sábado, 27 de outubro de 2012

Cronicando pela Ásia... O primeiro olhar sobre Macau

Macau - 15 e 16 de Abril 2009


Chego a Macau e aguardo. Os amigos ainda não me vieram buscar. Consigo telefonar de uma cabine, sei que estão a caminho.

Pousei as malas e observei a cidade. É colorida pelos néon dos casinos. Erguem-se prédios como eu nunca vi ou imaginei. Depressa cheguei à conclusão que estava num mundo onde todos os sentidos se movem de acordo com as cores, os cheiros, os movimentos das pessoas...

Janto novamente em terra. Um restaurante aparentemente pobre em instalações, mas com uma belíssima vista para o rio. Rio salubre, de um castanho que não é igual à cor dos nossos. 

O restaurante é rico na variedade de pratos, de peixes e mariscos expostos em bacias cheias de água à entrada. É estranho vermos o nosso futuro jantar em bacias. Ou não tão estranho, se pensarmos que nas marisqueiras portuguesas vemos o jantar em aquários. 

A conversa rola em torno da emoção de ter chegado, das aventuras e desventuras que passei. Do interminável voo, com escala em Londres. Tantas e tantas horas passadas quase em claro. Treze das quais no mesmo avião. Nesse cubículo que voa pelos ares, havia um mapa digital num pequeno monitor que mostrava o que sobrevoávamos. Nunca mais acabava a Rússia... O mundo parecia não ter fim!

Terminado o jantar,  vou para uma rua de Macau onde há a maior concentração de pequenos bares e pubs. Mas não são assim tantos... Explicam-me não ser muito usual haver animação na rua. Estamos na cidade dos casinos: é lá onde as pessoas se divertem todos os dias e noites. 


Vamos a uma discoteca que fica num segundo andar de um gigantesco edifício. Parece um shopping, tem habitação. Mas tem também uma discoteca lá no meio.

Mal a porta do elevador se abre, o primeiro choque. Vejo um homem de meia idade careca com uma miúda nova. A rapariga seria menor, não sei bem dizer. É difícil avaliar a idade de um asiático. Mas pareceu-me muito nova para aquela figura. E bem distante da idade do ocidental.

É uma imagem que, apesar de custar, tenho que me habituar. Assim me dizem ser a Ásia. É impossível ficar indiferente. Mas não há nada que eu possa fazer.

Rodrigo Ferrão

Gabriela, a revolução da televisão em Portugal


Depois da comparação das actrizes no papel principal de "Gabriela" na obra do Jorge Amado vamos ver como foi a estreia da telenovela em Portugal, nos anos 70. Pouco depois da Revolução de Abril e do fim da censura em Portugal.

Mudanças na linguagem com introdução de novas palavras no vocabulário e no dicionário de português (de Portugal), trânsito parado, fenómeno de audiência na televisão e até os trabalhos da Assembleia da República parados para ver o último episódio. São muitos os episódios que marcam esta obra na adaptação a telenovela e a sua transmissão em Portugal, um país acabado de acordar para a democracia. Do Mário Soares ao Álvaro Cunhal ninguém ficou indiferente, numa época em que havia 150 aparelhos por cada mil habitantes.

Do boom da televisão para o boom de leitura do romance de Jorge Amado, o mais vendido na edição da Feira do Livro de Lisboa de 1977.

A SIC, a propósito da nova versão, apresentou uma reportagem no Jornal da Noite, aqui fica:



Episódios destes, registados no extinto semanário “O Jornal”, integram o estudo “A revolução da Gabriela: o ano de 1977 em Portugal”, que Isabel Ferin Cunha, professora da Universidade de Coimbra e investigadora do Centro de Investigação Media e Jornalismo, assinou no ano 2000, aquando das comemorações da chegada de Portugal ao Brasil. Uma tese que passou em revista o contexto político, social e cultural da época, bem como o destaque concedido à novela nas páginas dos diários e semanários, como o “Diário de Notícias”, o “Diário de Lisboa”, o “Expresso” e o referido “O Jornal”. 

