sábado, 22 de junho de 2013

Não há Feira, mas há escritores - o 1.º dia

Foi uma tarde muito bem passada entre os escritores. Os Aliados no Porto assistiram aos discursos de todos os que deram a cara pela iniciativa de protesto contra a não organização da Feira do Livro naquela cidade - Não há Feira, mas há escritores.

Cheguei um pouco atrasado, mas ainda houve tempo para falar com o Pedro Guilherme-Moreira, ouvir as palavras de Ana Luísa Amaral, cruzar-me com Manuel Jorge Marmelo e Miguel Miranda. Os autógrafos pedi, desta vez, ao Afonso Cruz e a Richard Zimler. Ainda deu para reconhecer mais alguns escritores, como o Luís Miguel Rocha (velho cliente de uma livraria onde trabalhei) e o Gonçalo Cadilhe (que ali conversava com alguns amigos comuns).

Fui também confundido com o Nuno Camarneiro... mas ainda não foi desta que ganhei o Prémio Leya!

Entretanto... deste encontro saiu um manifesto que está a ser assinado por inúmeros escritores. Segue aí em baixo, pelo meio das fotografias.

E dia 29 lá estaremos outra vez!


Manifesto pela Feira do Livro do Porto

A relação entre os escritores e os leitores não se move ao gosto dos interesses de grupos, sejam económicos ou políticos. Move-nos o apreço, a cordialidade, a cumplicidade e o profundo respeito, valores que não podem ficar reféns de manobras palacianas, conveniências políticas ou intrigas mesquinhas. O encontro entre aqueles que escrevem e aqueles que lêem não pode, por isso, estar dependente de decisões administrativas arbitrárias. Ninguém tem o direito, por ação ou omissão, de impedir ou impossibilitar a realização daquele que é um dos mais importantes eventos culturais da cidade do Porto e do Norte de Portugal.

A Feira do Livro do Porto não se realiza este ano e não importa já discutir se a responsabilidade maior cabe à Câmara Municipal do Porto ou à Associação Portuguesa de Editores e Livreiros, ou qual das instituições teve mais, menos ou nenhuma vontade de organizar o certame. Os leitores e os escritores foram privados da sua grande festa anual ao fim de 82 anos de história, facto que apenas pode ser entendido como um gesto de total desrespeito por aqueles que lhe deram corpo.

Os signatários querem, assim, manifestar o seu repúdio pela não realização da 83ª edição da Feira do Livro do Porto. Para além de um ataque à vida cultural portuense, a decisão constitui uma afronta à cidadania e aos milhares de visitantes que todos os anos encontravam na Feira do Livro um espaço de convívio, lazer, partilha e cultura. Os signatários exigem ainda dos responsáveis políticos e corporativos a devolução da Feira do Livro à cidade do Porto, apelando à população e a todos os que, pelo silêncio, não querem ser cúmplices deste esbulho e confisco cultural a juntarem vozes e vontades para que a literatura regresse às ruas e praças do Porto. Queremos que os livros, os leitores e os escritores voltem a ser celebrados na Feira do Livro — como até aqui. 

Ainda assim, e porque aquilo que nos move é apenas o irrepetível momento de comunhão que a literatura proporciona, estamos outra vez na Avenida dos Aliados. De várias formas e, sobretudo, com aquela que é a nossa única arma: a palavra.


Handwritten Manuscript Pages From Classic Novels: Victor Hugo

Já alguma vez pensou ver O corcunda de Notre Dame desta forma? Então fique com uma das suas páginas, escritas pelo próprio Victor Hugo.

Visite o site http://flavorwire.com para encontrar mais. 
Siga o link directo.

