sábado, 30 de outubro de 2010

Nunca Conheci quem Tivesse Levado Porrada, Álvaro de Campos

Poema em linha recta

'Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possiblidade do soco;
Eu que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu que verifico que não tenho par nisto neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo,
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu um enxovalho,
Nunca foi senão princípe - todos eles princípes - na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana,
Quem confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Quem contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó princípes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde há gente no mundo?

Então só eu que sou vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.'

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Fernando Távora

«... projectar, planear, desenhar, não deverão traduzir-se para o arquitecto na criação de formas vazias de sentido, impostas por capricho da moda ou por capricho de qualquer outra natureza. As formas que ele criará deverão resultar, antes, de um equilíbrio sábio entre a sua visão pessoal e a circunstância que o envolve e para tanto deverá ele conhecê-la intensamente, tão intensamente que conhecer e ser se confundem...»

Palavras do mestre arquitecto. Fernando Luís Cardoso de Meneses e Tavares de Távora nasceu no Porto em 1923. Filho do meu bisavô José, sendo, portanto, irmão do meu avô - Bernardo Ferrão de Tavares e Távora (seu irmão mais velho).


Se, por pura infelicidade, não conheci o meu avô; com o Tio Fernando Távora vivi 22 anos mais ou menos por perto. As poucas conversas que tive foram sempre de um nível bastante elevado. Falo de um homem extremamente culto e muitos anos à frente do seu país.

As inúmeras obras que deixou ainda são uma referência de vanguarda na arquitectura. Távora fundou a 'Escola do Porto'. "Introduziu a partir dos anos 50, uma reflexão que não existia em Portugal, sobre o papel social da arquitectura, em oposição às realizações e aos discursos oficiais da época, a arquitectura contemporânea. Como criador de uma nova lógica de construção, prestou sempre atenção às paisagens originais, utilizando-as como dados culturais que devem ser integrados no diálogo com a construção final." Teve como alunos Siza Viera e Souto Moura.


Fundou a Escola de Belas Artes do Porto - mais tarde originou a Faculdade de Arquitectura do Porto - e o curso de Arquitectura em Coimbra.

"Na área da conservação do património deixou trabalhos inigualáveis, como a recuperação do Convento de Santa Marinha da Costa e sua transformação em Pousada (1975-1984) e a redescoberta e reabilitação do Centro Histórico de Guimarães (1985-1992), classificado como Património da Humanidade pela UNESCO em 2001; o projecto de remodelação e expansão do Museu Nacional de Soares dos Reis (1988-2001) e o restauro exemplar do Palácio do Freixo e áreas envolventes, no Porto (1996-2003)."

'Ficou a obra de um dos maiores vultos da Arquitectura Contemporânea Portuguesa, fundador e mestre da "escola do Porto", que precocemente reconheceu talento no aluno Álvaro Siza e soube, como ninguém, fazer a síntese entre a arquitectura tradicional nacional, marcante na sua obra dos anos 50 e 60, e a arquitectura moderna internacional, bem presente nos seus projectos dos anos 80 e 90 do século XX. É um autor da continuidade, avesso a rupturas, para quem uma obra arquitectónica tem de ser entendida no contexto do ambiente envolvente.
Como o próprio dizia, "eu sou a arquitectura portuguesa".'


Hoje deixo-vos alguns dos seus livros. Vale a pena... E a minha memória...

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Contagem decrescente para Marina...

Falta pouco para lermos as palavras do Diogo Martins acerca do livro deste mês, Marina. A ansiedade que levo até esse dia está moderadamente controlada, mas não inquieta a minha curiosidade e necessidade de debater este livro.

Hoje transcrevo na íntegra o prefácio escrito pela mão de Zafón. Ainda vão a tempo de discutir connosco mais um livro do clube. O repto fica lançado. Por volta de 5 de Novembro, o veredicto final!

Boa leitura


Amigo leitor

'Sempre acreditei que todo o escritor admita-o ou não, tem entre os seus livros alguns como favoritos. Essa predilecção é raro ter a ver com o valor literário intrínseco da obra ou com o acolhimento que ao aparecer lhe dispensarem os leitores ou com a fortuna ou penúria que lhe tenha proporcionado a sua publicação. Por qualquer estranha razão, sentimo-nos mais próximos de algumas das nossas criaturas sem sabermos explicar muito bem o porquê. De todos os livros que publiquei desde que comecei neste estranho ofício de romancista, lá por 1992, Marina é um dos meus favoritos.


Escrevi o romance em Los Angeles, entre 1996 e 1997. Tinha nessa altura quase trinta e três anos e começava a suspeitar que aquilo que um abençoado qualquer chamou a primeira juventude me estava a escapar à velocidade de cruzeiro. Publicara anteriormente três romances para jovens e pouco depois de embarcar na composição de Marina tive a certeza de que esta seria a última do género que escreveria. À medida que avançava na escrita, tudo naquela história começou a ter sabor a despedida e, quando a terminei, tive a impressão de que qualquer coisa dentro de mim, qualquer coisa que ainda hoje não sei muito bem o que era, mas de que sinto falta dia a dia, ficou ali para sempre.

Marina é possivelmente o mais indefinível e difícil de catalogar de todos os romances que escrevi, e talvez o mais pessoal. Ironicamente, a sua publicação foi a que mais dissabores me provocou. O romance sobreviveu a dez anos de edições péssimas e com frequência fraudulentas, que em algumas ocasiões, sem que eu pudesse fazer grande coisa para o evitar, confundiram muitos leitores ao apresentar o romance como o que não era. E, mesmo assim, leitores de todas as idades e condições sociais continuam a descobrir algo nas suas páginas e a aceder a essa água-furtada da alma de que nos fala o seu narrador, Óscar.