Abertura da novela - Gabriela 1975 

a-ver-livros: inventário com John George Brown

Inventa-me uma rocha alta
acima das nuvens


Inventa-me um tempo recuado
mais de cem anos

Inventa-me um conto curto
menos de seis páginas

Inventa-me um amor perfeito
só eu e tu

e depois deixa-me.
Poucos saberiam viver
dentro deste inventário
e não serás excepção

* para conhecer mais da pintura de John George Brown
siga o link www.museumsyndicate.com

Cronicando pela Ásia... Hong Kong

Hong Kong - 15 de Abril 2009

Começa o frenesim mal saio da porta do avião. Cedo me apercebo que estou em minoria. Andamos habituados a ver grupinhos de chineses, japoneses e demais asiáticos por todo o lado. A tirar as suas fotos às coisas... Agora saio no aeroporto maior do mundo e vejo milhares deles. Sinto-me bastante pequeno.

Pergunto a três pessoas diferentes onde se apanha o ferry boat para Macau. Num inglês muito arcaico e por gestos, obtenho três versões diferentes... E agora?

Decido apostar na última e apanho um comboio para o centro de Hong Kong. Só mais tarde descubro que havia ligação a partir do aeroporto. Foi mais um passeio!

Chove, mas está um calor do outro mundo. Olho um mapa na rua mal saio da estação. Mas que rua é esta? Isto não é uma rua! Vejo em redor que por baixo de mim passam carros nas duas direcções, avisto o metro mais abaixo e tenho um mono carril a passar por cima, serpenteando pelos edifícios gigantes cujos topos não consigo ver...

Os corredores de peões suspensos no ar obrigam-me a entrar em inúmeros centros comerciais onde se encontram coisas que não estamos à espera: esquadras da polícia, sedes de bancos, demais serviços administrativos do governo de Hong Kong, escritórios e muito mais.

Mal entro sou bombardeado pela luz de centenas de lojas. Tudo pisca, tudo tem uma cor diferente. Os meus olhos não conseguem acompanhar tamanha diversidade e luz... 

Que mundo é este?

Ainda agora cheguei e já vou apanhar o barco para o outro lado. Espera-me novo lugar: Macau.

Tenho gente à espera!

Rodrigo Ferrão


sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Livres como Livros, no Porto


Diferentes figuras da cidade vão apresentar aos portuenses os “livros da sua vida”, em sessões gratuitas, realizadas na Biblioteca Municipal Almeida Garrett.

Até Dezembro de 2013, a Universidade do Porto e a autarquia local decidiram juntar-se e convidar os portuenses a serem “Livres como Livros”. A iniciativa, que arranca no próximo dia 30 com a participação de Luís Portela, chairman da BIAL, e de Jaime Milheiro, psiquiatra e psicanalista., visa promover a leitura junto dos cidadãos, através de um conjunto de debates sobre literatura com várias personalidades da cidade. Comissariadas pelas docentes da Faculdade de Letras da Universidade do Porto Isabel Pereira Leite, Isabel Morujão e Maria Luísa Malato, as actividades surgem divididas em dois grupos de sessões: “Livros da Minha Vida” e a “Arte de Sermos Livros”. A primeira corresponde a um ciclo de 15 sessões durante as quais diferentes personalidades da região são convidadas a escolher dois livros que marcaram a sua vida e a partilhá-los com os portuenses. Num segundo momento, o “Livres como Livros” reunirá duas ou três figuras por sessão, com o objectivo de apresentarem as suas experiências enquanto escritores e leitores.

O evento, que decorrerá na Biblioteca Municipal Almeida Garrett, será de entrada gratuita, ainda que exija uma inscrição prévia.

Livre é a palavra.
Livre é a mão que a escreve.
Livre é o olhar que sobre ela poisa.
Livre é o pensamento. O que a origina e o que dela nasce.
Livre é aquele que escolhe o momento em que os torna seus.
Livre é o que crê porque lê, e o que lê porque crê.
Livre é o que vê para além do que lê.
Livre é o que sente porque quer sentir.
Livre é o que chora e ri porque atravessou as palavras que tornou suas.
Livre é o que as oferece a quem as sonhou sem saber.
Livre é a folha em branco que aguarda a primeira palavra.
Livre é o que hesita em confiar-lha até, por fim, se decidir.
Livre é o que hesita em procurá-la até, por fim, a encontrar.
Infinitamente livres somos, como infinitamente livres são os livros. Por
sermos unos. Indivisíveis.
Livres somos, porque assim nos fizemos nas palavras que sempre
imaginámos e sempre dissemos.
Livres são os livros, porque assim se fizeram nas palavras que sempre
acolheram.
No tempo que esculpe as palavras que todos os contadores de
histórias lhe entregaram, se enredam homens e livros.
A ponto de, a cada acordar, se confundirem, por respirarem a
mesma liberdade.
Sim. Somos livres como livros.

