sábado, 19 de abril de 2014

Poema à noitinha... Fátima Maldonado

Campo de Refugiados

Alguns não os víamos há anos
faziam parte da nossa mais salubre
juventude
no trabalho ainda havia escape
no amor ainda havia perigo
banquetes celebravam extorsões
compromissos sagrados aluíam
amores mais indeléveis
sucumbiam aos uivos
nas coutadas
frente à horda não havia defesa
aquele vírus jovem não cedia
pisava ameaças ignorava apelos
qualquer moderação nos parecia funesta.
(...) Os poucos resistentes engordaram
sofrem do coração bebem cerveja
têm a pasta surrada de desgostos
outros alistam-se na cave do comércio
mirram no pó as caudas abanadas
à cintura as facas do açougue,
sabujos escrevem coisas irrisórias
enquanto a terra se torna combustível.


*Fátima Maldonado, in Vida Extenuada

Snobidando: Valter Hugo Mãe

Valter Hugo Mãe


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Momento ilustração do dia: Ina Hattenaueur

image de Ina Hattenaueur


Encontrado na página Improbables Bibliothèques, 
Improbables Librairies. A não perder por nada! 

Foto frase do dia: José Mauro de Vasconcelos


sexta-feira, 18 de abril de 2014

i can always make them smile from white castle to the nile

Too Early, de James Tissot, 1873
Fonte: Pinterest

"É dificílimo desentorpecer e fazer rir estas meninas de sangue frio; para tal é necessária uma grande arte, ou, melhor ainda, não é preciso arte nenhuma. Tem de se falar de um modo que não seja inteligente de mais nem engraçado de mais, têm de perpassar por tudo aquelas insignificâncias que tanto agradam às mulheres. Neste particular, há que fazer justiça aos senhores acima referidos. Possuem o dom especial de se fazer ouvir por estas beldades e de as fazer rir. Exclamações afixiadas pelo riso: "Ah, deixe-se disso! Não tem vergonha de me fazer rir tanto?", são muitas vezes a melhor recompensa deles."

Avenida Névsky, em Contos de São Petersburgo, de Nikolai Gógol

a-ver-livros: oração

Como tu oras
eu sento-me frente às ervilhas
de cheiro
entrego-me à serenidade
palpável da manhã
e ouço no silêncio povoado
de sons
as palavras rituais
que não estão escritas

Mais próxima da divindade
nascida terra
sei-me una
e alinhada com os astros

Ana Almeida


Saramago sobre Gabriel

Os escritores dividem-se (imaginando que aceitem ser assim divididos…) em dois grupos: o mais reduzido, daqueles que foram capazes de rasgar à literatura novos caminhos, o mais numeroso, o dos que vão atrás e se servem desses caminhos para a sua própria viagem. É assim desde o princípio do planeta e a (legítima?) vaidade dos autores nada pode contra as claridades da evidência. Gabriel García Márquez usou o seu engenho para abrir e consolidar a estrada do depois mal chamado “realismo mágico” por onde logo avançaram multidões de seguidores e, como sempre acontece, os detractores de turno. O primeiro livro seu que me veio às mãos foi Cem Anos de Solidão e o choque que me causou foi tal que tive de parar de ler ao fim de cinquenta páginas. Necessitava pôr alguma ordem na cabeça, alguma disciplina no coração, e, sobretudo, aprender a manejar a bússola com que tinha a esperança de orientar-me nas veredas do mundo novo que se apresentava aos meus olhos. Na minha vida de leitor foram pouquíssimas as ocasiões em que uma experiência como esta se produziu. Se a palavra traumatismo pudesse ter um significado positivo, de bom grado a aplicaria ao caso. Mas, já que foi escrita, aí a deixo ficar. Espero que se entenda.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Até sempre, Garcia Marquez

E a notícia que se esperava adiada chegou esta noite. Gabriel Garcia Marquez abandonou o edifício dos vivos - mas não perde o seu lugar entre os grandes da literatura do século XX. Aos 87, o Nobel colombiano sucumbiu a uma infecção pulmonar que já o tinha hospitalizado durante uma semana. Regressou a casa ainda - que terá feito, dito, escrito, pensado nestes dias, perante a proximidade óbvia do fim? - apenas para sucumbir no dia de hoje. 

Até sempre, Gabo.