Semana Clarice - Sábado

Acho que sábado é a rosa da semana; sábado de tarde a casa é feita de cortinas ao vento, e alguém despeja um balde de água no terraço; sábado ao vento é a rosa da semana; sábado de manhã, a abelha no quintal, e o vento: uma picada, o rosto inchado, sangue e mel, aguilhão em mim perdido: outras abelhas farejarão e no outro sábado de manhã vou ver se o quintal vai estar cheio de abelhas. No sábado é que as formigas subiam pela pedra. Foi num sábado que vi um homem sentado na sombra da calçada comendo de uma cuia de carne-seca e pirão; nós já tínhamos tomado banho. De tarde a campainha inaugurava ao vento a matinê de cinema: ao vento sábado era a rosa de nossa semana. Se chovia só eu sabia que era sábado; uma rosa molhada, não é? No Rio de Janeiro, quando se pensa que a semana vai morrer, com grande esforço metálico a semana se abre em rosa: o carro freia de súbito e, antes do vento espantado poder recomeçar, vejo que é sábado de tarde. Tem sido sábado, mas já não me perguntam mais. Mas já peguei as minhas coisas e fui para domingo de manhã. Domingo de manhã também é a rosa da semana. Não é propriamente rosa que eu quero dizer.


*Clarice Lispector, in Para Não Esquecer.

*Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres 
é leitura conjunta neste mês.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Contadores de histórias - Clara Haddad

(Foto: Pedro Ferreira)


Clara Haddad nasceu na cidade de São Paulo - Brasil.

É actriz e contadora de histórias profissional e tem realizado apresentações em vários países, tais como: Brasil, Portugal, Espanha, Bélgica, França, Peru, México e Venezuela. Possui espectáculos para todos os tipos de públicos (crianças, jovens e adultos) e, em algumas ocasiões, a sua narração é acompanhada por música ao vivo. Com senso de humor, leveza e magia, Clara conta histórias que ouviu e aprendeu na infância com a sua avó libanesa e outras, que foi conhecendo através do seu trabalho de pesquisa e viagens pelo mundo. Há 11 anos dedica-se a este ofício e o seu repertório é composto por relatos tradicionais árabes, brasileiros, portugueses e africanos. Radicada em Portugal desde 2005, dinamiza workshops e formações na arte de contar histórias, dança e teatro.

Com frequência, convida outros profissionais da área, conhecidos internacionalmente, para partilhar experiências com o público português, realizando, com periodicidade, oficinas, espectáculos e encontros.

É programadora da "Sexta dos Contos", noite de contos para adultos, realizada no café-bar Tertúlia Castelense, na Maia há 4 anos e do projecto Domingos de Contos nas Caves Taylor´s.

Integrou por 3 anos a equipa do serviço educativo do Hospital Pedro Hispano onde, dinamizou semanalmente, sessões que uniam meditação, visualização criativa e contos (projecto educativo hospitalar ganhador do prémio de Acreditação 2007).

Desenvolve um trabalho pioneiro em Portugal de «Storytelling empresarial», visando ajudar empresas e organizações que têm um problema com a comunicação e criatividade em sua equipa.

Acompanha individualmente, empresários, consultores, políticos, actores e todos aqueles que na sua vida profissional necessitem falar perante audiências ou queiram desenvolver um projecto nas áreas de mediação de leitura ou organizacional.

Directora e produtora do Encontro Internacional de Narração Oral “UM PORTO DE CONTOS” que teve sua primeira edição em Maio de 2011. Autora do conto ”A Montanha Encantada” que faz parte da colectânea reunida no livro "Histórias de quem conta histórias" Ed. Cortêz; livro escolhido para representar o Brasil, na feira internacional do livro infantil em Bolonha-Itália, como um dos melhores lançamentos infanto-juvenis de 2010.

Fundadora da «Escola de Narração Oral» projecto pioneiro em Portugal.

Podem saber mais sobre a Clara Haddad seguindo a sua página no Facebook.



1º Parágrafo: Veneza


A 45º 14’N, 12º 18E, O NAVEGADOR que vá subindo ao longo que vá subindo ao longo da costa adriática de Itália encontra uma abertura na extensa linha baixa da praia: e virando para oeste, com a ajuda da maré, entra numa laguna. De súbito, desaparece o vigor tempestuoso do mar. A água em volta é baixa mas opaca, a atmosfera curiosamente translúcida, as cores são pálidas, e sobre toda a extensão da bacia de lama e água pesa uma sugestão de melancolia. É como que uma laguna albina.


* Tradução de Raquel Mouta

a-ver-livros: e tudo e Mikhael Nesterov

E tanto
e todos
e tela tingida de azuis
e tempo tatuado de flores
também ternura
e temperança
e talvez um pouco de sol
se a travessia arrefecer
a vontade de tocar
e tentar tranquilizar 
tolerar talvez
a tristeza trémula das árvores
que entrelaçam em mim
o teu nome 
e tudo

* para saber mais sobre o pintor russo Mikhael Nesterov
siga o link russiapedia.rt.com/prominent-russians/mikhail-nesterov

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Semana Clarice - excertos de «Água Viva»

Nasci dura, heróica, solitária e em pé. E encontrei meu contraponto na paisagem sem pitoresco e sem beleza. A feiúra é o meu estandarte de guerra. Eu amo o feio com um amor de igual para igual. E desafio a morte. Eu – eu sou a minha própria morte. E ninguém vai mais longe. O que há de bárbaro em mim procura o bárbaro e cruel fora de mim. Vejo em claros e escuros os rostos das pessoas que vacilam às chamas da fogueira. Sou uma árvore que arde com duro prazer. Só uma doçura me possui: a conivência com o mundo. Eu amo a minha cruz, a que doloridamente carrego. É o mínimo que posso fazer de minha vida: aceitar comiseravelmente o sacrifício da noite.

Escrevo-te toda inteira e sinto um sabor em ser e o sabor a ti é abstrato como o instante. É também com o corpo todo que pinto os meus quadros e na tela fixo o incorpóreo, eu corpo a corpo comigo mesma. Não se compreende música: ouve-se. Ouve-me então com teu corpo inteiro. Quando vieres a me ler perguntarás por que não me restrinjo à pintura e às minhas exposições, já que escrevo tosco e sem ordem. É que agora sinto necessidade de palavras — e é novo para mim o que escrevo porque minha verdadeira palavra foi até agora intocada. A palavra é a minha quarta dimensão.

*Clarice Lispector, excertos de Água Viva - ed. Relógio D'Água.

*Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres 
é leitura conjunta neste mês.

É do borogodó: fubá mimoso

O olhar dispara para fora da janela procurando alguma saída para os dias cinzentos, a falta dos cinzeiros e a civilidade mórbida que incomoda acima de tudo. Pequenas pombas numa revoada entoam uma cantiga da infância ao redor da fonte, na praça central. “Seria perfeito encontrar com ela exatamente no instante em que acontece a revoada”, lembro que pensei isso e logo percebi o email na caixa de entrada:

“Já se passaram dez longos meses desde nossa primeira conversa e decidi surpreendê-lo da mesma forma como a vida nos surpreendeu com nosso raro encontro.”

Sorrio contendo a empolgação dentro do paletó, passeei o olhar ao redor e fingi prazos esquecidos para protocolos e documentos na agenda. A camisa azul celeste refletia minha meninice junto de um leve aroma cítrico do perfume enviado por ela. A gravata aos poucos cedia na alegria, “Ela é maluca mesmo e deve estar vindo para cá dia desses”.

Respondi prontamente a mensagem dizendo que o meu sim sempre estava explícito para nosso encontro. Todos os dias o trânsito fecundo de imagens e palavras inundavam nossas almas de uma esperança prismática, pueril até. Mas nos reservamos no sigilo das vozes nunca ouvidas, nas simplicidades das cartas sem abusos tecnológicos de câmeras, microfones e mais.


Amávamo-nos silenciosamente sem saber quem éramos e tão entregues a mais pura verdade que nos constituía. Fechei os olhos para ver os olhos dela de perto, latejando dentro de mim. Excitei-me com a primeira palavra, o hálito que viria dos lábios rosados e o frio da pontinha do nariz. Olhei para minhas mãos e senti a proximidade da revelação.

foto do lisboeta Espada Feio
Outra mensagem seguiu, desta vez no telemóvel, “encanta-me azul azulejo. pedras negras e um passo para alcançar as mãos que usurparam minha alma”. Tremi deslizando a cadeira para trás. Levantei-me imediatamente e busquei pelos mínimos pertences:

- Tenho de sair para uma reunião e não regresso mais ao escritório. Até segunda-feira!

Avisei a secretária e sai carregando alguns pertences que despistassem meus colegas de trabalho da minha sina. Ela estava ali, próxima de mim, tão próxima que eu já podia enxergar seus passos deslizando sobre a calçada num par de sapatos vermelhos, o desejo lhe acendia a ponta da saia. Profundo conhecedor da minha cidade, acendia as luzes do nosso encontro às escuras tateando as mensagens no telefone, respondi que ela ficasse por lá, que não saísse daquele lugar, eu a encontraria.

Avistei os braços abertos e o corpo nu da musa e quase pude perceber o paladar das folhas de alecrim da minha rua. Caminhei desajustado e lento, trôpego de saudade e mortificado pela paixão. Queria mostrar as coisas do lugar e andar de mãos dadas com ela por ruas estreitas, sob janelas que espreitam segredos, e desfiar conversas com deliciosas chávenas de café na Brasileira.

Uma nova mensagem me deliciava com a promessa perfumada de grãos de cidreira. Na sua mineirice, palavras em diminutivo escondiam tantos segredos quantos fossem necessários: “mimarei você com um bocadinho de compota de goiaba e bolo de fubá mimoso”. Mas das suas receitas me interessavam apenas o que lhe fazia ser tão assustadoramente perfeita para mim.

O coração alardeava. Madalena e meu último suspiro antes de me entregar na curva da travessa da amada, já inúmeros seriam meus abraços ao redor da sua cintura. E mesmo no ceticismo louvei ao santo que proclamasse para nós os melhores votos.

Subi os degraus e avistei seus ombros cobertos com um xale branco. Devagar ela se voltou para a porta e foi erguendo o corpo com gestos mansos enquanto pronunciava um sorriso para dizer meu nome. Mas não disse. Parou na primeira letra e esperou, tal o monumento erigido ao escriba, com os braços suavemente abertos, os seios rijos enfeitados por pérolas que deslizavam no colo, os lábios húmidos.

Ouviu-se a revoada e meus braços enlaçaram a cintura estreita. Murmurei as primeiras palavras dentro da concha do ouvido dela “eis-me, minha adorada”, para seguir num beijo sobre a pele doce do pescoço. Seda, bruma, pêssego, gotas de óleo essencial e uma nota de cidreira para adoçar o sabor do mimo.

Beijou-me demoradamente um beijo pagão nos bancos da igreja. Todos os arcos se expandiram e o céu invadiu celeste até se fundir com as tramas de algodão da minha camisa, caminhando fragmentos de nuvens dentro do peito.

“Deito-me em ti, meu amor.”

Penélope Martins


1º Parágrafo: Paris


Sonhei muitas vezes escrever um livro sobre Paris que fosse como que um grande passeio sem fim, daqueles em que nunca se encontra nada daquilo que se procura, mas sim aquilo que não se procurava. Esta é mesmo a única forma através da qual me sinto capaz de abordar um assunto que me desencoraja tanto quanto me atrai. E, acima de tudo, creio que não direi uma palavra a respeito dos grandes monumentos e de todos os lugares acerca dos quais se esperaria uma descrição como deve ser. Talvez porque tenho olhado para elas demasiadas vezes, já não vejo as glórias arquitectónicas de Paris com toda a necessária liberdade de espírito. Prevenido contra ou a favor de cada uma delas, tomei partido, sou injusto. Mil vezes desejei ver a Torre Eiffel submersa, agradar-me-ia tomar conhecimento de que os dois Palácios, o grande e o pequeno, que desonram o Cours-la-Reine, tinham desaparecido a meio da noite. As minhas preferências vão para as velhas pedras, não o escondo, mas choraria de enfado se tivesse de escrever uma página a respeito do Hôtel des Invalides, porque amando-o como o amo não saberia na verdade o que dizer dele. Tal como ficaria mudo perante Notre-Dame, incapaz de falar, sem dúvida, pela vergonha do que ouviria da minha própria boca, eu que admiro sem a invejar a coragem daqueles a quem a auto-suficiência ou o génio lançam sobre um monstro assim: pela minha parte, prefiro ficar calado e Notre-Dame continua a ser para mim Notre-Dame, um ponto, nada mais.