Isabel Pereira Leite

os livros da minha vida
3ª | 21h15 | conferências | comunidade de leitores

30 Outubro | 20 Novembro | 11 Dezembro | 29 Janeiro | 26 Fevereiro | 26 Março | 30 Abril | 21 Maio | 18 Junho | 9 Julho | 17 Setembro | 8 Outubro | 12 Novembro | 3 Dezembro
| 17 Dezembro

a arte de sermos livros
sábado | 18h00 | a escrita, o livro e a leitura

| 10 Novembro | 1 Dezembro | 12 Janeiro | 9 Fevereiro | 9 Março | 6 Abril | 11 Maio | 15 Junho | 13
Julho | 21 Setembro | 19 Outubro | 2 Novembro | 16 Novembro | 7 Dezembro

Clube de Leitores COM_vida... Emílio Miranda. Hoje com o seu livro «O Livro dos Mosquetes»

À primeira vista (e quiçá à segunda e à terceira) poderá parecer um oportunismo da minha parte aproveitar este espaço para falar de uma obra da minha autoria.

Mas que grandessíssimo oportunista saí!

Pois bem, mais do que falar do livro propriamente dito, de que evito tecer comentários (aí sim seria considerado mais do que um oportunista; um vaidoso), falarei do que representaram os factos aqui descritos na história do Mundo, sem esquecer a de Portugal e a do Japão, obviamente, bem como o que representou para mim escrever este livro, que motivações e dificuldades me assaltaram durante cerca de um ano.

Como é sabido, pelo menos do que é hoje possível comprovar, os portugueses foram os primeiros ocidentais a pisarem terras do Japão. O facto histórico ocorreu a Sul do Arquipélago, na ilha de Tanegashima, onde terão aportado no distante dia 23 de Fevereiro de 1543. Tratar-se-ia de comerciantes acompanhados por mercadores e marujos chineses, conhecedores do povo e da língua, e deste modo preciosos auxiliares daqueles nossos conterrâneos, a mãos com a dificuldade de entenderem e se fazerem entender.


O fascínio pelo Japão Feudal surgiu com Xogum, primeiro através da visualização da série televisiva protagonizada pelo ator Richard Chamberlain, e logo de seguida pela leitura deliciada dos dois grossos volumes da autoria de James Clavell, rapidamente transformados em Best-Seller, nos quais se baseava precisamente a adaptação televisiva.

A estes seguiram-se Shibumi, de Trevanian, Ninja, de Eric Lustbader, O Samurai de Shuzaku Endo, entre inúmeras outras obras tendo como pano de fundo o Japão, a sua cultura, filosofia e peculiar modo de vida. Um povo disciplinado, estóico, capaz de superar as mais árduas adversidades, baseando-se sempre no princípio fundamental de viver para servir e morrer com honra.

Durante anos este fascínio foi assim alimentado até que em 2002 me cruzei com A Catedral do Junco, de Jacques Keriguy, livro que relatava os primeiros contactos dos Jesuítas com o País do Sol Nascente.

Foi precisamente ao ler a Nota, constante do final do livro, que me deparei pela primeira vez com a expressão Teppô-Ki – O Livro dos Mosquetes. Teppô-Ki era o título de um escrito da autoria de um monge budista, elaborado anos depois da chegada dos portugueses e significa precisamente A Crónica da Espingarda ou O Livro dos Mosquetes (tipo rudimentar de espingarda da época – Séc. XVI).


A ideia de escrever sobre o Japão, tantas vezes alimentada e, por receio, colocada imediatamente de lado, foi insuflada por uma espécie de inspiração instantânea, e a primeira frase que inicia a história foi escrita num ápice.

Porém, o que pretendia ser um pequeno conto transformou-se rapidamente numa história elaborada, de sinuosos contornos que ao longo de mais de um ano veio a transformar-se no primeiro esboço de romance que depois ficou adormecido, precisamente até à conclusão de A Princesa do Corgo, em 2008. Retomado, revisto vezes sucessivas, acabou na história de três portugueses que, após naufragarem na ilha de Tanegashima, a sul do arquipélago do Japão, desencadeiam uma autêntica revolução na cultura e nos ancestrais costumes japoneses de fazerem a guerra.

Atualmente, ainda é celebrada a chegada dos portugueses ao Japão, numa cerimónia que pode ser traduzida por Festival do Mosquete e que tem lugar precisamente a sul de Tanegashima, todos os 23 de Setembro.