Ana Almeida


Foto frase do dia: Wilde

Poesia que passa ao lado #7

A queda


Os amigos rodeiam-se da calma necessária
em que eu somente me deixo transparecer. Dentro
de cada um existe um pedaço de vidro e de papel, como
se me despedaçasse quando me atiram
pedras.

O suor surge quando menos se quer que
se erga a cidade. Hoje é difícil criarmos-nos,
porque todos se deixam diluir como as
músicas como as palavras ao descerem
a pele em direcção ao rosto.

Deixa-se surgir a verdade. Deixa-se transparecer
pelo corpo     enquanto se foge do que
não sei. Enquanto. Durante a longa queda -
que se esvanece nos cabelos - existe um pequeno
lugar - junto aos dedos, não muito perto da mão -
onde todos os poemas nascem e morrem.

Onde todas as crianças crescem ou
desaparecem.

Como estas paredes que se desenham, com sorrisos
em lugar de quadros, com olhares despertos e interessados
no cansaço das minhas pálpebras.

Deixa-se correr a tinta pelos quadris,
ao molhar-se a pele chega o momento certo:
onde a bala do tempo se contorce.

Nem uma silva de prata a zunir pelo
quarteirão, um corte no peito, uma tentativa
de roubar de mim aquilo que nem eu tenho

como se fossem palavras ou gestos que
se esquecem quando o quarto fica escuro e só se
vêem diamantes e frases semi-apagadas.

Perco pela rua a roupa porque assim
me possuo. Porque assim consigo ver a tua face
onde ela já não existe.

Hoje está difícil andar. Está calor.
No adro da igreja ouvem-se pardais e pombos por
onde não quero passar.

O único caminho é por debaixo do peso
da explicação. Por debaixo de mim erguem-se vozes
que se assemelham a um poço de sangue

a um sorriso sem intenção.

É por isso que, quando nos reflectem
os braços do rio, nos esquecemos de dormir
enquanto implodimos dentro de alguém

como um poema.

Deixamo-los partir para que nada reste
deles - os amigos - e aí perguntam-nos
como nos sentimos e respondemos em silêncio
porque nada mais resta.




Sérgio Xarepe
*poema sugerido por Soraya Semenzato
*pintura de Jose Royo

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Foto frase do dia: John Keats


Snobidando: Giuseppe Ungaretti

Relento de Giuseppe Ungaretti, em "A Vida de um Homem"- Hiena Editora.

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a-ver-livros: sede

Anda
serve-me um copo
de palavras
daquelas que não secam 
gargantas
nem ficam entaladas
nos folhos em que escondemos 
as almas
medricas que somos
de nos dar ao tiro
de nos dar à morte
da sede 

Generoso, vá
que não há copos 
medidores
para palavras
nem tabelas de pontos
de ebulição

Amor pode ser nada
e nada pode ser tudo
e tudo pode ser bebido de um trago
sem ressaca
nem dicionários

Ana Almeida

* para saber mais sobre o ilustrador turco Ercan Baysal
siga o link www.flickr.com/people/ercanbaysal

terça-feira, 15 de abril de 2014

É do borogodó: o menino

lá vai meu menino
entre cascalhos a marulhar choro tímido.
sofro por ele essa dor de seguir ferido,
as asas cortadas sem alcançar
dois palmos do chão.
olha lá, ele se magoa nas pedras
olha como lhe brota visgo de sangue
olha em mim como ele me faz morrer.
ai, se ele  voltasse a me beijar o umbigo,
ai, se ele viesse morar aqui dentro
e se nós dois pudéssemos esquecer do tempo
em que o tempo era de nós roubado.

Penélope Martins

 

«Intempérie» - uma novidade para conhecer agora

O AUTOR-REVELAÇÃO DO ANO NA NARRATIVA ESPANHOLA 

MELHOR ROMANCE DO ANO 2013 
Leitores do El País 

LIVRO DO ANO 2013 
Grémio dos Livreiros de Madrid 

TRADUÇÃO DE RAQUEL OCHOA 

Um rapaz fugido de casa escuta, acocorado no fundo do seu esconderijo, os gritos dos homens que o procuram. Quando o grupo passa, o que fica à sua frente é a planície infinita e árida que deverá atravessar se quiser afastar-se definitivamente daquilo que o fez fugir. 

