sábado, 22 de fevereiro de 2014

Poema à Noitinha... Hélder Moura Pereira

Por um Rosto Chego ao Teu Rosto

Por um rosto chego ao teu rosto,
noutro corpo sei o teu corpo.
Num autocarro, num café me pergunto
porque não falam o que vai
no seu silêncio aqueles cujo olhar
me fala da solidão.
Esqueço-me de mim. Tão quieto
pensando na sua pouca coragem, a minha
sempre adiada. Por um rosto
chegaria o teu rosto, mesmo de um convite
ousado fugiria, esta mão conhece-te
e desenha no ar o hábito
por que andou antes de saíres
do espaço à sua volta. Estás longe,
só assim podes pedir algumas horas
aos meus dias. Sem fixar a voz
a tua voz é uma corda, a minha
um fio a partir-se.


*Hélder Moura Pereira, in De Novo as Sombras e as Calmas - (ed. Contexto)

Snobidando: Teolinda Gersão faz uma declaração de amor à Língua portuguesa

*Encontrado na página da livraria Snob, que replica notícia do site http://observatorio-lp.sapo.pt/

Tempo de exames no secundário, os meus netos pedem-me ajuda para estudar português. Divertimo-nos imenso, confesso. E eu acabei por escrever a redacção que eles gostariam de escrever. As palavras são minhas, mas as ideias são todas deles.

11-06-2012
Redacção – Declaração de Amor à Língua Portuguesa

Vou chumbar a Língua Portuguesa, quase toda a turma vai chumbar, mas a gente está tão farta que já nem se importa. As aulas de português são um massacre. A professora? Coitada, até é simpática, o que a mandam ensinar é que não se aguenta. Por exemplo, isto: No ano passado, quando se dizia “ele está em casa”, ”em casa” era o complemento circunstancial de lugar. Agora é o predicativo do sujeito.”O Quim está na retrete” : “na retrete” é o predicativo do sujeito, tal e qual como se disséssemos “ela é bonita”. Bonita é uma característica dela, mas “na retrete” é característica dele? Meu Deus, a setôra também acha que não, mas passou a predicativo do sujeito, e agora o Quim que se dane, com a retrete colada ao rabo.

No ano passado havia complementos circunstanciais de tempo, modo, lugar etc., conforme se precisava. Mas agora desapareceram e só há o desgraçado de um “complemento oblíquo”. Julgávamos que era o simplex a funcionar: Pronto, é tudo “complemento oblíquo”, já está. Simples, não é? Mas qual, não há simplex nenhum, o que há é um complicómetro a complicar tudo de uma ponta a outra: há por exemplo verbos transitivos directos e indirectos, ou directos e indirectos ao mesmo tempo, há verbos de estado e verbos de evento, e os verbos de evento podem ser instantâneos ou prolongados, almoçar por exemplo é um verbo de evento prolongado (um bom almoço deve ter aperitivos, vários pratos e muitas sobremesas). E há verbos epistémicos, perceptivos, psicológicos e outros, há o tema e o rema, e deve haver coerência e relevância do tema com o rema; há o determinante e o modificador, o determinante possessivo pode ocorrer no modificador apositivo e as locuções coordenativas podem ocorrer em locuções contínuas correlativas. Estão a ver? E isto é só o princípio. Se eu disser: Algumas árvores secaram, ”algumas” é um quantificativo existencial, e a progressão temática de um texto pode ocorrer pela conversão do rema em tema do enunciado seguinte e assim sucessivamente.

No ano passado se disséssemos “O Zé não foi ao Porto”, era uma frase declarativa negativa. Agora a predicação apresenta um elemento de polaridade, e o enunciado é de polaridade negativa.