* Tradução de Carlos Vaz Marques

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Semana Clarice - Quantas Vezes a Insónia é um Dom

Mas quantas vezes a insónia é um dom. De repente acordar no meio da noite e ter essa coisa rara: solidão. Quase nenhum ruído. Só o das ondas do mar batendo na praia. E tomo café com gosto, toda sozinha no mundo. Ninguém me interrompe o nada. É um nada a um tempo vazio e rico. E o telefone mudo, sem aquele toque súbito que sobressalta. Depois vai amanhecendo. As nuvens se clareando sob um sol às vezes pálido como uma lua, às vezes de fogo puro. Vou ao terraço e sou talvez a primeira do dia a ver a espuma branca do mar. O mar é meu, o sol é meu, a terra é minha. E sinto-me feliz por nada, por tudo. Até que, com o sol subindo, a casa vai acordando e há o reencontro com meus filhos sonolentos. 

*Clarice Lispector, in Crónicas no Jornal do Brasil (1968)

*Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres 
é leitura conjunta neste mês.

10 mil razões para fazer parte do grupo «Livros no Facebook»

Livros no Facebook - 3 anos e meio, 10 mil membros. Uma das maiores comunidades dedicadas ao livro / leitura de língua portuguesa no Facebook.


1º Parágrafo: Nova Iorque


Sou o filho do descendente do Rei da Grécia
que casou com a filha do Rei da Irlanda,
e viajou para Oeste.


* Tradução de Rita Graña

a-ver-livros: hora do fim e Kathleen Lolley

Sonharás mais um instante
e nascerão árvores dos livros
e de tudo,
que preferes a sombra verdejante
e o piar da escrevedeira
ao pulsar do papel


E como te entendo,
dura mais a memória do som
do ribeiro que corre ao lado 
que a das palavras citadas
de cor


Mesmo que só o saibamos
na hora do fim
* para conhecer mais sobre a pintora Kathleen Lolley
siga o link kathleenlolley.com

terça-feira, 18 de junho de 2013

Semana Clarice - Em Busca do Outro

Não é à toa que entendo os que buscam caminho. Como busquei arduamente o meu! E como hoje busco com sofreguidão e aspereza o meu melhor modo de ser, o meu atalho, já que não ouso mais falar em caminho. Eu que tinha querido. O Caminho, com letra maiúscula, hoje me agarro ferozmente à procura de um modo de andar, de um passo certo. Mas o atalho com sombras refrescantes e reflexo de luz entre as árvores, o atalho onde eu seja finalmente eu, isso não encontrei. Mas sei de uma coisa: meu caminho não sou eu, é outro, é os outros. Quando eu puder sentir plenamente o outro estarei salva e pensarei: eis o meu porto de chegada.

*Clarice Lispector, in Crónicas no Jornal do Brasil (1968)

*Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres 
é leitura conjunta neste mês.

É do borogodó: Multimídia - olhos para ler

Não existe um único jeito de ler. As plataformas para leitura são diversas, desde uma lata de molho de tomate até uma série infindável de legendas em filmes com amplos diálogos. Estamos a ler.
Todavia, no entanto, contudo, ler pressupõe conhecer os símbolos e a estrutura estabelecida para disposição deles.

Venho insistindo na leitura da imagem como leitura de história, talvez ingenuamente acreditando que alguém vá ingressar nas tais viagens que flutuam dentro da minha cabeça.
Ler envolve o ser, não se separa o leitor da escrita e nem a escrita do escritor, por isso é complexo falar em interpretação de texto. Da mesma forma, é complexo dizer que este quadro é belo e o outro é frio, quase dispensável. Tudo depende.

A leitura pode ser um processo de descoberta, um desafio. A leitura pode ser uma brincadeira, até uma piada. A leitura pode ser massacrante. A leitura pode ser dolorosa e mesmo assim conquistar o leitor.

Refletir. Este talvez seja o verbo ler. Refletir induz à meditação tanto quanto reconhece a repercussão dos raios de luz. Um espelho reflete a imagem que está a sua frente (embora reinterprete a imagem invertendo-a). Mais do que entender a língua na qual se expressa o escritor, o leitor abusa imprimindo na leitura seus sentimentos, recontando a história dentro das suas próprias vivências, reelaborando uma intenção na ação do personagem.

Ler é integrar conhecimento ao conhecimento.
Não se parte do zero para uma leitura. O ponto de partida é tudo que vivemos até agora. Por isso é tão subjetivo e consequentemente tão rico.

Ainda há outro aspecto muitíssimo relevante que devemos considerar na leitura, o ler leva em consideração a pré-disposição que o sujeito tem de absorver o algo novo. Há leitores esponjas, há leitores impermeáveis. Mesmo discordando, os leitores esponjas conseguem aceitar a leitura como um estímulo ao pensamento e uma nova carga de oxigênio para a vida. O leitor impermeável não, ele recusa temendo perder as próprias convicções.
Mas tantas são as plataformas de leitura e, como diz o ditado, “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”, nenhum leitor escapa da mutação.

Os estímulos estão aí a todo tempo. As mutações acontecem independentemente da vontade das partes.
Ora bolas se assim é, melhor ser permeável, mais flexível; o maleável consegue ocupar espaços e passar pelas frestas que interessam. O sujeito duro, inflexível e contido nas suas razões fica ali parado, apanhando até ser arrastado pelo tempo.

Multimídias, somos da era do compartilhar de ideias, da observação constante. As plataformas são muitas. Muitas são as ideias. Muitos são os olhos e todos eles já chegam para ler com lentes polidas – alguns enxergam de perto, outros de longe, outros colocam tantos filtros nas lentes que quase já não podem enxergar a paisagem.

Fomentar a leitura reflexiva é tornar o observador um agente crítico e livre. Para ser livre, o leitor aprecia a liberdade alheia e compreende o quanto é importante o debate apoiado na permeabilidade. Bom exemplo disso é a contação de história. Contar histórias é saber ler os olhos dos leitores, ver brotar o interesse, dialogar com as expectativas. Sempre dialogar.

Ler é procurar saber de nós todos.


Penélope Martins

1º Parágrafo: Uma Ideia de Índia


Com que então, estiveste na Índia. Divertiste-te?


* Tradução de Margarida Periquito


a-ver-livros: agir e Luiza Maciel Nogueira

Força a entrada
empurra a porta
procura a fuga
o espaço luz ar
Agarra a hora
arromba o tempo
obriga a alma ao alento
Deita fogo à palha
dos dias, das noites

é preciso
que te afoites
a espera tem fim

* para saber mais sobre a ilustradora brasileira Luiza Maciel Nogueira
siga o link http://desenhosluizamaciel.blogspot.pt/

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Que uma AranhA FaZzz muita companhiA


- Era capaz de matar a minha aranha de estimação.
Sim, foi o que lhe respondi.
A teia da aranha no tecto. A aranha na teia.
Ela deitada ao meu lado.
Foi o que respondi depois de um fim de tarde-noite que foi de sexo, com um não sei quê de ternura.
E não foi ternura.
Foi necessidade.
Foi necessidade e urgência.
Foi uma tarde de Domingo.
As tardes de Domingo são tramadas, o tédio das tardes de Domingos, os filmes na televisão, os passeios, um jardim, uma praia, de preferência de carro, com sorte uma fila de trânsito, as famílias em digestão do almoço de Domingo, de sobremesa temos mousse, pudim, doce da avó, de qual avó?, não da minha que se finou antes de eu ter nascido, e mais leite-creme e arroz-doce, as famílias de banho tomado, o banho de Domingo, os sapatos engraxados, a roupa de ver a Deus ou de mostrar aos outros, os programas na rádio, a volta a Portugal em bicicleta, a fórmula 1, o futebol, a cerveja, os amendoins, o whisky, quando a cerveja se mostra insuficiente para suportar as horas. É que nas tardes de Domingo até os bons romances me provocam azia.
A chaleira ao lume, uma chávena de chá. A acompanhar o chá duas bolachinhas.
Até que, para alívio de muitos, a infindável tarde Domingo termina finalmente, nos ponteiros do relógio de pulso, do micro-ondas, do vídeo, da televisão, do despertador na mesinha de cabeceira.
Falta atravessar a noite, mais fácil, mais leve, porque de noite todos os gatos são pardos.
Foi uma tarde de Domingo.
Não me serve de desculpa.
Foi porque eu estou sozinho há algum tempo.
17 anos.
Engordei levemente.
20 kilos.
E ela, talvez a pensar, não que podíamos ser felizes, porque até o cinismo tem limites, mas que podíamos, talvez, se quiséssemos, com um pouco de vontade, de boa vontade, de vontade boa, aliviar um ao outro o peso da solidão, pragmática; como só as mulheres sabem ser, a perguntar o que era capaz de fazer por si.
Eu podia ter respondido que um chá, que um poema, que lavar a loiça, no limite dos limites, que podia aprender tricot e tricotar-lhe um cachecol, que qual a sua cor preferida?, que um bolo de chocolate, um bolo de chocolate vai bem contudo.
Mas, porque nunca fiz um bolo de chocolate, porque duvido que conseguisse fazer um bolo de chocolate, eu a responder:
- Era capaz de matar a minha aranha de estimação.
Ela a rir do meu comentário, a achar graça ao meu sentido de humor, longe de supor que no quarto, a fazer-nos companhia, a teia e a aranha.
Mais vale cair em graça do que ser engraçado, dizem.
Acho que nunca encontrei um feio engraçado, digo.
Os feios não caem. Os feios não se levantam.
Gostei de a ouvir rir. Um riso redondo e melódico, bom de ouvir.
Há risos que me irritam, principalmente os que lembram carros estrangulados em primeira, quando a situação do mínimo pede uma terceira.
O seu riso não irritava. Fazia sorrir. Fazia rir. Um não sei quê de alegria.
Há muito tempo que não se ouvia rir dentro do quarto, até para as paredes deve ser agradável.
Ela a rir da minha resposta, eu sem saber o que mais fazer.
Desviar-lhe os olhos do tecto?
A minha mão no seu queixo como se uma ternura, antes que percebesse a existência da teia e da aranha!
Chama-se Genoveva.
Chamo-lhe Genoveva, gosto de saber com quem estou a falar e, por dia, no mínimo, digo-lhe bom dia quando acordo e boa noite quando me deito.
No Verão tem a delicadeza de comer as moscas que me entram no quarto.
E se há bicho que incomoda o sono de um gajo são as moscas, zzzzzz, zzzzzzzz, zzzzzzzzzz!
E os mosquitos.
E as melgas.
Essa tropa!
Assim que quando me perguntou o que fazia, pensei duas vezes, pensei três, o que para mim já é muito pensar, tivesse eu pensado três vezes antes de me casar e continuava solteiro, e conclui que não, que não era capaz de matar a minha aranha de estimação.
Menti, por graça e sem pensar, quando respondi: Por ti matava a Genoveva.
E claro que não disse Genoveva, disse a minha aranha de estimação, que não sou tolo para me mostrar assim, mas depois do pequeno-almoço, torradas com doce de laranja e chá, nunca me falta chá na despensa, são demasiadas as coisas que me provocam azia, diga-se de passagem, que nunca tenho em falta nem chá nem cerveja, não vão ficar a pensar o que não devem, saímos para tomar café, ela disse tinha coisas para fazer, eu passei a tarde na esplanada a ler o jornal, uma tarde de Inverno em que o sol vale pelo menos o dobro do Verão, e não lhe telefonei mais, nem atendi o telefone, claro, claro-escuro, escuro.
 
Raquel Serejo Martins
 




Semana Clarice - Viver o Hoje

Nunca a vida foi tão actual como hoje: por um triz é o futuro. Tempo para mim significa a desagregação da matéria. O apodrecimento do que é orgânico como se o tempo tivesse como um verme dentro de um fruto e fosse roubando a este fruto toda a sua polpa. O tempo não existe. O que chamamos de tempo é o movimento de evolução das coisas, mas o tempo em si não existe. Ou existe imutável e nele nos transladamos. O tempo passa depressa demais e a vida é tão curta. Então — para que eu não seja engolido pela voracidade das horas e pelas novidades que fazem o tempo passar depressa — eu cultivo um certo tédio. Degusto assim cada detestável minuto. E cultivo também o vazio silêncio da eternidade da espécie. Quero viver muitos minutos num só minuto. Quero me multiplicar para poder abranger até áreas desérticas que dão a idéia de imobilidade eterna. Na eternidade não existe o tempo. Noite e dia são contrários porque são o tempo e o tempo não se divide. De agora em diante o tempo vai ser sempre atual. Hoje é hoje. Espanto-me ao mesmo tempo desconfiado por tanto me ser dado. E amanhã eu vou ter de novo um hoje. Há algo de dor e pungência em viver o hoje. O paroxismo da mais fina e extrema nota de violino insistente. Mas há o hábito e o hábito anestesia.

*Clarice Lispector, in Um Sopro de Vida, Relógio D'Água.

*Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres 
é leitura conjunta neste mês.

1º Parágrafo: O Japão é um Lugar Estranho


Estava com o meu filho de doze anos no clube de vídeo, quando ele alugou O Verão de Kikujiro, um filme japonês com um tipo duro e um miúdo, onde a encantadora personagem do rufia cheio de tiques é representada pelo actor Beat Takeshi. Como poderia eu saber naquela altura onde é que aquilo nos iria levar?


* Tradução de Carlos Vaz Marques

a-ver-livros: torvelinho e Mary Alayne Thomas

Serena a luz
com que me olhas
nas manhãs de cinza
a colorir passos de verde
ainda molhado da madrugada

Serena a mão
que me dás discreto

não escorregue o corpo
na rua de águas

Sereno o meu nome nos lábios
com que me beijas 
em torvelinho

* para saber mais sobre a pintora Mary Alayne Thomas
siga o link maryalaynethomas.com

domingo, 16 de junho de 2013

Semana Clarice - Como Escrever

Minhas intuições se tornam mais claras ao esforço de transpô-las em palavras. É neste sentido, pois, que escrever me é uma necessidade. De um lado, porque escrever é um modo de não mentir o sentimento (a transfiguração involuntária da imaginação é apenas um modo de chegar); de outro lado, escrevo pela incapacidade de entender, sem ser através do processo de escrever. Se tomo um ar hermético, é que não só o principal é não mentir o sentimento como porque tenho incapacidade de transpô-lo de um modo claro sem que o minta — mentir o pensamento seria tirar a única alegria de escrever. Assim, tantas vezes tomo um ar involuntariamente hermético, o que acho bem chato nos outros. Depois da coisa escrita, eu poderia friamente torná-la mais clara? Mas é que sou obstinada. E por outro lado, respeito uma certa clareza peculiar ao mistério natural, não substituível por clareza outra nenhuma. E também porque acredito que a coisa se esclarece sozinha com o tempo: assim como num copo de água, uma vez depositado no fundo o que quer que seja, a água fica clara. Se jamais a água ficar limpa, pior para mim. Aceito o risco. Aceitei risco bem maior, como todo o mundo que vive. E se aceito o risco não é por liberdade arbitrária ou inconsciência ou arrogância: a cada dia que acordo, por hábito até, aceito o risco. Sempre tive um profundo senso de aventura, e a palavra profundo está aí querendo dizer inerente. Este senso de aventura é o que me dá o que tenho de aproximação mais isenta e real em relação a viver e, de cambulhada, a escrever.

*Clarice Lispector, in Crónicas no Jornal do Brasil (1969)

*Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres 
é leitura conjunta neste mês.

Soneto de Fernando Pessoa dito por Margarida Vila-Nova

125 anos de Fernando Pessoa. 


A actriz Margarida Vila-Nova leu, a pedido da Granta, o soneto 'Socégo enfim' incluído no primeiro volume da revista.


David pinta... Woody Allen

David pinta... Woody Allen
A única coisa que lamento na vida é não ser outra pessoa qualquer.

Eu não quero alcançar a imortalidade através da minha obra. Eu quero tornar-me imortal sem ter que morrer.

O sexo alivia a tensão. O amor cria-a.

Eu acho que o crime compensa. Passam-se uns bons tempos, conheces uma grande quantidade de gente interessante, viajas muito.

Apesar de tudo, há coisas na vida piores que a morte. Se alguma vez passaste uma noite com um vendedor de seguros, então sabes do que é que eu estou a falar.

A tradição é a ilusão da permanência.