Uma noite, os seus passos cruzam-se com os de um velho pastor e, a partir desse momento, já nada será igual para nenhum dos dois. 

Intempérie narra a fuga de um rapaz através de um país castigada pela seca e governado pela violência. 

Um mundo fechado, sem nomes nem datas, no qual a moral se escapou pelo mesmo lugar por onde se sumiu a água. 

Nesse cenário, o menino, ainda não totalmente perdido, terá a oportunidade de se iniciar na dolorosa tarefa de julgar ou, pelo contrário, de exercer para sempre a violência que já provou. Através de arquétipos como o rapaz, o pastor ou o aguazil, constrói um relato duro, salpicado de momentos de grande lirismo. 

Um romance talhado palavra a palavra, no qual a presença de uma natureza inclemente alinha toda a história até se confundir com a trama na qual a dignidade do ser humano brota por entre as gretas secas da terra com uma força inusitada.

«Não consigo que me saia da cabeça; é um desses livros que te mudam ao lê-lo.» 

ELENA RAMÍREZ | EDITORA SEIX BARRAL 

«Uma experiência de leitura sem precedentes... Um livro de leitura obrigatória, um romance que está vocacionado para ter uma fantástica recepção entre os leitores.» 

MAAIKE LE NOBLE | MEULENHOFF BOEKERIJ, HOLANDA 

«Basta abrir o livro ao acaso e ler o que apareça para se aperceber de que o romance de Carrasco atinge a excelência. Intempérie, escrito por Jesús Carrasco, é um livro emocionante, comovedor, cheio de suspense, um começo literário com alma de clássico. A riqueza de Miguel Delibes e a força de Cormac McCarthy fundidas numa voz própria. Uma novela construída a partir de três arquétipos: um pastor, um aguazil e um rapaz simbolizam o bem, o mal e a inocência. Uma voz nova, com personalidade própria, sem dúvida o autor-revelação do ano na narrativa espanhola.» 

FERNANDO ARAMBURU | ESCRITOR E FILÓLOGO ESPANHOL

P.V.P.: 15,00 € 
Data de Edição: 2014
Nº de Páginas: 216
Editora: Marcador

*Este post é cópia do comunicado de Imprensa disponibilizado pela editora.

Vencedores do passatempo «500.000 visitas»

P.V.P.: 17,01 € (novidade)
Data de Edição: 2014
Nº de Páginas: 392
Editora: Editorial Presença

Parabéns Daniela MP, Leitora e viagensnaminhaterra. Cada um destes concorrentes vai levar para casa os livros Lady Almina e a verdadeira Dowton Abbey - de Condessa de Carnarvon e Longbourn, Amor e Coragem, de Jo Baker  - uma cortesia da Editorial Presença.

O que têm que fazer agora? Contactar o blog para sabermos a vossa morada! Procurem-nos no facebook (na página ou no grupoou enviem email para: blogueclubedeleitores@gmail.com

O que se pedia era relativamente simples, responder à seguinte questão -  Porque gosto do Clube de Leitores?


E estas são as frases vencedoras, com grande mérito. Parabéns!

~~__~~

DanielaMP
C onheço novos livros
L eio curiosidades
U so a imaginação
B alanço em sonhos
E spreito notícias

D ivirto-me com histórias
O scilo no imaginário
S into-me integrada

L anço-me nos dramas
E scondo-me nos terrores
I magino-me nos policiais
T orço nos romances
O uso criar poemas
R evejo narrativas
E ncontro fantasias
S onho com aventuras

Leitora
Gosto de livros
Gosto de livrarias
Gosto de bibliotecas
Gosto de ter amigos
Gosto de partilhar
Gosto de pensar com os outros
Gosto de conhecer e de saber
Gosto de desafios
Gosto de matar o tédio
Gosto de saborear momentos.
Tanto para gostar do Clube de Leitores!

viagensnaminhaterra
Eu gosto do clube de leitores ... porque existe ao ritmo da leitura de um bom livro. Sem pressa, com muito muito prazer e nao queremos que ele acabe nunca.

P.V.P.: 17,50 € 
Data de Edição: 2013
Nº de Páginas: 539
Editora: Editorial Presença

*O vencedor terá que enviar-nos a sua morada. Em caso de não o fizer, o Clube atribuirá o pack a outro(a) finalista. Fique atento!

