sábado, 24 de agosto de 2013

CARTA PARA JOSEFA, MINHA AVÓ - José Saramago

CARTA PARA JOSEFA, MINHA AVÓ

Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo – e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira – sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.

Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha.

Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste a lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja. (Contaste-me tu, ou terei sonhado que o contavas?) Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém.

Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, umas coisas que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro.

Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrijada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos – e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti – e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava. Não teremos realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido.

Fico com esta culpa de que me não acusas – e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: “O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!”.

É isto que eu não entendo – mas a culpa não é tua.



*José Saramago


Brás Cubas, o filme


Memórias Póstumas de Brás Cubas é também um filme. Realizado em 2001 por André Klotzel, o filme conta com a interpretação de Reginaldo Faria no principal papel. O filme conta ainda com a participação de Petrônio Gontijo (Brás Cubas jovem), Marcos Caruso, Stephan Neressian, Viétia Rocha, Walmor Chagas, Sônia Braga, entre outros.

Carta de Pessoa a Torga

Conhecia esta carta?

Carregue na imagem e leia-a.


sexta-feira, 23 de agosto de 2013

A paixão pelos livros nas palavras de um bibliófilo



Nas palavras do autor, aqui se tem a “prosa de um velho colecionador para ser lida por quem gosta de livros, mas pode também servir de pequeno guia aos que desejam formar uma coleção de obras raras, antigas ou modernas”. Este pequeno grande clássico da bibliofilia de língua portuguesa, esteve esgotado mais de 20 anos, no Brasil tendo sido reeditado pela Casa da Palavra, em 2005, segundo José Mindlin, “estava fazendo falta, e sua reimpressão é um bom serviço que os editores prestam à cultura brasileira”.

Em Portugal chega-nos pela mão da Letra Livre, que não só nos presta um excelente serviço como livraria e ponto de divulgação cultural mas também de há uns tempos para cá como editora, contando já com uma mão cheia de bons livros editados.

Um livro curioso para curiosos datado de 1965, editado pela Companhia Editora Nacional de São Paulo. Pequenos textos de Rubens Borba de Moraes sobre diferentes aspectos do coleccionismo de livros, e a cultura em volta de bibliotecas. Histórias pessoais em busca de exemplares e outros elementos. Borba de Moraes, bibliotecário, bibliógrafo e bibliófilo, foi director de diversas bibliotecas, entre elas a Biblioteca Nacional do Brasil e a Biblioteca da ONU.

Aqui ficam alguns excertos para abrir o apetite:

"O prazer de colecionar, a emoção de encontrar um livro procurado há anos, a volúpia de completar as obras de um autor, é, para o milionário que paga uma fortuna por um livro, a mesma do pobretão que encontra num sebo o volume sonhado”.

"O que o bibliófilo procura é um prazer intelectual e artístico e não o ganhar dinheiro”.

"Para se formar uma coleção homogênea sobre um assunto ou um autor é preciso ciência, conhecer a vida do autor, saber quando, onde publicou seus livros. É preciso toda uma soma de conhecimentos, uma verdadeira erudição.É aí que está a diferença entre o verdadeiro bibliófilo e o mero comprador de livros”
.

Fiama Hasse Pais Brandão: «Nos Arredores»

Nos Arredores

Morosamente correm
água e tempo. Fácil é
metaforizar o tempo
por dados da Natureza.
Água que jorra da boca
do cano de chumbo esvai-se
em velha caleira aberta
cai para o rego
entre pés de feijoeiro.

Acontece
em pormenor um dia algures.
De súbito feijoeiros cruzam-se
ou ventos no encaniçado
passam entre flor e vagem.
As mãos já sem corpo
tacteiam as folhas
acamam no cesto leve
as vagens verdes ignotas.
Serva morta, volta
a crescer da Terra
como as trepadoras.


*Fiama Hasse Pais Brandão, in Três Rostos - Ecos.

a-ver-livros: voos e Gelrev Ongbico

Não me prendas
solta-me
deixa-me voar
devagar
muito e longe

e talvez volte
para ti

* para conhecer mais sobre o pintor Gelrev Ongbico
siga o link gelrev.com

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

É do borogodó: em branco

o bilhete que escrevi para dizer meu adeus está em branco.
vai nele um poço de nada a dizer e uma gota de olhar que mancha o papel.
queria ser mais forte do que isso. queria ser surpreendente.
mas sou comum demais, querida. nunca saberia como dizer adeus.