No ano passado, se disséssemos “A rapariga entrou em casa. Abriu a janela”, o sujeito de “abriu a janela” era ela, subentendido. Agora o sujeito é nulo. Porquê, se sabemos que continua a ser ela? Que aconteceu à pobre da rapariga? Evaporou-se no espaço?
A professora também anda aflita. Pelo vistos no ano passado ensinou coisas erradas, mas não foi culpa dela se agora mudaram tudo, embora a autora da gramática deste ano seja a mesma que fez a gramática do ano passado. Mas quem faz as gramáticas pode dizer ou desdizer o que quiser, quem chumba nos exames somos nós. É uma chatice. Ainda só estou no sétimo ano, sou bom aluno em tudo excepto em português, que odeio, vou ser cientista e astronauta, e tenho de gramar até ao 12º estas coisas que me recuso a aprender, porque as acho demasiado parvas. Por exemplo, o que acham de adjectivalização deverbal e deadjectival, pronomes com valor anafórico, catafórico ou deítico, classes e subclasses do modificador, signo linguístico, hiperonímia, hiponímia, holonímia, meronímia, modalidade epistémica, apreciativa e deôntica, discurso e interdiscurso, texto, cotexto, intertexto, hipotexto, metatatexto, prototexto, macroestruturas e microestruturas textuais, implicação e implicaturas conversacionais? Pois vou ter de decorar um dicionário inteirinho de palavrões assim. Palavrões por palavrões, eu sei dos bons, dos que ajudam a cuspir a raiva. Mas estes palavrões só são para esquecer. Dão um trabalhão e depois não servem para nada, é sempre a mesma tralha, para não dizer outra palavra (a começar por t, com 6 letras e a acabar em “ampa”, isso mesmo, claro.)

Mas eu estou farto. Farto até de dar erros, porque me põem na frente frases cheias deles, excepto uma, para eu escolher a que está certa. Mesmo sem querer, às vezes memorizo com os olhos o que está errado, por exemplo: haviam duas flores no jardim. Ou: a gente vamos à rua. Puseram-me erros desses na frente tantas vezes que já quase me parecem certos. Deve ser por isso que os ministros também os dizem na televisão. E também já não suporto respostas de cruzinhas, parece o totoloto. Embora às vezes até se acerte ao calhas. Livros não se lê nenhum, só nos dão notícias de jornais e reportagens, ou pedaços de novelas. Estou careca de saber o que é o lead, parem de nos chatear. Nascemos curiosos e inteligentes, mas conseguem pôr-nos a detestar ler, detestar livros, detestar tudo. As redacções também são sempre sobre temas chatos, com um certo formato e um número certo de palavras. Só agora é que estou a escrever o que me apetece, porque já sei que de qualquer maneira vou ter zero.

E pronto, que se lixe, acabei a redacção - agora parece que se escreve redação. O meu pai diz que é um disparate, e que o Brasil não tem culpa nenhuma, não nos quer impor a sua norma nem tem sentimentos de superioridade em relação a nós, só porque é grande e nós somos pequenos. A culpa é toda nossa, diz o meu pai, somos muito burros e julgamos que se escrevermos ação e redação nos tornamos logo do tamanho do Brasil, como se nos puséssemos em cima de sapatos altos. Mas, como os sapatos não são nossos nem nos servem, andamos por aí aos trambolhões, a entortar os pés e a manquejar. E é bem feita, para não sermos burros. 

E agora é mesmo o fim. Vou deitar a gramática na retrete, e quando a setôra me perguntar: Ó João, onde está a tua gramática? Respondo: Está nula e subentendida na retrete, setôra, enfiei-a no predicativo do sujeito.
João Abelhudo, 8º ano, turma C (c de c…r…o, setôra, sem ofensa para si, que até é simpática).
Teolinda Gersão, junho, 2012

Acompanhe a página da Livraria Snob no Facebook. Abre brevemente, em Guimarães. Pode lá encontrar este e muitos outros textos.

Foto frase do dia: Harper Lee


sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Lembrete: uma ponta de surrealismo português

LAFCÁDIO

o que a minha mão segue
tem mais perplexidade que moral
nunca é só triste nunca é só alegre
é o instante a curva desigual
a seta desferida
pela gratuitidade acontecida




Mário Cesariny, in Manual de Prestidigitação, Assírio e Alvim

Gina Matos ganha o passatempo «A solidão dos inconstantes»


Parabéns Gina Matos. Vai levar para casa o livro A solidão dos inconstantes, da Raquel Serejo Martins.