Foto frase do dia: Bukowski


segunda-feira, 14 de abril de 2014

A propósito de TEORIA DOS LIMITES


Maria Manuel Viana em entrevista



“… e a alegoria consistia em que, por mais que o protagonista tentasse atingir a perfeição, esta era-lhe sempre negada, porque a procura (a demanda, a palavra do Pai) devia ser infinita, logo nunca poderia ser alcançada.”
in Teoria dos Limites, pág. 19

Raquel Serejo Martins: A perfeição é inatingível, está-nos negada, somos imperfeitos e incompletos? Temos de ser perfeitos?
Maria Manuel Viana: esta frase é dita por uma personagem, Mariana, que reinterpreta, à sua maneira, uma explicação que o pai, um escritor célebre, dá da cosmogonia de Leibniz: para o filósofo alemão, a perfeição era Deus; para Mariana e as pessoas (família, admiradores, leitores) o Escritor era uma espécie de deus. Não é revelado o tipo de perfeição exigido na tal alegoria de que falava o Escritor, nem a palavra perfeição tem o mesmo sentido no século XVII e nos dias de hoje. Não ocorreria a ninguém, suponho, declarar como objectivo de vida a obtenção da perfeição e/ou da completude, a não ser, eventualmente, em campos específicos: a música, a pintura, a literatura. Mas falamos de dimensões diferentes: a primeira, a de Leibniz, é uma abstracção, a segunda uma construção.

“A questão dos nomes sempre fora central na vida delas, pensa, não só os da família como todos os outros, classificavam as pessoas assim, os que eram dos nossos e os com nomes esquisitos, o mundo dividia-se entre os nomes-como-deve-ser e os ditos com desprezo, como se a própria palavra metesse nojo,…”
in Teoria dos Limites, pág. 24

RSM: O filósofo espanhol José Ortega y Gasset, em Meditaciones del Quijote, escreveu Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo. O nosso nome é a nossa condição? Será que nos conseguimos reinventar? Ou não passamos de pseudónimos de nós mesmos?
MMV: Quando Ortega y Gasset diz “eu sou eu e a minha circunstância”, fá-lo indicando que ninguém é um indivíduo isolado, independente do que à sua volta se passa. No fundo, é uma soma: eu+circunstância. Se, por hipótese, alguém conseguisse viver em duas épocas distintas, distintos seriam também o comportamento e a atitude. Se um de nós tivesse sido judeu ou alemão nazi ou pró durante a guerra, ou bósnio, sérvio ou croata durante a guerra dos Balcãs, independentemente de nos chamarmos à mesma Raquel ou Maria Manuel, teríamos sido pessoas diferentes.
Agora, aqui, neste caso específico da família da Teoria dos limites, os nomes são importantes porque identificam quem pertence a uma casta, a uma classe social favorecida, à aristocracia ou à alta burguesia: aí, as relações tendem a ser endémicas e a manutenção dos privilégios passa por se defenderem uns aos outros, em circuito fechado, rejeitando tudo o que vem de fora, porque se trata da sobrevivência enquanto clã, casta, classe.

“…dizia, a beleza é um verniz, estala, o importante não se vê, o mais profundo, o telúrico, que era uma das palavras de que ele mais gostava,…”
in Teoria dos Limites, pág. 31

RSM: Maria Manuel, a beleza é um verniz?
MMV: Não. A beleza, enquanto abstracção, não sei bem o que seja, depende de factores tão diferentes como a crença numa religião, (por exemplo, na Idade Média, a beleza é essencialmente uma criação divina e Deus é a beleza inefável que se manifesta no mundo sensível) ou a subjectividade (para Kant, traduz-se num juízo que exprime um sentimento de prazer). O que há é manifestações do belo: uma partita de Bach, um verso de Shakespeare, de Camões, de Célan, a carnation lily lily rose do John Singer Sargent, o binómio de Newton e a Vénus de Milo, Veneza, o mar da Costa Brava, a Maria Bethânia a cantar Pessoa, o In the mood for love do Wong Kar-wai, O Blade Runner do Ridley Scott, a voz da Emmanuelle Riva ou do Jeremy Irons,  etc etc.
Mais uma vez, a frase “a beleza é um verniz” só se compreende cabalmente ao sabermos que é enunciada por um militante comunista que tenta desvalorizar a namorada, Sofia, uma modelo lindíssima; ele rejeita tudo o que tem a ver com ela, a família, o dinheiro e critica-a por “se vender” em passagens de modelo. Tentei, obviamente, ser irónica, remetendo para o ideal de mulher comunista: operária ou camponesa, dessexualizada, irmã de armas e combate dos camaradas-homens.

RSM: Quais as palavras de que mais gosta?
MMV: Ah, tão difícil, a pergunta! Há palavras fascinantes e palavras horríveis. Sou muito sensível ao som de algumas palavras: blusa, por exemplo, odeio. Gosto muito de absoluto, profundo, memória, silêncio, subitamente, sim, não, talvez, ana, rasura. Detesto vogais abertas, evito sempre que posso. Por mim, falava e escrevia sempre com sons fechados.

“Não sabe se é dessa Sofia que tem saudades ou desse tempo, claro. Ninguém sabe nunca.”
in Teoria dos Limites, pág. 32

RSM: Tem saudades de outro tempo, de si? É dada a nostalgias?
MMV: Não, não sou. Ou não sou demasiado. Penso muito pouco no passado, em termos pessoais. Posso sentir saudades mas são efémeras e têm a ver com momentos específicos em que fui profundamente feliz: o começo de uma paixão, uma vitória política, a primeira palavra dos meus filhos, uma tarde numa esplanada com amigos a beber Martini.

“Não é dada a nostalgias, a infância é um atropelo de memórias com regras e deveres, uma espera para ter lugar à mesa dos crescidos, para lhe ser permitido sair com os amigos do irmão e da prima, para poder falar sem ser para responder a perguntas de circunstância, para caminhar sem ter de pôr um livro na cabeça a ver se não cai ou um debaixo de cada braço para saber se já sabe comer correctamente,…”
in Teoria dos Limites, pág. 39

RSM: A infância é o tempo da espera ou o tempo felicidade feito das coisas simples?
MMV: Tenho verificado, ao longo do tempo, que as pessoas tendem a mitificar a infância: não é raro ouvir alguém dizer que teve uma infância muito feliz. Exceptuando os casos de abusos (e conheço muitos, demasiados), há a ideia de um tempo passado que foi bom, em que éramos amados incondicionalmente. Não sou dada a saudosismos, como já disse, e, se quiser situar a altura da minha vida em que fui mais feliz não escolho a infância nem a adolescência. Aprendi a ser feliz já adulta.

“Pergunta-lhe porque escolheu para título Teoria dos limites, uma vez que teoria de limites é uma expressão de d’Alembert e não de Leibniz…”
in Teoria dos Limites, pág. 81

RSM: De certa forma repito a pergunta, porque é que escolheu o título Teoria do Limites?
MMV: Não há nenhum mistério nem nenhuma sabedoria da minha parte. Foi ao ler um Magazine Littéraire dedicado a Leibniz, antes mesmo de pensar escrever o livro a partir das ideias e da sua concepção do mundo. Mas foi um acaso, um acaso feliz: nunca fui boa aluna a Filosofia e, em princípio, era improvável que me detivesse a ler o dossier consagrado a Leibniz, de quem sabia muito pouco, excepto a aversão que causara em Voltaire (este último, sim, estudei-o). Folheei o dossier, mais ou menos distraída, detendo-me apenas nas caixas e nos sublinhados e, aí, li a expressão Teoria dos limites, que achei lindíssima. Voltei ao princípio da revista e li tudo, cuidadosamente: foi o início de uma pesquisa e de um estudo que me mergulhariam, durante três anos, no universo de Leibniz. Se alguém me tivesse dito, há uns anos, que eu iria ler Leibniz, ter-me-ia rido, por ser absolutamente improvável.

“…palavras que lhe pareciam de súbito demasiado banais, a perderem a força com que as pensara, palavras todas só com valor de uso, feias, utilitárias, instrumentais?”
in Teoria dos Limites, pág. 82

RSM: Só temos as palavras? O que nos resta quando as palavras não mais do que banais?
MMV: No princípio era o verbo, digo eu que sou ateia. No entanto, e essa é uma das teses do livro, a língua universal, mecanismo fundamental para a compreensão de todos os povos e, por isso, instrumento decisivo para a paz, seria composta por letras, notas de música, símbolos algébricos, símbolos químicos, gráficos, ideogramas, desenhos, figuras, cores, sons, cheiros… No fim do século XIX, um médico judeu inventou uma língua franca, o esperanto; depois, durante o nazismo e o estalinismo, os esperantistas foram perseguidos e, muitos deles, exterminados. Cresci na convicção de que o esperanto poderia ser uma via para o entendimento entre todos e um caminho para a paz. Quis fazer uma espécie de homenagem a essa tentativa de harmonia entre os povos.