Penélope Martins

Fiama Hasse Pais Brandão: «Imagem Minha»

Imagem Minha

Ficas a ler comprazida diante das rosas
silhueta que vislumbrei compus e reanimei.
Tinhas o perfil marcado cruamente pela luz,
as mãos claras no colo, os cabelos despojados
do brilho das cabeleiras soltas, mas juvenis
e sacudidos no início da tarde com alegria.
As páginas balouçavam do mesmo modo que as rosas
porque ao começar a tarde nos dias de Verão
brisas e vapores estendem-se desde o mar
até às margens floridas. No teu banco
adornado por festões de rosas trepadeiras
afastas os olhos do livro não absorta
mas para sempre atraída por inúmeras imagens.


*Fiama Hasse Pais Brandão, in Três Rostos - Poemas Revistos.


a-ver-livros: desejos e Antonio Javier Caparo

Que dois planetas colidissem
e os céus explodissem

e a Terra se contorcesse
sobre si mesma
que dois pontos distantes
se encontrassem 
no mesmo nó
e não adivinhasse apenas
o teu respirar
mas ficassem teus lábios

tão perto
que o pudesse partilhar

Ana Almeida

* para saber mais sobre o ilustrador cubano Antonio Javier Caparo,
a viver no Canadá, siga o link www.antoniocaparo.com

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Gonçalo M. Tavares, uma vez mais

animalescos de Gonçalo M. Tavares já chegou. Pela mão da Relógio D'Água.


No suplemento «Atual» de 10 de Agosto, Pedro Mexia faz a crítica de «animalescos» de Gonçalo M. Tavares.
«O título é todo um programa, e a capa, uma reprodução de Bacon, também. Tavares estudou o “mal” enquanto categoria histórico-filosófica em obras como a tetralogia “O Reino”; mas "animalescos" mostra “o mal” como condição, numa sequência de cenas medonhas: doentes psiquiátricos que abrem literalmente a cabeça, pedintes que comem moedas, cães despedaçados por urubus, miúdos criados como bestas, hospitais atacados por predadores, filhos que enterram vivo um pai esquizofrénico, médicos que dão marteladas aos seus pacientes. (…) Quando a "New Yorker" escreveu que em Gonçalo M. Tavares “a lógica pode servir eficazmente tanto a loucura como a razão”, definiu, por antecipação, este livro inquietante e feroz.»



Fiama Hasse Pais Brandão: «Estrada de Fogo»

Estrada de Fogo

Pedra a pedra a estrada antiga
sobe a colina, passa diante
de musgosos muros e desce
para nenhum sopé;

encurva, na abstracta encruzilhada;
apaga-se, na realidade. Morre
como o rastilho do fogo,
que de campo em campo aberto

seguia, e ao bater na mágica cancela
dobrava a chama, para uma respiração,
e deixava o caminho do portal
incólume e iniciado.


*Fiama Hasse Pais Brandão, in Três Rostos - Ecos


foto: Luís Pereira

a-ver-livros: um dia e Andrea Musso


E um dia
viro tudo de pernas
para o ar
rasgo os restos
dos pergaminhos
e deito fogo
ao que nos prendeu

Um dia 
dou a volta a isto
revolvo a memória
no chão dos estertores
e entrego os escritos
às águas

Um dia
esquecida de mim
esquecerei de ti

* para conhecer mais sobre o pintor italiano Andrea Musso
siga o link www.andreamusso.com

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Fiama Hasse Pais Brandão: «Idade»

Idade

Conheci dias duradouros,
o sol tão longo entre manhã e tarde.
Um levantar súbito de luz
por trás da crista das heras no muro velho,
e depois descer no verão entre grades verdes
e para além do portão como a cair no Hades,
no inverno. Não havia tempo
nos dias longos, mas a passagem diária
do sol abençoado.


*Fiama Hasse Pais Brandão, in Três Rostos - Poemas Revistos


É do borogodó: espreitar o segredo

A felicidade é uma menina pequena
corre pela praça atrás dos cachorros.
A felicidade é uma menina pequena
cavouca os canteiros das plantas,
quer descobrir tatus-bola.
E cada tatu bolinha
Cocegando com suas patinhas,
Aumenta a felicidade
Da menina pequenina.
Ela ri, ela roda, ela corre, ela pula
Ela diz ao mundo inteiro
Coisas simples de dizer.