Marina regressa por fim a casa, e o relato que Óscar terminou por ela podem descobri-lo agora os leitores, pela primeira vez, nas condições que o seu autor sempre desejou. Talvez agora, com a sua ajuda, eu seja capaz de entender por que razão este romance continua a estar tão presente na minha memória como no dia em que o acabei de escrever, e saiba recordar, como diria Marina, o que nunca sucedeu.'

Barcelona, Junho de 2008
C.R.Z.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Miguel Torga - Um Reino Maravilhoso (Trás-os-Montes)

Vou falar-lhes dum Reino Maravilhoso. Embora muitas pessoas digam que não, sempre houve e haverá reinos maravilhosos neste mundo. O que é preciso, para os ver, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade, e o coração, depois, não hesite. Ora, o que pretendo mostrar, meu e de todos os que queiram merecê-lo, não só existe, como é dos mais belos que se possam imaginar. Começa logo porque fica no cimo de Portugal, como os ninhos ficam no cimo das árvores para que a distância os torne mais impossíveis e apetecidos. E quem namora ninhos cá de baixo, se realmente é rapaz e não tem medo das alturas, depois de trepar e atingir a crista do sonho, contempla a própria bem-aventurança.


Vê-se primeiro um mar de pedras. Vagas e vagas sideradas, hirtas e hostis, contidas na sua força desmedida pela mão inexorável dum Deus criador e dominador. Tudo parado e mudo. Apenas se move e se faz ouvir o coração no peito, inquieto, a anunciar o começo duma grande hora. De repente, rasga a crosta do silêncio uma voz de franqueza desembainhada:

- Para cá do Marão, mandam os que cá estão!...

Sente-se um calafrio. A vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror respeitoso se apodera de nós?


Mas de nada vale interrogar o grande oceano megalítico, porque o nume invisível ordena:

- Entre!

A gente entra, e já está no Reino Maravilhoso.

A autoridade emana da força interior que cada qual traz do berço. Dum berço que oficialmente vai de Vila Real a Chaves, de Chaves a Bragança, de Bragança a Miranda, de Miranda a Régua.

Um mundo! Um nunca acabar de terra grossa, fragosa, bravia, que tanto se levanta a pino num ímpeto de subir ao céu, como se afunda nuns abismos de angústia, não se sabe por que telúrica contrição.


Terra-Quente e Terra-Fria. Léguas e léguas de chão raivoso, contorcido, queimado por um sol de fogo ou por um frio de neve. Serras sobrepostas a serras. Montanhas paralelas a montanhas. Nos intervalos, apertados entre os rios de água cristalina, cantantes, a matar a sede de tanta angústia. E de quando em quando, oásis da inquietação que fez tais rugas geológicas, um vale imenso, dum húmus puro, onde a vista descansa da agressão das penedias. Mas novamente o granito protesta. Novamente nos acorda para a força medular de tudo. E são outra vez serras, até perder de vista.


Não se vê por que maneira este solo é capaz de dar pão e vinho. Mas dá. Nas margens de um rio de oiro, crucificado entre o calor do céu que de cima o bebe e a sede do leito que de baixo o seca, erguem-se os muros do milagre. Em íngremes socalcos, varandins que nenhum palácio aveza, crescem as cepas como os manjericos às janelas. No Setembro, os homens deixam as eiras da Terra-Fria e descem, em rogas, a escadaria do lagar de xisto. Cantam, dançam e trabalham. Depois sobem. E daí a pouco há sol engarrafado a embebedar os quatro cantos do mundo.

A terra é a própria generosidade ao natural. Como num paraíso, basta estender a mão.

Bata-se a uma porta, rica ou pobre, e sempre a mesma voz confiada nos responde:

- Entre quem é! Sem ninguém perguntar mais nada, sem ninguém vir à janela espreitar, escancara-se a intimidade duma família inteira. O que é preciso agora é merecer a magnificência da dádiva.

Nos códigos e no catecismo o pecado de orgulho é dos piores. Talvez que os códigos e o catecismo tenham razão. Resta saber se haverá coisa mais bela nesta vida do que o puro dom de se olhar um estranho como se ele fosse um irmão bem-vindo, embora o preço da desilusão seja às vezes uma facada.

Dentro ou fora do seu dólmen (maneira que eu tenho de chamar aos buracos onde vive a maioria) estes homens não têm medo senão da pequenez. Medo de ficarem aquém do estalão por onde, desde que o mundo é mundo, se mede à hora da morte o tamanho de uma criatura.

Acossados pela necessidade e pelo amor da aventura emigram. Metem toda a quimera numa saca de retalhos, e lá vão eles. Os que ficam, cavam a vida inteira. E, quando se cansam, deitam-se no caixão com a serenidade de quem chega honradamente ao fim dum longo e trabalhoso dia.

O nome de Trasmontano, que quer dizer filho de Trás-os-Montes, pois assim se chama o Reino Maravilhoso de que vos falei.


Miguel Torga
*fotos encontradas aleatoriamente no google, desconhece-se autoria

domingo, 24 de outubro de 2010

A Solidão é Sempre Fundamento da Liberdade


A solidão é sempre fundamento
da liberdade. Mas também do espaço
por onde se desenvolve o alargar do tempo
à volta da atenção estrita do acto.
Húmus, e alma, é a solidão. E vento,
quando da imóvel solenidade clama
o mudo susto do grito, ainda suspenso
do nome que vai ser sua prisão pensada.
A menos que esse nome seja estremecimento
— fruto de solidão compenetrada
que, por dentro da sombra, nomeia o movimento
de cada corpo entrando por sua luz sagrada.

Fernando Echevarría, in Sobre os Mortos