“Porque a literatura, sabe?, é exactamente o oposto deste neopopulismo anti-intelectual que defende uma escrita linear para chegar ao grande público, esquecendo a herança de vinte e oito séculos e recusando-se a perceber que a literatura só persiste porque reescreve, revolucionariamente, não só o mundo em que vivemos como tudo o que já antes foi escrito.”
in Teoria dos Limites, pág. 86

RSM: Esta uma definição proposta pelo escritor, personagem principal neste livro. Como escritora também concorda com esta definição?
MMV: Penso que o neopopulismo está a tomar conta de tudo, desde a política às artes. O combate a tudo o que é intelectual insere-se no pragmatismo vigente. Não se pode escrever sem ter lido muito, muitíssimo, tal como não se pode governar esquecendo a História. Ninguém tem inspirações divinas, não há iluminados e, se os há, são perigosos. Irritam-me muito os escritores que afirmam não ser preciso ler Proust, Tolstoi, os clássicos, numa atitude de sobranceria que não entendo. Um escritor é, antes de mais, um leitor. Não gosto de atitudes que apagam a História, seja ela da literatura, da economia, da política, da arte, das civilizações. Essa espécie de virgindade e de inocência primitiva parecem-me uma construção não só falsa como presumida.

RSM: Qual a sua personagem preferida e porquê?
MMV: Não gosto de todas as personagens ou, pelo menos, não gosto igualmente de todas. Tem sido curioso ouvir as pessoas escolherem a personagem x ou y como a sua preferida; os homens, por exemplo, dizem ser a Mariana e a Paula e penso que nesta escolha, entre duas mulheres tão diferentes, se perpetua a velha oposição entre a mulher anjo e a mulher fatal, uma espécie de arquétipos do inconsciente masculino. As mulheres mais velhas preferem a avó, as mais novas oscilam entre a ana B. e a Mariana. Noutro dia, alguém me dizia que a Mariana e a MªJoão eram uma espécie de duplos, e dei-lhe alguma razão, embora não tivesse pensado nisso na altura. Confesso que tenho debilidade pelo João Caetano mas, provavelmente, é por ser homem e me ter sido muito complicado entrar nesse misteriosíssimo universo masculino.

RSM: Quais os seus limites?
MMV: Os meus limites: coarctar a liberdade do outro, ser injusta, não ser solidária, recusar participar em actividades cívicas ou políticas a favor do bem comum. O meu lema é tentar fazer com que as pessoas sejam um bocadinho mais felizes.


RSM: Terminado o livro, o trabalho de revisão é penoso e moroso ou, pelo contrário, é um trabalho fácil e de convivência pacífica?
MMV: Escrevo muito lentamente, sou obcecada pela verosimilhança e a verdade histórica, por isso não reescrevo quase nada, porque levo muito tempo a construir as situações, as personagens, as frases. Quando acabo, peço ajuda a três amigas muito próximas e cúmplices, a Inês Pedrosa, a Julieta Monginho, a Patrícia Reis que, generosamente, revêem e propõem alterações ou correcções. Também dou o manuscrito a ler ao meu filho mais novo, ao meu ex-marido e a dois ou três amigos, mas aí não é a ideia de revisão que me move e sim a da apreciação, a de ouvir as observações que fazem e que poderão levar a alguma alteração no caso de consideram que alguma coisa não está correcta ou não é suficientemente clara. Não é, portanto, um trabalho penoso nem moroso.