* poesia para coletânea ainda em quase segredo.
Poema de Penélope Martins

a-ver-livros: perdidos e achados e Pierpaolo Rovero

Se me voltares a encontrar
serei
tua

Se me voltares a perder
encontrarei
outro rumo
outra estante
outro amor

* para saber mais sobre o pintor Pierpaolo Rovero
siga o link www.pierpaolorovero.com

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Handwritten Manuscript Pages From Classic Novels: Marcel Proust

Já alguma vez pensou ver Marcel Proust desta forma? Então fique com uma das páginas de Em busca do tempo perdido, escrita pelo próprio.

Visite o site http://flavorwire.com para encontrar mais. 
Siga o link directo.

in «Ar de Dylan»

Nunca sabemos quem somos. São os outros que nos dizem quem e o que somos. Explicam-nos tantas vezes quem somos, e de formas tão diferentes, que, no final, acabamos por não saber em absoluto quem somos. Todos dizem de nós algo diferente. Até nós mesmos estamos sempre a mudar de opinião. Se a isso acrescentarmos que nos esforçamos por surpreender os outros sendo várias pessoas ao mesmo tempo, o que na verdade acaba por acontecer é que acabamos por não ter a menor noção de quem somos ou poderíamos ter sido.

*Enrique Vila-Matas, in Ar de Dylan - ed. Teodolito. 

Fiama Hasse Pais Brandão - poema dito por Jorge Silva Melo


*Fiama celebrava aniversário a 15 de Agosto.
Poema descoberto e partilhado pela Julieta Monginho. 

domingo, 18 de agosto de 2013

Poema à noitinha... o frio de Cecília Meireles

Prazo de Vida

No meio do mundo faz frio,
faz frio no meio do mundo,
muito frio.

Mandei armar o meu navio.
Volveremos ao mar profundo,
meu navio!

No meio das águas faz frio.
Faz frio no meio das águas,
muito frio.

Marinheiro serei sombrio,
por minha provisão de mágoas.
Tão sombrio!

No meio da vida faz frio,
faz frio no meio da vida.
Muito frio.

O universo ficou vazio,
porque a mão do amor foi partida
no vazio.


*Cecília Meireles, in Mar Absoluto


Cronicando pela Ásia... A gruta dos morcegos

Mar da Tailândia, 
30 de Abril 2009

Imaginem uma gruta no meio do mar. Façam um esforço... Por entre aquelas pequenas ilhas escarpadas, surgem buracos escuros. E nada melhor do que pegar num caiaque e explorar todos os cantos. Com a ajuda preciosa de um remador, que conhece aquelas bandas como ninguém. 

Fui parar a uma ilha sem praia no meio. O acesso era uma pequena entrada (só a nado ou com um barco pequeno chega lá alguém). Os movimentos suaves do remo conduziam-me por pequenos canais onde tinha que baixar a cabeça para não bater nas estalactites. Ao longe, apontou o guia, uma rocha com boca de peixe.


 E, de facto, parecia.


Voltar ao barco principal com nova missão: ver a gruta dos morcegos! Lá avistei a escura casa dos bichos, ao longe. Uma toca no meio do oceano, aparentemente ninguém imaginaria ali vida... Entrei e rapidamente fiquei sem luz. Levava uma lanterna para apreciar o espectáculo. O cheiro era muito intenso, parecia enxofre. Apareceram os simpáticos animais, numa grande colónia. Dormiam pendurados de cabeça para baixo, muito sossegados e pachorrentos.



Pelo caminho pude apreciar as estalactites e estalagmites que se formaram ao longo dos anos. Uma tinha o nome de ice cream (gelado). Tirei algumas fotografias na escuridão. Fiz um ou outro filme. E continuei a ser guiado pelo remador novamente até à entrada.




Voltei a avistar a luz. Era tempo de partir para terra novamente. Para trás deixava todos aqueles pequenos Dráculas. 

Rodrigo Ferrão

Brás Cubas: personagem inesquecível

AO LEITOR

Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, cousa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são duas colunas máximas da opinião. 

Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos cousas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se não te agradar, pago-te com um piparote, e adeus.

BRÁS CUBAS


*in Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis.