quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

É do borogodó: Troscópio

TROCOSCÓPIO

Que palavra complicada é essa?
Fui buscar no dicionário, mas o troco virou troço e o trocoscópio não apareceu. Meu pai dizia que o dicionário era um pai dos burros, mas eu percebi que nem ele sabe tudo.
Então, eu juntei o troço com o microscópio, que é palavra irmã do caleidoscópio que não copia nada e nem ninguém. Fucei, mexi, revirei, criei. Trocoscópio é difícil de apanhar o sentido. Por isso troquei o dicionário por um livro sem palavra nenhuma, assim, quem sabe, eu percebo o trocoscópio tim tim por tim tim.
A capa não me entregou nenhuma diga, só uma lagartixa com catavento de papo pro ar esperando a página virar.
Daí, virei.
Trocoscópio estava lá bem escrito. Pronto! Haverá uma explicação para esse fenômeno.
O explicador é Bernardo Carvalho, autor ilustrador português – o que me mostrou que eu não estava enganada sobre procurar o troço no meu dicionário… embora sem resultado positivo.
Mais uma página para lá e o trem fica doido. E a cada página uma figura se mexe, desmonta, remonta, reconta e afina que o trocar o troço de lugar é coisa típica de trocoscópio.
Você não gostaria de trocar alguma coisa na sua vida? Tem coisa que é preciso mudar de lugar. Até árvore, que tem raiz, pode mudar. Parece difícil de imaginar uma cena dessas, impossível não é.
No livro Trocoscópio, 142 formas geométricas, em cores diversas, trocam de lugar possibilitando ao leitor uma releitura dos objetos ao seu redor, inclusive com a transformação da paisagem urbana para o rural ou selvagem.
A geometria e as cores fazem lembrar a brincadeira de luz nos pedacinhos de vidro colorido que compõem do caleidoscópio
O desafio de leitura instiga o leitor a perceber as linhas narrativas desenhadas ao longo do jogo que se brinca com o trocoscópio.
As peças são embaralhadas e reorganizadas, mostrando como acontecem inesperadas arrumações.
Trocoscópio é máquina de reinventar o mundo. O livro é máquina de reinventar o pensamento. As duas coisas numa só é uma revolução e tanto!
Trocoscópio originalmente editado em Portugal com selo do Planeta Tangerina, foi trazido para o Brasil pela Editora Peirópolis, de São Paulo, e é bem fácil de encontrar nas livrarias ou nos sites (basta colocar o nome no Google).
Eu não resisti ao brinquedo e saí do livro. Fui cortar peças geométricas para brincar de trocoscopiar aqui em casa também. Não tem no dicionário, mas tem pra vida.
*originalmente publicado em https://todahoratemhistoria.wordpress.com/2016/01/28/trocoscopio/
Penélope Martins, nossa correspondente no Brasil. Este post é do borogodó!

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

vaga-lume


não tragas o inverno
para dentro
deixa-o aí à porta
junto dos sapatos enlameados
aquieta a tua voz
aqui rente à minha pele
que nem o ardor
do braseiro
nas palmas das mãos
olha as clareiras
acesas na floresta
da tua passagem
e tudo o que crepita ao redor
deixa os sapatos à entrada
flutua descalça
sobre mim.


Helder Magalhães


Marta Bevacqua Photography

domingo, 31 de janeiro de 2016

«Todos os tempos verbais» em Coimbra

foto: Teresa Ferrão Pessanha

Chego aqui, à casa que nunca deixei de chamar casa. Alguém me dizia, admirada, que nós continuávamos a referir a Boa-Bay-Ela como nossa casa, ainda que não a habitássemos. E é assim mesmo – uma vez escolhidos para aqui vir, permanecemos.

A casa é um corpo carregado de memórias, paredes surdas que assistiram ao nascer e crescer de tanta gente, testemunho de vidas e de cruzamento de tantas histórias individuais, transformadas numa gigante bolha de felicidade.

E voltar é isso mesmo – regressar a um sítio de grande alegria sem verdadeiramente nunca ter de lá saído.

A nossa casa assistiu ao meu caminho. Não fui eu que me dirigi aqui e entrei. Fui sendo pescado, num processo lento de conquista. E não me deixei enganar, aqui encontrei o meu tecto.

Escrever estava-me destinado, sem eu nunca ter percebido que isso acontecia. A poesia nasceu, num processo tão natural como o da entrada na República.

Recordo os anos que vivi neste espaço, com os meus irmãos, e das cartas que lhes escrevi. Já naquele tempo me preocupava com o mundo global que hoje nos sufoca em tantos aspectos. E percebia, de uma forma simples e clara, que sítios como a nossa casa são sempre um ponto perdido num imenso oceano.

Afinal o amor é a solução final e eu deixei que ele acontecesse aqui. Pratiquei também a solidariedade, a amizade absolutamente descomprometida, nunca imposta, nada convencionada. O valor do abraço multipliquei-o por mil, num aperto e felicidade que sabia existir em cada um de nós.

E ainda assim o é.

E será, será para sempre. Num sempre que nunca acaba.

foto: Ricardo Botelho

O meu livro não fala desta casa, talvez porque não escolhi escrevê-lo. As coisas foram acontecendo, poema a poema, sem aparente organização ou objectivo.

Mas a poesia guarda os pensamentos que escorri enquanto cá vivi. Ainda hoje tenho bem presentes os rostos da casa, os barulhos, o encontro imediato com os velhos que cá viveram. E isso reflecte-se na minha vida, nas memórias felizes, guardadas a sete chaves no meu pensamento.

É verdadeiramente inspirador estar aqui convosco. É um motivo de enorme alegria ter vários amigos que fizeram comigo este caminho. Estar rodeado de vós é sentir-me em casa. Não podia escolher melhor sala para celebrar o meu livro.

Agradeço à geração que fundou a República. Agradeço a todos os que continuaram a contar esta história bela, uma casa que é um poema em si. Não tenho dúvida que todos nós pautamos a vida por aquilo que aprendemos cá. Carrego a certeza que isso será sempre inspirador, em tudo o que façamos fora deste círculo.

Aqui me fiz melhor pessoa, aqui consegui enquadrar toda a significância da palavra saudade. E é isso que mais sinto, uma enorme vontade de voltar àqueles dias despretensiosos, onde as coisas simples se transformavam em pequenos objectivos (como arrumar tudo para depois receber, num abraço, mais e mais convidados).

O meu livro fala dessas coisas que aprendi cá. Ao longo destas páginas percorro viagens até à infância, recordo momentos felizes, dedico poemas a pessoas queridas. Falo também do amor e da ausência dele. Tento enquadrar questões lançadas ao ar, sem saber responder a nada do que exponho. Debato-me com aquilo que não controlo e não domino. Exponho, num acto de coragem, sentimentos guardados bem fundo na minha consciência.

«Todos os tempos verbais» é um título que conjuga isso tudo – um querer invocar um passado, um interrogar presente e uma incerteza futura.

Convido-vos a fazerem esta viagem comigo, terei todo o prazer de debater cada uma das linhas que escrevi.

Hoje é um dia feliz. A casa mais bonita que habitei está preparada para a festa. Aguarda serena e calma a chegada de mais gente, numa roda sem fim, até ao acordar de um novo dia. A Boa-Bay-Ela é eterna, disso não tenho dúvidas. E há-de sempre inspirar o poema, a escrita, o pensamento e opinião. A liberdade é o bem mais precioso que há, e aqui celebra-se, todos os dias, isso mesmo.


Muito obrigado a todos. 

foto: Ricardo Nunes