Emílio Miranda


1º Parágrafo: Miramar


Finalmente, Alexandria!


* Tradução de Bard Hassanein
* Naguib Mahfouz nasceu no cairo em 1911, sendo até hoje o único autor de língua árabe galardoado com o Prémio Nobel da Literatura.

a-ver-livros: nariz de cão e Fiep Westendorp

Toda a poesia do mundo se concentra
no nariz de um cão molhado

e não se atrevam a desdizer-me 
que o sei e não foi de ler nos livros
nem de me perder nos prados da imaginação


* para saber mais sobre a ilustradora holandesa
Fiep Westendorp siga o link www.fiepwestendorp.nl

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Poema à noitinha... «Especial» Manuel António Pina

Continuamos cheios de saudades. 

Sem muitas mais palavras para te elogiar, resta-nos a poesia. Hoje fui pescar este belíssimo «Aos Filhos». E deixo-me encantar com a sensibilidade que tão bem sabias pôr em tudo o que escrevias.



Aos Filhos


«Já nada nos pertence,
nem a nossa miséria.
O que vos deixaremos
a vós o roubaremos.

Toda a vida estivemos
sentados sobre a morte,
sobre a nossa própria morte!
Agora como morreremos?

Estes são tempos de
que não ficará memória,
alguma glória teríamos
fôssemos ao menos infames.

Comprámos e não pagámos,
faltámos a encontros:
nem sequer quando errámos
fizemos grande coisa!»

*in "Um Sítio onde Pousar a Cabeça"

Clube de Leitores COM_vida... Emílio Miranda. Hoje com Catarina Gaspar

A Propósito de «A Esmeralda O Rei», de Catarina Gaspar



«Correm nas minhas veias animais selvagens
E o voo de todas as aves do firmamento»

Eis dois versos que nos despertam de imediato o apetite pela poesia de Catarina Gaspar, patentes na contracapa deste magnífico livro com 67 páginas, editado pelas Edições Mahatma, nova no panorama editorial português, mas nem por isso menos exigente em termos de qualidade, malgrado as concessões feitas por muitas congéneres, mais preocupadas em sobreviver do que em presentearem os leitores com o que de melhor se vai escrevendo em Portugal. Surpreende-nos este arrojo de qualidade, num universo inundado de edições avulso, muitas de duvidoso atributo e apenas editadas por serem comparticipadas pelo autor.

Impera neste pequeno livro a poesia sublime.

Um dia serei bebida pelo céu
Até lá habito o tempo
Com esta alma de rouxinol 


Assim se apresenta Catarina Gaspar, neste seu voo poético, com Alma de Rouxinol.

De uma força impar e de uma singeleza inesperada, a sua poesia derrama-se, como mel, como água, irrompe da terra, eleva-se aos céus. Telúrica, misteriosa, mágica.

Posso ter pés de cabra e uma barba bem sanhuda
Posso ser tomada à força como cadela
Em cima de qualquer monturo
A troco de um naco de pão para matar a fome
Posso ensandecer de medo e frio
Chegar esventrada e só ao fim da minha viagem
Que ainda assim hei de parir estrelas durante toda a eternidade 


A beleza destas palavras remete-nos para a natureza feminina, forjada pelas agruras da vida e ainda assim provida da poesia sonhadora que leva o rosto a alçar-se, a fitar as estrelas…

Apetecia-me tanto abrir as asas e partir com as gaivotas
Embrulhar os gritos roucos na melodia das ondas
Mas sento-me calmamente nos braços da noite (…) 


As palavras de Catarina Gaspar encantam-nos, seguramente, senhoras da magia da terra, da limpidez do céu… A ler. Pelos que apreciam Boa Poesia! E por todos quantos possam encantar-se, quando as palavras são, como é o caso, encantatórias.

Emílio Miranda

1º Parágrafo: A Jangada de Pedra


Quando Joana Carda riscou o chão com a vara de negrilho, todos os cães de Cerbère começaram a ladrar, lançando em pânico e terror os habitantes, pois desde os tempos mais antigos se acreditava que, ladrando ali animais caninos que sempre tinham sido mudos, estaria o mundo universal próximo de extinguir-se. Como se teria formado a arreigada superstição, ou convicção firme, que é, em muitos casos, a expressão alternativa paralela, ninguém hoje o recorda, embora, por obra e fortuna daquele conhecido jogo de ouvir o conto e repeti-lo com vírgula nova, usassem distrair as avós francesas a seus netinhos com a fábula de que, naquele mesmo lugar, comuna de Cerbère, departamento dos Pirenéus Orientais, ladrara, nas gregas e mitológicas eras, um cão de três cabeças que ao dito nome de Cerbère respondia, se o chamava o barqueiro Caronte, seu tratador. Outra coisa que igualmente não se sabe é por que mutações orgânicas teria passado o famoso e altissonante canídeo até chegar à mudez histórica e comprovada dos seus descendentes de uma cabeça só, degenerados. Porém, e este ponto de doutrina só raros o desconhecem, sobretudo se pertencem à geração veterana, o cão Cérbero, que assim em nossa portuguesa língua se escreve e deve dizer, guardava terrivelmente a entrada do inferno, para que dele não ousassem sair as almas, e então, quiçá por misericórdia final de deuses já moribundos, calaram-se os cães futuros para a toda restante eternidade, a ver se com o silêncio se apagava da memória a ínfera região. Mas, não podendo o sempre durar sempre, como explicitamente nos tem ensinado a idade moderna, bastou que nestes dias, a centenas de quilómetros de Cerbère, em um lugar de Portugal de cujo nome nos lembraremos mais tarde, bastou que a mulher chamada Joana Carda riscasse o chão com a vara de negrilho, para que todos os cães de além saíssem à rua vociferantes, eles que, repete-se, nunca tinham ladrado. Se a Joana Carda alguém vier a perguntar que ideia fora aquela sua de riscar o chão com um pau, gesto antes de adolescente lunática do que de mulher cabal, se não pensara nas consequências de um acto que parecia não ter sentido, e esses, recordai-vos, são os que maior perigo comportam, talvez ela responda, Não sei o que me aconteceu, o pau estava no chão, agarrei-o e fiz o risco, Nem lhe passou pela ideia que poderia ser uma varinha de condão, Para varinha de condão pareceu-me grande, e as varinhas de condão sempre eu ouvi dizer que são feitas de ouro e cristal, com um banho de luz e uma estrela na ponta, Sabia que a vara era de negrilho, Eu de árvores conheço pouco, disseram-me depois que negrilho é o mesmo que ulmeiro, sendo ulmeiro o mesmo que olmo, nenhum deles com poderes sobrenaturais, mesmo variando os nomes, mas, para o caso, estou que um pau de fósforo teria causado o mesmo efeito, Por que diz isso, O que tem de ser, tem de ser, e tem muita força, não se pode resistir -lhe, mil vezes o ouvi à gente mais velha, Acredita na fatalidade, Acredito no que tem de ser.


a-ver-livros: caos e circunstância com David Dunlop

Molhada como a alma
que todos os dias nada cem piscinas
nas lágrimas que sobram
dos dias de sol

Iluminada pelos relâmpagos 
Abalada pelos trovões
Apaixonada pela natureza
em caos e circunstância


Vontade de largar o livro 
e ir saltitar nas poças que fez a noite

* para saber mais sobre o pintor David Dunlop
siga o link paintingclass.net

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Sem gatos nem paciência.

(Por Mariana Jones)

Os nossos encontros eram sempre demorados para o esperado. Ele dizia-me sempre que estava bonita e que me parecia com a minha mãe.

E depois falava, falava e falava.

A última vez, depois de ter comprado 200 cafés, disse-me que queria e precisava ir viver sozinho. Sem gatos e sem ninguém.

- Preciso de tempo, para mim, para as minhas coisas. Preciso estar sozinho, para escrever.

Depois confessou-me que ia comer um prego (ou bitoque, para que se entenda) ali ao lado.
Nunca mais o vi. Só o espaço vazio das suas crónicas. E os livro que guardo e releio.

Não tenho paciência,
nem tempo que baste
(nem espaço, deixaste-me
pouco espaço para tanta existência)


(in Cuidados Intensivos)

Clube de Leitores COM_vida... Emílio Miranda escreve sobre Eudora Welty

A propósito de «O Coração dos Ponders», de Eudora Welty


«O Coração dos Ponders» é um daqueles livros que nos atrai logo na primeira linha, na primeira página, porque sentimos que a autora tomou o seu tempo, aliás muito ocupado, para nos falar, para nos contar calmamente uma história: a história do seu tio Daniel Ponder. Um homem popular, divertido, desprendido: uma espécie de anjo caído entre os homens, que nada mais faz do que distribuir tanto um frasco de mel, como uma qualquer propriedade, seja a um conhecido, seja a um desconhecido; apenas porque, de algum modo, se encantou por essa pessoa.

Personagem peculiar e divertida, para a qual olhamos com os olhos da autora, que nos vai revelando este tio, de uma forma única, despida de censuras.

Um primor de linguagem. Um primor de comunicação com quem, deste lado, segura o livro e mais do que lê-lo, escuta o que a autora lhe diz.

Uma divertida surpresa. Recomendo!

Emílio Miranda

1º Parágrafo: O General no seu Labirinto


José Palacios, o seu servidor mais antigo, encontrou-o a flutuar nas águas depurativas da banheira, nu e com os olhos abertos, e julgou que se tinha afogado. Sabia que aquela era uma das suas muitas formas de meditas, mas o estado de êxtase em que jazia à deriva parecia o de alguém que já não era deste mundo. Não se atreveu a aproximar-se, mas chamou-o em voz baixa de acordo com a ordem de o acordar antes das cinco horas para viajar com as primeiras luzes. Os general emergiu do encantamento, e viu na penumbra os olhos azuis e diáfanos, o cabelo encrespado cor de esquilo, a majestade impávida do seu mordomo de todos os dias segurando na mão a xícara com a infusão de papoilas com goma. O general agarrou-se em forças às pegas da banheira, e surgiu das águas medicinais com um ímpeto de golfinho que não era de esperar num corpo tão enfezado.



* Tradução de Cristina Rodriguez

a-ver-livros: filme e Nancy Arbolito

Caí dentro do teu livro
como caíste dentro do meu filme

As artes canibalizam-se 
e alimentam-se assim
como nos amores mais loucos

* para conhecer mais sobre a pintora uruguaia Nancy Arbolito
siga o link www.portondesanpedro.com/autor-curriculum

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Sônia Braga ou Juliana Paes? Qual a melhor «Gabriela»?


Como sabem, a leitura do mês é o conhecido romance do escritor Jorge Amado: «Gabriela, Cravo e Canela».

Confesso que não vi a primeira novela (ainda não era nascido) nem estou a acompanhar a nova. Mas sei que tem sido um sucesso.

«Sônia Maria Campos Braga nasceu em Maringá em 1950. Posou para a revista Playboy em Setembro de 1984 e Julho de 1986.» Fez novela, cinema e televisão - tanto no Brasil como nos Estados Unidos. Foi a escolhida para fazer o papel de Gabriela, na primeira adaptação do livro. A novela é de 1975. «Escrita por Walter George Durst, adaptada do romance Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado, e dirigida por Walter Avancini e Gonzaga Blota, com 132 capítulos.»

«Juliana Couto Paes nasceu em Rio Bonito em 1979. É actriz e modelo. Formada em publicidade, ficou nacionalmente conhecida pelas suas actuações em telenovelas da Rede Globo e pela sua beleza e sensualidade. Foi capa da revista Playboy em maio de 2004. Em 2006, foi eleita uma das cem personalidades mais sensuais do mundo, segundo a revista norte-americana People. No dia 23 de Novembro de 2011, Roberto Talma, director do remake de Gabriela, [que estreou em] 2012, decidiu que Juliana Paes é a protagonista.»

O debate tem aquecido as discussões no Brasil. Resta saber o que pensam os portugueses... Qual é que preferem: Sônia Braga ou Juliana Paes? 

Deixo uma pequena montagem no youtube para ajudar à resposta... Ou complicar! 

Clube de Leitores COM_vida... Emílio Miranda fala sobre o romance «Trás-os-Montes» de Tiago Patrício

A propósito de «Trás-os-Montes», de Tiago Patrício


Trás-os-Montes é um título só por si inspirador… Talvez por todas as associações que se fazem na minha imaginação em torno da expressão que nos remete para uma vasta região do Norte de Portugal – ou não tivesse eu próprio vivido aí parte da minha vida.

Só por essas razões – que são muitas vezes as que nos levam a comprar um determinado livro e a desejar lê-lo – teria valido a pena. Mas este livro é muito mais: é uma viagem à infância – à minha certamente – através dos olhares de Teodoro, Óscar, Raquel e Edgar. O que pensam dos seus pequenos mundos, dentro desse mundo maior, dos adultos que os educam, condicionam e impedem de ser quem desejam.

Romance de descoberta, escrito com uma fluidez poética que nos surpreende, Trás-os-Montes é uma viagem às nossas próprias infâncias, numa relembrança dos demónios que habitam afinal, mesmo que não queiramos admiti-lo, as nossas raízes mais profundas em que se alicerça o que somos.

Vencedor do Prémio Literário Revelação Agustina Bessa-Luís 2011, instituído pela Estoril Sol, como vem referido na capa – bela, aliás, e também ela singela pelo motivo escolhido: frágeis oliveiras ao lusco-fusco – e editado pela Gradiva, Trás-os-Montes dispensaria outras credenciais, sobretudo para aqueles que – como eu – procuram descobrir os novos valores da nossa riquíssima literatura; todavia não deixa por mãos alheias os méritos que lhe são devidos, revelando-se como uma interessante viagem. Recomendo, sem dúvida! Parabéns ao Tiago Patrício pela magnífica obra. Aguardam-se as próximas.



Emílio Miranda

1º Parágrafo: Bestiário


Gostávamos da casa porque, além de espaçosa e antiga (hoje as casas antigas sucumbem à mais vantajosa liquidação dos seus materiais), guardava as recordações dos nossos bisavós, avô paterno, nossos pais e toda a infância.


* Tradução de Joaquim Pais de Brito
* Escritor argentino, nasceu em Bruxelas em 1914 e faleceu em Paris em 1984, depois de se ter nacionalizado francês em 1981

a-ver-livros: o príncipe no colo e Joyce Abbe Fox

Há um príncipe que vai saber ler
como quem ergue castelos
na espuma das ondas
como quem encontra diamantes
nas corolas das flores dos jardins


Vai saber ler os olhos dos que amam
e as lágrimas dos que partem
Os silêncios dos que ficam
com bicho carpinteiro nos dedos dos pés

As palavras dos que nelas voam 
sem terem asas

E um dia vai saber ler também o livro 
que ao colo lhe lês agora
nas tardes infindáveis de outono

* para saber mais sobre a pintora que assina Joyce Abbe Fox
terão que procurar mais do que eu, que nada encontrei

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Rostos do blog e rostos da crise

 A crise no desemprego é um espectro que corrói a nossa sociedade. Na reportagem que a SIC fez este fim-de-semana analisa-se a situação dos jornalistas. Dos que vão ser, dos que são há pouco e, no caso da nossa colaboradora Ana Almeida, na óptica de quem anda nesta profissão faz tempo.

O lado bom da coisa (desemprego) é que temos a Ana Almeida a postar diariamente aqui no Clube de Leitores: o "a-ver-livros", entre outros tantos textos. E, como podem ver, a Ana entrega-se de alma e coração a tudo o que faz. Mesmo que isso não baste para a sustentar...

Vejam a reportagem até ao fim. Além de conseguirem descortinar o cantinho de onde a Ana nos escreve, podem também ver um pouco do nosso espaço - filmado pela primeira vez!

Clube de Leitores COM_vida... Emílio Miranda traz-nos Tomas Tranströmer

Algumas palavras a propósito da poesia de Tomas Tranströmer.


Cada ser humano é um poeta, no sentido literal da palavra, mesmo que não seja um escrevedor de poemas, mesmo que não pratique a arte de escrever o que sente e o que aspira poeticamente para o mundo, para o seu bairro, para o recanto onde vive… Todo o ser humano é um poeta – repito – e garantidamente que o mundo seria melhor se cada um de nós pensasse, às vezes, mais como um poeta e menos como um gestor empenhado do tempo que lhe foi destinado para viver…

Bom, esta não passa de uma introdução ao tema escolhido para iniciar este ciclo de o Clube de Leitores COM_vida. Pois qual seria senão este mesmo: o da Poesia?

Hoje, a obra escolhida é:

50 Poemas de Tomas Tranströmer.

Lidos! Apreciados! Não; lidos, não; [apenas] apreciados. A boa poesia não se lê, aprecia-se. Lê-se a que não se aprecia. Lê-se para se chegar rapidamente ao fim do caminho, mais ou menos tormentoso.

Nestes 50 poemas – quem quiser pode, como eu, ler em sueco, pois a edição da Relógio D’ Água é bilingue (riso) – o poeta a quem o espírito de Nobel homenageou em 2011 leva-nos ao imaginário dos sentidos, tão mais concreto quanto mais imaginário, na capacidade que a poesia desperta de nos descobrirmos, mesmo onde não imaginávamos existir, como não imaginávamos que existíssemos.

Também eu.

