa estação de comboios, em Paris, com o seu tio alcoólico, que lhe ensina a roubar e a tratar dos relógios.

Esgueirando-se por passagens secretas, o menino cuida do funcionamento dos gigantescos relógios do lugar. Ele precisa de se manter invisível porque guarda um incrível segredo. Descoberto pelo severo dono da loja de brinquedos e por sua curiosa afilhada, todos os seus planos entram em perigo...




Tem sempre os seus bolsos cheios de dezenas de peças de metal que retira dos brinquedos que rouba na loja e um pequeno caderno de capa gasta, cheio de esquemas, desenhos e estranhas invenções — uma delas é uma máquina de aparência humana que o menino esconde num dos locais secretos da estação! À noite, Cabret tenta reconstruir o misterioso autómato, na esperança de revelar a mensagem guardada entre seus mecanismos.
No entanto, não sabe por quanto tempo conseguirá manter seus planos...

O autor, Brian Selznick, compôs a história com textos e ilustrações que desenvolvem a história como num story-board de cinema. A interacção entre realidade e ficção é outro dos pontos fortes do livro, pois a obra recria uma época chave da história da humanidade: a industrialização europeia, o auge dos caminhos-de-ferro, os mecanismos (aplicados às artes, à magia, à relojoaria) e o surgimento do cinema.

Apesar da obra ter sido apresentada ao público como uma “graphic novel”, ou uma mistura bem sucedida de romance com story-board e picture book, não é fácil catalogá-la, pois as imagens não são meras ilustrações, visto que as suas sequências assumem um carácter narrativo independente do texto apresentado.

Quanto à sua adaptação para cinema A Invenção de Hugo Cabret fica entregue ao realizador Martin Scorsese.




O filme foi apresentado no Festival de Nova Iorque e estreia hoje em Portugal (16 de Fevereiro) apesar de ter sido apresentado em ante-estreia no dia 9 em Guimarães, no âmbito da Capital Europeia da Cultura.

As aventuras do Hugo podem ser vistas em 3D e são inspiradas no livro de Brian Selznick.

O filme A Invenção do Hugo está nomeado para 11 Óscares incluindo melhor realizador e filme. A cerimónia da entrega das estatuetas douradas está agendada para o próximo dia 26 de Fevereiro, nos Estados Unidos.

Sombra de mim em ti

Soltas vão as horas, numa noite quente e húmida.
Sou guardiã dos pensamentos que poluam na noite escura.
Viajo por becos e esquinas …resgato no manto do silêncio, a solidão que habita nestes caminhos encruzilhados. São gente de olhar perdido em busca de respostas que não querem ouvir.
Sinto o peso da sua presença em forma de um denso fumo que o envolve.
Aproximo-me…não sente a minha presença…sou invisível como sãos os seus pensamentos que correm livremente. Ligeiramente curvado, acende mais um cigarro e inspira fortemente …sopra com preguiça o fumo que sai pela boca, acariciado pelos seus lábios. Corro atrás dessa nuvem e oiço….

- Não tenho relógio…detesto relógios! Fazem sentir-me preso e eu nasci para não ter outro ritmo que não seja o meu.
Gosto da noite! A sua escuridão é como uma amante…dá prazer e nada questiona…está simplesmente porque quer estar. Por isso, é na noite que acerto o meu desassossego. Vagueio o corpo e liberto a alma.
Sem pressas, ando pelas ruas. Vejo as putas que, em lânguidos movimentos, vendem o prazer com minutos contados e os homens que as compram, cheirando a sexo em ebulição.
Tudo acontece ao ritmo da vida real, nua e crua. Sem fingimentos, sofisticações: os odores que sinto são de corpos suados, os olhares que me cobrem têm marcas de sonhos rasgados e as melodias que entoam são dedilhadas em violas gastas por um tempo sem memórias.
Gosto disto. Sinto-me vivo aqui. Neste mundo, a indiferença é um estado de alma de quem nada pede porque nada tem para dar. Sou apenas mais um que deambula pelas ruas. Nada me pertence e eu não pertenço a ninguém. Sou apenas Eu e quanto mais habito neste mundo, mais pleno Sou.
Não me interessa a incompreensão dos outros, estou-me nas tintas para isso. Ninguém me questionou, se as amarras que prenderam as minhas asas, feriram! Ninguém quis saber, as batalhas que travei e que preço paguei para as vencer.
Desbravei mundos…fiz das cidades minhas amantes e em cada uma amei o prazer. Cada rua foi minha, possuída ferozmente. Meu corpo ficou exausto dessa entrega, mas renovado para, noutro recanto, jorrar novamente em prazer.
Vi a injustiça erguida em estandarte…Fiz do ódio meu Aladino e desventrei os medos castrantes. Quis a liberdade plena de ser omnipresente e omnisciente e sem barreiras saltar o abismo.
Vivi a incerteza da minha própria certeza e hoje, vivo apenas com a minha certeza incerta.
Não quero mais nada porque já tive tudo. O nada que me acompanha preenche o tudo que dentro de mim vive.
Vou pintar a vida que quero com as cores da minha poesia e despojado de tudo, resgatarei todos os sonhos na tela que comecei e que nunca terá fim….