O que tem que fazer agora? Contactar o blog para sabermos a sua morada! Procure-nos no facebook (na página ou no grupoou envie email para: blogueclubedeleitores@gmail.com

O que se pedia era responder à seguinte questão - Qual foi o momento mais solitário que viveram?

E esta é a frase vencedora, com grande mérito. Parabéns!

Gina Matos

O momento mais solitário da minha vida, foi aquele em que estando a teu lado, te senti, te cheirei, te abracei, te amei...mas quando te olhei nos olhos vi a tua alma longe... afinal era só um corpo.

ALA ... que é poesia XIV

A compilação dos poemas de António Lobo Antunes continua. Este, mais ligeiro, surge musicado e cantado por Vitorino no disco "A Canção do Bandido", de 1995.
O video, já sabem, tem link lá no fundo.


Ana Almeida



Fado da Pré-reforma

Almofada de missanga
para deitar a cabeça
e um fumo negro na manga
antes que alguém adoeça.


Quando saio pró emprego
dizes-me adeus do postigo:
Gosto de ti, seja cego,
fique já aqui tolhido!


Tomo o meu chá de limão
na leitaria da esquina:
ao beber treme-me e a mão
se ao meu lado no balcão
se empoleira uma menina.


Almoço um pastel folhado
volto ao escritório a correr
sento-me à mesa apressado
e logo o patrão, zangado,
Antunes, não pode ser!


No trinta e oito p´ra Chelas
leio a bola ao solavanco
passam postes e janelas
chamam no alto as estrelas
há quem voe para elas
e eu sentado no banco.


Esfrego os pés no capacho
vens de robe dar-me um beijo
que sejas nova não acho
mas calo-me, ponho um pacho,
e enquanto aqueces o tacho
vai-se-me logo o desejo.


E tu, em Marvila: Amor
não gostas do meu cozido?
mas seja lá como for
gosto de ti sim senhor
fique já aqui tolhido!


António Lobo Antunes

PARA VER O VIDEO SIGA O LINK
http://www.youtube.com/watch?v=K05rXvW1POY

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Foto frase do dia: Bukowski


Eu poético: «Foge»

Foge

foge comigo esta manhã.

o frio sobe da terra,
o orvalho cai das folhas,
os pardais cantam 
e banham-se nas poças de água.
tomamos café na padaria da esquina,
compramos o jornal,
apanhamos o metro
e a seguir o comboio.
vamos sem destino, 
temos o dia inteiro para nós 
e uma vida à nossa frente.

ou então
foge comigo esta tarde.

fumamos um cigarro depois do almoço,
estendemo-nos no relvado 
e sentimos o sol tímido que espreita por entre as nuvens.
abrimos uma garrafa de vinho
e brindamos ao amor.
ao nosso e ao dos outros,
ao amor em geral.
depois vamos para o rio atirar pedras.
por fim, rimo-nos dos engravatados carrancudos
que entram nos carros 
e só chegam a casa dentro de uma hora.

não!
fugimos de noite.

quando todas as persianas e portas estão fechadas,
quando a luz mais forte é a dos candeeiros
e temos a lua para nós. 
já bêbados,
deambulamos por aí e
dizemos segredos um ao outro.
adormecemos agarrados num só.
sonhamos que isto não vai ter fim,
nem mesmo com a morte.

foge comigo, mas foge hoje.
foge...
que eu amanhã já me vou. 

Rodrigo Ferrão

Foto: Rodrigo Ferrão

a-ver-livros: à saída

Acaba-se só
sempre só
só cansaço
só amargo
só restos de festa
e meia dúzia
de hipócritas
a ver se ainda há algo
nas garrafas
acaba-se apenas
adeus e um queijo
e uma leva de restos
acaba-se tudo
pó e nada

Ana Almeida

* para saber mais sobre a artista francesa Veronique Didierlaurent
siga o link didierlaurentveronique.com/

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Só mais uma pitada de Pina

Matéria de Estrelas

Porque é tudo para sempre, mesmo a efémera morte,
encontrar-nos-emos eternamente
e nunca mais nos veremos.
O impossível volta a ser impossível para sempre.