RSM: Não deixo de lhe dar os parabéns pelo livro, salientando que gostei muito da forma como rematou esta história ou Teoria, para terminar com a pergunta: que leituras a encantaram por estes dias?
MMV: Em primeiríssimo lugar, Os memoráveis, da Lídia Jorge, de que gostei imenso. Outro livro, absolutamente admirável e que devia ser de leitura obrigatória, foi A filha do Leste, da Clara Usón, que ganhou o Prémio da Crítica (o mais importante galardão espanhol), que acabei há pouco de traduzir. Reli também, para a propor como leitura comemorativa do centenário do nascimento da Duras na Casa Fernando Pessoa, A doença da morte, que é um dos livros da minha vida; dois romances sobre a guerra de 14, Au revoir, là haut, de Pierre Lemaitre (prémio Goncourt) e 14, de Jean Echenoz; a biografia de Jorge Semprún que, tal como a Duras, é um dos meus escritores favoritos; e ainda a tetralogia de Jean-Philippe Toussaint. Agora, espero ansiosamente que o carteiro bata à porta para me entregar o último romance de Ignacio Martínez de Pisón.

E muito obrigada em meu nome e em nome do Clube de Leitores, bem-haja!

Emílio Miranda, dia 18

Os escritores não morrem
Apenas deixam de escrever
Tal como as flores
Que apenas se despedem
Até à próxima primavera…

Os escritores não morrem;
Regressam noutras palavras
Nas fantasias de outra mente inspirada.

Os escritores não morrem
Retiram-se apenas
Para que outros se inspirem
Nas suas fantasias!

Emílio Miranda 


Foto: Cláudia Miranda

«Prometo Falhar» - Pedro Chagas Freitas lança livro amanhã

Sinopse
Prometo Falhar é um livro de amor.
O amor dos amantes, o amor dos amigos, o amor da mãe pelo filho, do filho pela mãe, pelo pai, o amor que abala, que toca, que arrebata, que emociona, que descobre e encobre, que fere e cura, que prende e liberta.
O amor.

No seu estilo intimista, quase que sussurrado ao ouvido, Pedro Chagas Freitas leva o leitor aos estratos mais profundos do que sente. E promete não deixar pedra sobre pedra.
Mergulhe de cabeça numa obra que mostra sem margem para equívocos porque é que é possível sair ileso de tudo.

Menos do amor.

Prometo Falhar é um livro publicado pela editora Marcador.

Amanhã o autor estará na Fnac Nortshopping, às 21:30. 

Pedro Chagas Freitas apresenta a sua nova aventura literária: o amor. No seu estilo intimista, quase que sussurrado ao ouvido, o autor leva o leitor aos estratos mais profundos do que sente. E promete não deixar pedra sobre pedra.

*http://www.culturafnac.pt/prometo-falhar/
foto: sapo.pt

a-ver-livros: lenda

Leva-me contigo no pensamento.
Leva-me leve 
ligeira
lendo um livro
ou apenas longamente esperando
a chegada do dia certo
para me tornar cinza
e lenda

Ana Almeida

* para saber mais sobre a pintora norueguesa Monika Helgesen
siga o link www.facebook.com/monika.helgesen

domingo, 13 de abril de 2014

Poema à noitinha... Jorge de Sousa Braga

“Primeiro misturam-se os ingredientes com redobrados cuidados: hidrogénio e hélio e alguns metais pesados Vai-se acrescentado massa (é como se fizesses pão) até que chega um momento em que esta entra em combustão e começa a brilhar E está a estrela pronta a usar.”

Hábitos de leitura

Encontrado na página Improbables Bibliothèques, 
Improbables Librairies. A não perder por nada! 

Quem é Auður Ava Ólafsdóttir?

P.V.P.: 17,50 € 
Data de Edição: 2014
Nº de Páginas: 348
Editora: Marcador

Auður Ava Ólafsdóttir nasceu em Reiquiavique, Islândia, em 1958. Estudou história da arte e teoria da arte e é actualmente professora de história da arte na Universidade da Islândia e directora da colecção de arte dessa instituição. Auður Ava é autora de vários romances, de um livro de poesia e de uma peça de teatro. Rosa Candida, publicado em 2007 com o título Afleggjarinn, venceu  diversos prémios entre eles um prémio literário para as mulheres da Islândia, e o prémio Prix de Page – determinado por um conjunto de mais de 700 livrarias em França – país no qual o livro se manteve na lista dos mais vendidos durante cinco meses consecutivos. Foi também nomeado para diversos outros prémios literários, incluindo o prestigiado galardão Femina. O seu nome do meio, Ava, foi escolhido há alguns anos como um tributo a Santa Ava, uma mulher cega da Idade Média que foi canonizada. A autora vive e trabalha em Reiquiavique.

*informação disponibilizada ao Clube de Leitores pela Editora

Foto frase do dia: Francis Fitzgerald