- Dá-me um cigarro! Peço-lhe.
- Pensava que nunca mais pedias – responde-me o homem de gabardina preta que fuma um cigarro na esquina de uma noite escura.
Em silêncio, olhamos o fumo que sai das nossas bocas e que suavemente esvai-se na escuridão…pensamentos que voam em concordância.

Elsa Martins Esteves

Tela de MNN

in Terno Bárbaro

"Tal como eu, Vladimir sabia falar com os animais; cada vez que encontrava uma gata, logo lhe estendia o dedo e, tocando o seu focinho, entrava em comunicação com ela e dizia-me: «Doutor, quem é amigo dos animais é graciosamente amigo de Deus, e assim, duma só vez, une e liga o que há de mais baixo com o mais alto, fechando o círculo, exactamente como eu quando através das minhas gravuras fujo do lixo da fábrica para o arrebatamento máximo do meu espírito.»

(...) Chegamos à igreja de Proseky e, como estava aberta, entrámos, porque essa igrejinha tinha quase mil anos...
Aí, uma arrumadeira limpava os bancos e junto dela andava um belo gato, tal como eu gosto, cinzento e preto, com patinhas e peito brancos e focinho cor-de-rosa, e o gato passeava pelos bancos, e quando a mulher da limpeza se ajoelhou para limpar o altar o gato saltou atrás dela sobre o estrado; sentado ao lado da campainha da elevação, olhava como se fosse o ajudante da missa ou o sacristão, ou algo ainda mais, como receava Vladimir...


(...) Quando no domingo fomos à missa, foi exactamente como Vladimir tinha previsto. Durante a missa solene, o gato lá estava sentado ao lado da campainha, olhando o altar, e quando nos viramos verificámos que nenhuma cara humana exprimia tanta devoção e tanta sabedoria como o gato, de modo que Vladimir me sussurrou que o gato, que observava deliciado o padre dizendo a missa, estava em comunicação directa com Deus e Deus, através do padre, estava em ligação directa com o gato, e que assim, em casos excepcionais, os gatos superam a fé morna de certos crentes, e que o céu deve estar cheio de gatos."

* a imagem foi retirada do blogue Lulinlulin.

A estreia de Alexandra Lucas Coelho no romance, pela Tinta da China

Eu sei que ainda falta algum tempo para sair este livro. Mas não resisto, desde já, a partilhar a sua capa e o título do primeiro romance da jornalista Alexandra Lucas Coelho - e a noite roda.


Fiquem com a primeira parte de uma entrevista que ela deu ao Programa do Jô, no Brasil. Conheçam o percurso da escritora / jornalista - na altura a conversa rodava em torno de Tahrir!, um livro também publicado em Portugal pela Tinta da China, sobre a Revolução no Egipto.

(Aconselho a leitura do artigo que o Pedro Ferreira escreveu sobre a Alexandra há uns meses atrás aqui no blogue)

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Primeira página do livro do mês... Por Penelope Fitzgerald

Ontem li 1/3 do livro do mês.