Impossível é cada manhã aberta,
um deus sonha comigo através de nós.
Às vezes quase posso tocá-lo, ao deus,
surpreendê-lo no seu sono, também ele real e efémero.

Matéria, alma do nada,
os mortos ouvem a tua música sólida
pela primeira vez, como uma respiração de estrelas.
A sua intranquilidade transforma-se em si mesma, música.


in "Todas as Palavras"

Emílio Miranda, dia 10

Há um dia em que todos temos de desaparecer…
Sem arrependimentos, se bem que arrependidos!

Já me decidi
Vou deixar de escrever o que já ninguém lê.
Toda a vida cometi
O erro de acreditar na providência dos acasos
Mas os que as palavras provocam
Prevalecem para além do tempo
No ouvido da eternidade.

Emílio Miranda 


Foto: Cláudia Miranda

a-ver-livros: sede

É na nudez das horas
que se esconde o corpo
que se esconde a sede
do teu
líquido
fugidio
tão meu
que o meu 
se mistura no teu
e juntos correm para a foz
que eu sonho

Ana Almeida

* para saber mais sobre o pintor russo Nikolay Antonov
siga o link www.paintingofrussia.com


terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

É do borogodó: Uma dívida de gratidão, por Alice Vieira

Na casa onde vivi a minha infância e adolescência, a presença da morte sempre foi uma constante, e encarada daquela maneira normal que os longos hábitos provocam nas pessoas. Uma quase rotina. Sempre me lembro de haver em casa alguém doente. Muito doente. Gravemente doente. Moribundo. Morto.

 Passei a minha infância rodeada de tias e tios muito velhos, entre as paredes de um casarão com um grande corredor, que rangia pela madrugada dentro, sob os passos cadenciados do tio Ernesto, que sofria de insônias.

Naquele tempo era uma vergonha deixar morrer no hospital os paredes da província. Por isso havia lá em casa um quarto para onde vinham os velhos tios quase moribundos, donde passavam para a casa de jantar assim que morriam. A preceder a chegado do tio havia sempre um telefonema. A tia que fazia o telefonema murmurava, chorosa, “coitadinho, já vai para aí”. A tia que recebia o telefonema, igualmente chorosa, prometia que o tio, “coitadinho, já vinha aí”.

Então era um corrupio de médicos, e depois vinha o Sr. Pinto dar injeções, e a prima Luísa, enfermeira em Oncologia, aparecia sempre que lhe era possível, e as velhas tias davam ordens e tratavam de tudo, e faziam gráficos das temperaturas, e sabiam as horas de todos os remédios, e enchiam-se de olheiras e dormiam pouco.

De vez em quando, havia um ou outro tio que, sabe-se lá por que milagre, arrebitava. “São as melhoras da morte”, dizia então a tia Clara. Não eram, e ele já conseguia voltar para a terra. Então o quarto era limpo e esfregado, e estava de janelas abertas uma data de dias – mas a tia Clara nunca ficava muito convencida da cura, torcia o nariz e resmungava: ” Está aqui está a cair-nos cá em casa outra vez.”
Quase sempre acertava.

Então, depois de mais uns dias de cama, de idas e vindas de médicos,  do Sr. Pinto e da prima Luísa, o tio – ou a tia – acabava por morrer. As velhas tias e as criadas lá de casa desmanchavam a sala de jantar, a mesa enorme ficava empilhada nas muitas tábuas que a constituíam, as cadeiras encaixavam-se umas nas outras, e tudo enfiado para arrecadação. O tio morto era trazido do quarto e metido dentro do caixão colocado no meio da sala de jantar, exatamente no lugar onde habitualmente almoçávamos e jantávamos. Começavam a chegar muitas pessoas e muitos ramos de flores, o cheiro a éter misturando-se com o cheiro adocicado dos crisântemos, dos cravos, das rosas, dos lírios, e eu a pensar que pena a sala de jantar não estar sempre assim tão colorida.

Era muito divertido ter um tio morto em casa. As pessoas não se lembravam de mim, deitava-me à hora que me apetecia, e ninguém se importava em verificar se tinha lavado os dentes. E, a juntar a toso os rituais, havia ainda outro, o mais fascinante, o mais apetecido de todos: o ritual do livro. Enquanto aos adultos se servia café e biscoitos para aguentarem o velório madrugada fora – havia sempre uma tia (irmã do morto?, mulher do morto?, filha do morto?) que se aproximava e me entregava um embrulho, quase sempre de papel colorido e fita dourada, como se fosse Natal, e lá dentro – eu já sabia – um livro. O livro ia servir-me para aquentar o velório dentro do meu quarto, sem incomodar ninguém, pois toda a gente iria estar demasiado ocupada para me poder atender. O livro era a melhor companhia – enquanto na sala o morto repousava entre ramos, coroas e fitas lilases de saudade eterna.

Por isso as primeiras páginas da maioria dos meus livros de infância têm estranhas dedicatórias: “No dia da morte do tio António”, “para te lembrares da tia Leonarda, que tanto gostava de ti”, “com um beijinho da tia Maria, já que o tio Filipe, que morreu ontem, não te pode dar”. Outros mais lacônicos, dizem apenas: “No dia da morte do tio Filipe.” OU do tio Augusto. Ou do tio Ricardo.

Por isso hoje, à distância destes anos todos, eu confesso a minha profunda gratidão a essa imensa legião de tios mortos – tios diretos, tios-avós, tios-bisavós, tios que nem tios eram, mas que, por qualquer razão, tinham ganho o direito ao parentesco e a morrerem na minha sala de jantar. Foram eles, sem dúvida alguma, que, sem o saberem, fizeram nascer em mim a grande paixão pelos livros. Com os livros cresci, brinquei, ri, chorei. E fui educada pelas personagens que encontrei nas suas páginas e que, ao contrário dos velhos tios, não morreram nunca.

Alice Vieira

* o texto ‘Uma Dívida de Gratidão’ foi retirado da obra “Bica Escaldada”, de Alice Vieira. A acentuação gráfica seguiu as regras brasileiras para facilitar a compreensão dos nossos miúdos, opa, das nossas crianças.

Penélope Martins

Snobidando: Milan Kundera e Pablito

É um amor desinteressado: Tereza não quer nada de Karenine. Nem sequer exige que ele a ame. Nunca se atormentou com as perguntas que torturam os homens e as mulheres: Gostará ele de mim? Já terá amado alguém mais do que me ama a mim? Amar-me-á mais do que eu o amo? Todas essas interrogações que questionam o amor, que o medem, o perscrutam, o inspeccionam, não se arriscarão a matá-lo na casca? Se somos incapazes de amar, talvez seja por desejarmos ser amados, ou seja, por querermos alguma coisa do outro (o seu amor), em vez de chegarmos junto dele sem reinvindicações e não querermos senão a sua simples presença.

E ainda há mais uma coisa: Tereza aceitou Karenine tal e qual como ele é, não tentou modificá-lo, deu a sua anuência prévia ao seu universo de cão, não quer confiscar-lho, não tem ciúmes das suas tendências secretas. Se o educou, não foi com a intenção de modificá-lo (como um homem quer sempre modificar a sua mulher e uma mulher o seu homem), mas simplesmente para lhe ensinar a língua elementar que havia de permitir-lhes compreenderem-se e viverem os dois juntos.

E também: o seu amor pelo cão é um amor voluntário, ninguém a obrigou a isso. (Tereza pensa uma vez mais na mãe, e tem muita pena dela: se a mãe fosse uma daquelas desconhecidas da aldeia, talvez a sua jovial grosseria lhe parecesse simpática! Ah! se ao menos a mãe fosse uma estranha! (...))

Mas sobretudo, nenhum ser humano pode presentear outro com um idílio. Só o animal pode fazê-lo porque não foi expulso do Paraíso. O amor entre o homem e o cão é idílico. É um amor sem conflitos, sem cenas dilacerantes, sem evolução.


A Insustentável Leveza do Ser
Milan Kundera



Na foto: Pablito

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Renato Carreira e o seu livro: «Os filhos da Revolução»


Depois de umas experiências positivas com edições convencionais, é o primeiro romance que edito em formato autopublicado (com edição digital e em papel).

Depois de ter começado por vendê-lo, decidi torná-lo gratuito porque aceitei que não enriqueceria com ele e por achar que ser lido é mais importante do que juntar meia dúzia de euros das vendas.

É uma espécie de fábula contemporânea, se pudermos chamar-lhe assim, sobre um período agitado a nível político e económico num país que por acaso é o nosso, visto do ponto de vista de alguém que se envolve nessa agitação de forma completamente arbitrária e sem quaisquer nobreza de intenções ou de carácter.

*Renato Carreira

Num momento de invulgar consciência política, Júlio Mourão, dramaturgo falhado, escreve uma peça com mensagem e vende-a pela fama e fortuna a que sempre aspirou secretamente. Corroído por um remorso vago, quase nem percebe como uma simples travessia do Rossio o transforma num ícone revolucionário suficientemente vazio de conteúdo para inspirar multidões. 

Num país à beira do colapso, a contestação inevitável segue um rumo estranho, gravitando à volta de um líder contrariado que nem sequer se consegue liderar a si próprio.

“Os Filhos da Revolução é um romance sobre um país desiludido consigo mesmo.”

Renato Carreira nasceu no planeta Terra no final do segundo milénio contado a partir do nascimento de Jesus Cristo. Até à data, ninguém o considera messias de qualquer religião, mas mantém as esperanças. Enquanto não lhe é reconhecida veia messiânica, vai-se ocupando como pode. Mantém o e-zine satírico inÉpcia desde 2001 e, ao longo da década, conseguiu enchê-lo com palavras suficientes para alimentar duas compilações em papel. Escreveu também História de Portugal – Director's Cut, relatando a história portuguesa desde os antecedentes da nacionalidade até aos nossos dias de uma forma que não seria aprovada por nenhum historiador digno do nome. O Fim Chega Numa Manhã de Nevoeiro foi o seu segundo romance. O primeiro, contendo uma fórmula infalível para tornar Portugal um país rico e desenvolvido, está fechado a sete chaves e só será publicado mil anos depois da sua morte. Em 2013, mandou interromper a crise durante 3 minutos para publicar "Os Filhos da Revolução".

Toda a informação acima retirada de: https://www.smashwords.com/books/view/309892
Consulte o site do escritor: http://renatocarreira.com/

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Qual destas frases escolhem para ser a vencedora do passatempo «A solidão dos inconstantes»


Qual é a frase que escolhem para ser a vencedora do passatempo solidão dos inconstantes, da "nossa" Raquel Serejo Martins?

Estas são as quatro melhores frases a concurso. E vão agora a uma grande final que decorre até dia 20. A mais votada ajuda o júri a decidir o vencedor - basta comentarem este post (aqui no blog, na página do facebook ou também no grupo). 

Boa sorte!


~~__~~

Qual foi o momento mais solitário que viveram?

DanielaMP

No passado Domingo o vento forte levou o meu telhado cá em casa! Os meus pais no dia seguinte foram trabalhar e tive de ficar sozinha e tentar solucionar o problema! Liguei para os bombeiros, liguei para a protecção civil, etc. e ninguém podia resolver o meu problema. Foi tão assustador que ainda hoje tremo ao ouvir a mínima rajada de vento!

HenriqueBentinho

A solidão tomou conta de mim constantemente, ao deixar o meu país, longe da família e de amigos, longe das tradições, das danças e das canções.

Paulo Alexandre 

- O que é isso de estar solitário, pai? 
- Olha, filho é quando alguém está sozinho. 
- Sozinho? Mesmo? Sem ninguém, pai? 
- Sim sem ninguém! 
- Não é possível, pai! 
- Não? Porquê? 
- Ora! Porque mesmo sozinhos, podemos continuar a pensar nos outros. Mesmo que eu não esteja contigo, podes imaginar um diálogo. Não é? Assim como este que estás a ter agora comigo.

Gina Matos

O momento mais solitário da minha vida, foi aquele em que estando a teu lado, te senti, te cheirei, te abracei, te amei...mas quando te olhei nos olhos vi a tua alma longe... afinal era só um corpo.


*O vencedor terá que enviar-nos a sua morada. Em caso de não o fizer, o Clube atribuirá o livro a outro(a) finalista. Fique atenta(o)!

O dia em que conheci o Gonçalo



Nunca pratiquei o hábito de rascunhar palavras com o intuito de registar o meu dia. Por ceticismo ou passividade, deixei sempre essa ideia de elaborar um “diário” recolhida de lado. Não surgiu em mim uma repentina necessidade pessoal de o fazer, mas sim o sentimento de que um acontecimento específico teve o volume suficiente, relevante, para a minha pessoa o executar. Vi, ouvi e cumprimentei pela primeira vez o Gonçalo M. Tavares.

Tudo se passou na Almedina do Estádio da Cidade de Coimbra a pretexto da apresentação do seu novo livro; “Atlas do Corpo e da Imaginação” e contou com a presença do Professor Dr. José Carlos Seabra Pereira e do editor Zeferino Coelho.

O autor chegou num caminhar simples e já a Almedina estava lotada, com pessoas sentadas e muitas outras de pé. Ouviu-se um colega do professor José Carlos Seabra murmurando «é que ele escreve como quem reza» e ‘ele’ lá chegou e se sentou. O Zeferino foi o primeiro a falar (…) em nome da Caminho elogiou o trabalho de Gonçalo M. Tavares e sublinhou o esforço da editora em conseguir acompanhar os maiores trabalhos literários que se vão fazendo em Portugal. Posto isto, o professor discursou durante um bom tempo, sobre o Atlas, fazendo referências também a Uma Viagem à Índia, Aprender a Rezar na Era da Técnica e outros. Salientou a bagagem cognitiva do autor, como alguém que não cessa a procura do conhecimento. Referiu Lispector, Aristóteles, Llansol, Foucault, Deleuze e num tom de inveja brincalhona –saudável- citou mesmo uma passagem da obra apresentada que falando da temática do saudosismo, Gonçalo classifica a saudade como a «nostalgia das possibilidades».

O autor toma a palavra e num nervosismo desproporcional ao seu talento, começa por se declarar comovido com a quantidade de audiência que vê diante de si. Refere a importância da equipa dos Espacialistas que o acompanharam na elaboração do livro e salientou a importância das centenas de imagens que vão aparecendo ao longo das páginas e deixa bem claro que cada uma está no sítio preciso e correto onde ele pretende que estejam; e que esse perfecionismo só foi possível pelo esforço suplementar de elementos da editora Caminho, que apesar de executarem um trabalho na sombra, Gonçalo agradeceu e referenciou nomes, numa sinceridade tremenda.

«Não te leves demasiado a sério, mas leva a sério o Mundo» diz o autor que é uma premissa que o tem vindo a acompanhar com bastante clareza nestes últimos anos. «Podemos nos debruçar a pensar seriamente sobre um assunto, mas se alguém estiver ao nosso lado a morrer, vamos fazer um esforço para pensar o quê? O que há a pensar?» reforçou a soberania da doença e consequentemente de todos os fatores mundanos que escapam ao nosso controlo. A certa altura mudou de assunto para focar uma ideia que já tem vindo a referenciar noutras ocasiões: a importância de contemplar e da imaginação. Deu exemplos concretos que seriam desvirtuados pelo tempo que já passou e pelo meu défice de engenho na transcrição … mas a defesa acérrima do poder da criação de imagens e como esse ato perdura mesmo depois de nós morrermos (um edifício a ser construído, que teve na sua génese a imagem, o desenho – primeiro mental – de um arquiteto já falecido) foi constante. Foi claro na defesa das atividades que não têm ação imediata depois de executadas, como ler. Como devem ser praticadas e não esquecidas. Reforçadas e não banalizadas.

Quando cessaram as declarações, fez questão de cumprimentar todos os presentes e assinar as obras que cada um levava. Todos os pensamentos prévios, e opiniões formuladas em quatro paredes que carregava comigo, foram engolidas pelo nervosismo na hora de o cumprimentar e trocar umas palavras. No final com duas palmadas nas costas dizia-me ele «não te preocupes, no final espera-nos a todos o mesmo.»

Conhecer o autor em carne e osso, por várias razões, pode-nos moldar futuras leituras do mesmo no mau sentido do verbo, mas não neste caso. Génio, lucidez, sensatez e gratidão reunidas, numa personificação ideal.


Em suma, tudo isto foi o suficiente. Mais até.

a-ver-livros: asas abertas

Não me leias Yeats
ao lusco-fusco

não apanhas esta mosca
com esse mel
tenho outros voos 
à minha espera
asas abertas no calor
suave de outros braços
outro peito
onde pousar
outras mãos a virar folhas
poemas
detalhes do meu corpo
literário

Ana Almeida

* para saber mais sobre o pintor Arne Westerman
siga o link http://arnewesterman.com/

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Cronicando pela Ásia... quebrar a lei

Luang Prabang,
07 de Maio 2009


O fim-da-tarde em Luang Prabang foi para as compras. Como vos disse anteriormente, as pratas são um verdadeiro tesouro. Brincos, pulseiras... tudo o que possam imaginar. Os tecidos também são muito bonitos. Dá vontade de os trazer para a Europa e fazer roupa. 

Quando se compra alguma coisa no Laos, as mulheres abençoam a sua barraca com o dinheiro que lhe damos. Uma espécie de ritual de boa sorte. Agitam as notas em direcção aos objectos que têm, dizendo umas palavras e sorrindo muito. Participar numa compra é sustentar famílias, não é de admirar a felicidade com que ficam.

Depois de jantar, fui a um sítio com vista para o rio, do outro lado da cidade. Creio que se chamava Utopia. Depois segui para mais um bar, o Lao Lao Garden. O recolher obrigatório pôs-me o copo de plástico na mão e lá vim eu para a rua.

Como em tudo nestes países, os taxistas sabem sempre onde se quebram as leis. E lá se descobriu um sítio aberto depois do recolher obrigatório... ficava a uns vinte minutos de tuk-tuk. O espanto foi enorme quando lá cheguei: entrei num grande pavilhão de bowling

Olhei para os desordeiros que lá estavam: taxistas, estrangeiros e, claro está, prostitutas. O som era forte - um techno manhoso. E sim, as pessoas estavam lá a beber cerveja e a jogar bowling. Tudo na alegre cavaqueira, até às 3.30h da manhã! 

Digam lá se isto não são quebrar regras? Nem sei bem o que aconteceria se a polícia aparecesse... 

Sigo para casa tranquilo. Amanhã é dia de deixar a cidade. O objectivo é descer o Laos, com algumas paragens. 

Rodrigo Ferrão 

Tiago na toca e os Poetas: Pedro Puppe, Tiago Bettencourt e José Blanc De Portugal


A pedra

Na terra dormente
A crista do monte
A espuma da onda
A lei figura.
É sua imagem
— Acaso não.
Quem sabe?
Para além das coisas
Oculta é toda a dor
Como evidente
Só meio silente
Alto foge o céu.
A mão que morde…
A boca que prende…

*José Blanc de Portugal


MANIFESTO:

[...são os poetas que me fizeram começar a escrever. Eram no fundo os livros que tinha lá em casa e versões de fados que oiço desde que comecei a ouvir fado.Fui lendo o que tinha lá por casa. Fui roubar uns livros à biblioteca do meu pai. E depois fui marcando nos livros os vários poemas que gostava até ficarem dez. Depois mais duas ou três versões...] (Tiago Bettencourt).
(publico o disco/livro na integra,com foto do poeta José Blanc de Portugal

Foto frase do dia: Wilde