«Assistia a um funeral
E senti que o defunto
Lia os meus pensamentos
Melhor do que eu.» 


Não o poeta, felizmente vivo e em plena actividade criativa; mas [talvez] o defunto que descobrimos às vezes dentro de nós, outras fora, mas que nos desperta, insolitamente para a vida!

Tomas Tranströmer, sueco nascido em 1931, é o poeta das palavras límpidas. Do poema claro!

Recomendo. Vivamente! Aos amantes da poesia e não só. A todos os amantes de palavras. De Palavra.

E aos outros. Para que se convertam!

Emílio Miranda

1º Parágrafo: A História do Amor


Quando escreverem o meu obituário. Amanhã. Ou no dia a seguir. Ler-se-á, LEO GURSKY SUCUMBE A APARTAMENTO CHEIO DE TRAMPA. Surpreende-me ainda não ter morrido soterrado. A casa não é grande. Só a muito custo consigo manter o caminho livre da cama à casa de banho, da casa de banho à mesa cozinha, da mesa da cozinha à porta da entrada. Se quiser ir da casa de banho à porta de entrada é impossível, tenho de passar pela mesa da cozinha. Gosto de imaginar a cama como a base principal de um campo de basebol, com a primeira base na casa de banho, a segunda base na cozinha, e a terceira na porta de entrada: se por acaso alguém tocar à campainha enquanto eu estou na cama, tenho de dar uma volta pela casa de banho e pela cozinha a fim de chegar *a porta. Se por acaso for Bruno, deixo-o entrar sem uma palavra e volto para a cama em passo de corrida, com o burburinho do público invisível a ressoar-me nos ouvidos.



* Tradução de Pedro Serras Pereira
* Nicole Krauss Nasceu em Nova Iorque em 1974

a-ver-livros: cruzamento com Adrian Tomine

Chamam-lhe a vida
quando nos cruzamos assim
e descruzamos em seguida
sabendo de certeza feita
que devíamos ter parado de correr os dias
e caído nestes braços
e lido a meias este mesmo livro

Chamam-lhe a vida
e é a que temos
quando vivemos assim
contra-relógio

* para saber mais sobre o cartoonista e ilustrador Adrian Tomine
basta seguir o link  www.adrian-tomine.com

domingo, 21 de outubro de 2012

A homenagem

(ao domingo) Letras Focadas
“Na ponta da pena, soltam-se letras conjugadas, bem focadas, para serem percebidas”

Hoje, as letras focadas, estão desfocadas.
A ausência da presença física de Manuel António Pina retira, a todos nós, um pouco do equilíbrio intelectual.
A morte coloca-nos em perspectiva e, por breves momentos, sentimos a nossa fragilidade. No entanto, há homens que mesmo ausentes, fazem-nos viajar, sonhar na ponta da pena que nos deixam.
É o caso de Manuel António Pina.
Partiu o homem, ficaram as suas palavras muito focadas:

Algumas coisas
 A morte e a vida morrem
e sob a sua eternidade fica
só a memória do esquecimento de tudo
também o silêncio de aquele que fala se calará.

Quem fala de estas 
coisas e de falar de elas
foge para o puro esquecimento
fora da cabeça de si.

O que existe falta
sob a eternidade;
saber é esquecer
esta é a sabedoria e o esquecimento.

Manuel António Pina in "Aquele que Quer Morrer"

Foto EmE

Elsa Martins Esteves

Ortografia em movimento, o que são as letras que vemos

The Alphabet 2 from n9ve on Vimeo.

"The Alphabet 2", é ortografia em desenvolvimento. Um vídeo onde cada personagem representa visualmente o significado da palavra em si.

Jogando com diferentes técnicas e materiais em espaços pequenos e grandes, mas sempre com foco nas proporções. Helvetica é a fonte chave de partida para este trabalho. Uma colecção de palavras num delicioso ortografia-vídeo.

Direcção / Pós Produção / Desenho de Som
Alessandro Novelli

Design / Animação / Set Design
Andrea Gendusa / Alessandro Novelli

Música de fundo
Fréhel "Tel qu'il est" 1936

a-ver-livros: porque chove e Gemma Aguasca

Escrevo o livro com as tuas lágrimas 
junto-as como letras na nuvem da tua página
mais meia dúzia de hieróglifos 
que só o teu coração entende

dizem que é Outono 
sei apenas da saudade

* para conhecer mais do trabalho da ilustradora Gemma Aguasca,
de Barcelona, siga o link gemmagas.com