Começa assim:

"Em 1959, Florence Green passava de vez em quando uma noite em que não sabia com toda a certeza se dormira ou não. Tal devia-se às suas preocupações sobre se devia comprar a Old House, uma pequena propriedade com armazém próprio na primeira linha de praia para abrir a única livraria de Hardborough. Provavelmente, era essa incerteza que a mantinha acordada. Avistara certa vez uma garça a voar por cima do estuário, tentando, em pleno voo, engolir uma enguia que acabara de pescar. A enguia, por sua vez, debatia-se para escapar à goela da garça e via-se um quarto, metade, ou ocasionalmente três quartos dela a pender do bico. A indecisão que ambas as criaturas expressavam era lamentável. Haviam enfrentado demasiado. Florence achava que, se não dormira de todo - e as pessoas afirmam muitas vezes tal coisa querendo dizer outra bem diferente -, fora por pensar a noite toda naquela garça."

Just My Type - os nossos tipos, tipografias e desenhos afins


A tipografia é de certeza uma das partes mais importantes da nossa vida. Desde a publicidade, às mais diversas formas de comunicação informativa ou lúdica até à nossa comunicação mais pessoal, colectiva ou profissional, as letras e os seus tipos diferentes estão sempre presentes. A paixão do Steve Jobs pela tipografia levou a que incluísse nos seus softwares essa diversidade de tipos que em consequência levou à massificação da sua utilização, primeiro em utilizadores Mac/Apple e mais tarde em outros sistemas operativos.

Dessa paixão nasce esta nova rubrica no blogue que tratará não só de temas relacionados com a tipografia e fontes mas também com o design/ desenho de capas, formatos e miolos de livros. Na verdade vamos tentar fazer da paixão pelos livros e pela leitura o que a anatomia faz pela medicina, uma viagem às mais profundas partes dos seus corpos.

Começamos com o livro "Just My Type", de Simon Garfield. Um livro de histórias sobre as fontes, onde se examina como a Helvetica e a Comic Sans foram tomando um grande lugar no mundo. Explica porque ainda estamos influenciados por opções de tipos feitas  há mais de 500 anos atrás. O livro é sobre esse momento crucial em que as fontes deixaram o mundo da Letraset, das gavetas do armários tipográficos e foram carregados para computadores e se tornaram em algo que todos temos um entendimento mínimo e que em muitos dos casos até opinamos. Além de tudo isso, o livro revela quais podem ser as fontes melhores e piores do mundo - e o que a sua escolha sobre você ou quem as utiliza.

A escolha recai sobre este livro para começar exactamente porque o autor, Simon Garfield, não é um desenhador gráfico, tipógrafo ou alguém da área profissional. Jornalista, essencialmente de reportagem trabalha os autores de fontes e tipografos em tom de entrevista com o seu trabalho. Não esperem um estudo avançado de tipografia, mas um bom relato com humor e muito boa visão sobre o tema numa leitura não muito pesada ou técnica.

Que eu tenha conhecimento não se encontra traduzido em português mas a versão inglesa (original) está disponível em vários sites de venda de livros (nacionais e internacionais). Editado pela Profile Books Ltd pode ser encontrado em edição Paperback ou Capa Dura, o preço ronda os €12.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Últimas Notícias do Sul - a novidade de Luis Sepúlveda a chegar às livrarias

Está aí o novo livro de Luis Sepúlveda.

"As palavras de Luis Sepúlveda e as fotografias de Daniel Mordzinski conduzem-nos rumo ao Sul, numa viagem que não deixará nenhum leitor indiferente."


Diz o Chileno:

"Este livro nasceu como a crónica de uma viagem realizada por dois amigos, mas o tempo, as mudanças violentas da economia e a voracidade dos triunfadores transformaram-no num livro de notícias póstumas, no romance de uma região desaparecida. Nada do que vimos existe tal como o conhecemos. De certo modo fomos os afortunados que presenciaram o fim de uma época no Sul do Mundo. Desse Sul que é a minha força e a minha memória. Desse Sul a que me aferro com todo o amor e com toda a raiva.

Estas são, pois, as últimas notícias do Sul."

Provavelmente, toda a nossa vida é Poesia

Meu velho Agostinho,

Há 106 anos nasceste para o Mundo e como saberás o Mundo ainda não nasceu para ti. O teu Quinto Império, o que guardaste da mão do nosso António, o Vieira, mantém-se vivo nos escritos que vão aparecendo, sem que a comprensão os acompanhe. O malandro do Pessoa sempre deixou as arcas e parece que é agora que nos vamos deleitar a descobrir mais um pouco da vossa simplicidade. Aquela que vos tornou grandes. Enormes. Para lá da Dízima.

Encontrei cartas trocadas entre ti e o meu pai. Encontrei-as na memória, no arquivo da mente, nesse extraordinário compartimento que guarda a marca de água da Existência. A Essência é o que se manifesta dela, ou se vai manifestando. Num momento em que a raiz é assolada pelo encontro do fruto, revisito-te nas prateleiras onde te guardo, a ti e ao espaço mágico da tua sala, onde as janelas dignas de umas Águas Furtadas vertiam mil memórias e outras tantas histórias.

Felicidade e Alegria, dizias tu, meu velho Agostinho, que o importante é a liberdade do espírito, que a dificuldade da diacronia pedia alegria tornando a felicidade indiferenteO que é isso de ser feliz?… Se pudesse dir-te-ia hoje que descobri que a felicidade é o ponto de situação da diacronia, indiferente à euforia e à medida do tempo, e que o importante não é ser feliz mas ir sendo.

Sem necessidade de eternizar a ocasião extraordinária do diálogo comigo própria, roubo-te a expressão e digo-te …toda a nossa vida é poesia e eu prometo-te que há-de continuar a ser feita. De ti , e pelas tuas palavras que gritaram a sede de haver tanto por cumprir.

Parabéns meu velho. Sempre.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

ConvitE para um ChÁ


Estão a ver uma chaleira,
cheia de água,
quando ferve?

Como num fim de tarde de Inverno.
Como que para fazer um chá.

E a chaleira a borbulhar
e a perder pequenas… minúsculas… mínimas…
gotas de água.

Como uma boca cheia de palavras,
a perder migalhas…

E se a mão tocar no metal?
Sim, sem querer!

A pele em fogo…
A marca ínfima,
quase invisível…
A dor tão grande!
Como se mede uma dor?

E… se apenas uma gota?

Procuramos na mão
um vestígio, uma evidência,
e nada encontramos,
nem água, nem vapor,
apenas o lugar da dor.

Dor que não voa não precisa de penas!
Dizia a minha avó.
Não dizia nada.
Acabei de inventar!

Porque é que contei isto?

Desculpem, pensava…
no que sente um corpo quando o amor acaba.

Mas… e se… não uma gota…
Uma chuva, uma tempestade, um dilúvio!
Não é com dilúvios que se afogam os mundos?

Eu sei… a vaguear outra vez…
culpa do tédio na espera…
… que na chaleira a água comece a ferver…

Chá de cidreira.
Dizem que bom para azias, amarguras
e outros desarranjos de estômago.
São servidos?



Pessoa de Domingo com cheiro a maçã

É Domingo de manhã, pasmaceira e tarte de maçã no forno.
Um poema. Uma canção. Uma partilha.



Leiam o poema. Escreveu o nosso Pessoa. Canta o Dorival Caymmi.
Sigam o www.youtube.com/watch?v=f6MY5RUyBjw.

"Na ribeira deste rio
ou na ribeira daquele
passam meus dias a fio.
Nada me impede, me impele,
me dá calor ou dá frio.

Vou vendo o que o rio faz
quando o rio não faz nada.
Vejo os rastros que ele traz,
numa sequência arrastada,
do que ficou para trás.

Vou vendo e vou meditando,
não bem no rio que passa
mas só no que estou pensando,
porque o bem dele é que faça
eu não ver que vai passando.

Vou na ribeira do rio
que está aqui ou ali,
e do seu curso me fio,
porque, se o vi ou não vi,
ele passa e eu confio."

Fernando Pessoa

* a ilustração é de Etienne Delessert e pertence a um livro infantil norte-americano.

Ah, e não esquecer - já arrancou a exposição sobre Fernando Pessoa "Plural Como o Universo" na Gulbenkian. Horários, preços e que mais no link que se segue. A não perder. www.gulbenkian.pt/section30artId1546langId1.html