Uma semana de “postas” do Jorge Silva Melo e fiquei a conhecer Vasco Pratolini (Florença, 19-10-1913 –
Roma, 12-01-1991), um dos mais importantes escritores italianos do século XX, Natalia Ginzburg (Palermo, 14-07-1916 –
Roma, 07-10-1991), romancista, ensaísta, recebeu os Prémios Strega e o Bagutta,
Álvaro Lapa (Évora, 31-07-1939 –
Porto, 11-02-2006), pintor e escritor, professor na Escola de Belas Artes no
Porto, Max Frisch (Zurique,
15-05-1911 – Zurique, 04-04-1991), arquitecto, escritor, filósofo, vencedor em
1986 do Neustadt International Prize for Literature), Nathalie Sarraute (Ivanovo,18-07-1900 – Paris, 19-10-1999),
advogada, porque judia impedida de exercer sob o domínio Nazi, escritora,
vencedora do Prix Formentor, José Maria
Fernandes Marques, obviamente, de
Guimarães, cidade que o viu nascer a 25 de Novembro de 1939, engenheiro de
formação, artista plástico para nosso contentamento!
Pelo que, mais uma vez consciente do tamanho da minha ignorância, sinto-me
um gato pançudo, regalado num telhado ao sol depois de ter roubado o peixe do
jantar da vizinha.
E que rico vizinho!
Mas, apesar do espólio supra, o que guardo como objecto de admiração, não
é a admirável bagagem de Jorge Silva Melo que se, ao caso, bagagem não fosse
uma metáfora, não conseguiria mexer um dedo, entalado e soterrado por malas e
baús, tal o tamanho!
O que guardo de Jorge Silva Melo é a evidente curiosidade, o manifesto
gosto, a contestatária vontade de partilhar, preservar e defender tudo o que o
encanta, no sentido de assim encantar o outro, os outros e, se não é isto
que nos define como seres humanos, então eu não sei o que é!
E, não sei se estou a ser suficientemente clara, mas eu explico, com um
exemplo prático, segue uma “posta” que roubei (os gatos têm fama de ladrões
competentes) do muro do seu Facebook (nunca se escreveu tanto em muros, mesmo
se virtuais!):
“Imaginem,
julgava que éramos só nós, a EDUARDA DIONÍSIO e eu que gostávamos de SANTOS
FERNANDO, escritor, homem de jornais, prosador, humorista (eu acho-lhe uma
imensa graça e tento há anos que o leiam, o republiquem, se lembrem dele, ele
que deixou os seus livros para se fazer uma BIBLIOTECA PÚBLICA e ela ali está
ao alto de umas escadas na PADARIA DO POVO, em Campo de Ourique. E ao acaso
desta noite aborrecida encontro num post de uma Facebookfriend, MARIA MANUEL,
um texto dele, tão bonito, tão bem escrito. Por jornalistas assim, eu encetaria
amanhã cinco greves da fome.
O elétrico, de Santos Fernando
Com a mão de
fora, o velhinho apanhava as folhas das árvores. Via nas faixas de rodagem
camufladas com as folhas das árvores e dava grandes gargalhadas, como se o
outono fosse dele. Sentados no mesmo banco, o rapaz e o velhinho eram os únicos
passageiros do carro elétrico. Todos os outros bancos, incluindo os laterais, e
ambas as plataformas, estavam ocupados por hirtos e silenciosos ramos de
flores.
— O senhor tem
sorte — disse o rapaz ao velhinho. — Conseguiu o melhor lugar. Um dia, quando
casar, como afirmou Saroyan, nunca mais apanhará o lugar da janela.
O velhinho
piscou um olho malicioso, de bom vidro alemão de antes do III Reich.
— Hei de
manter-me solteiro para aproveitar e gozar uma senilidade tranquila. Não me
quero privar nem das janelas, nem do amor.
— Viaja há muito
tempo neste carro?
— Oh, sim. Desde
o tempo em que os "elétricos" falavam.
As ruas
solitárias e envolvidas por um rastro de fumo azulado tinham amanhecido
cobertas da minúscula flor do miosótis. Trepadeiras gigantes revestiam os
prédios. Bisbilhoteiros cachos de buganvílias debruçavam-se das varandas. Nas
paragens, nervosos girassóis e rosas petulantes aguardavam em bicha o seu
transporte popular. E as folhas iam caindo com tal precisão que formavam
grandes livros alinhados pelas avenidas. Às vezes, um sopro de vento vindo das
montanhas virava-lhes as páginas vegetais até aos capítulos mais empolgantes. O
mês de novembro escorria como azeite com um grau de acidez. O sol, aquecido em
lume brando, empapava a cidade.
— E que fazia o
senhor antigamente, antes de viajar de carro elétrico? — perguntou o rapaz.
Tinham chegado à
praça da Tulipa Negra. A estátua da tulipa erguia-se majestosa e isolada no
centro da rotunda. Nas esplanadas, aproveitando o verão de São Martinho, os
goivos e os gerânios que faziam parte da tripulação de um barco surto no rio,
os malvaíscos da Alfândega, os cóleos da estiva e as margaridas dos escritórios
das redondezas, aproveitando a hora do almoço, bebiam grandes copos de água.
Dois amores-perfeitos beijavam-se junto à estátua, enquanto pequenos narcisos,
de uma escola primária, ouviam atentamente as explicações de uma jovem papoila
aberta em vermelho à sua erudição.
— Antes de
viajar de carro elétrico — respondeu, por fim, o velhinho — era industrial.
Fabricava bolas de sabão. Uma ciência que vinha então de pais para filhos.
Aparentemente fácil, como transformar o ouro em cobre. Mergulha-se um canudo na
água do sabão e depois soprava-se. Assim... — o velhinho encheu as bochechas. —
Da minha fábrica saíam por dia, para os cincos cantos do mundo, as mais
vistosas bolas de sabão produzidas no país. O céu da cidade era um
deslumbramento de balões coloridos, transparentes, diáfanos. Enquanto espetavam
o nariz no ar, os homens não metiam o nariz nos problemas dos outros. E as
mulheres tinham uns olhos mais belos por os abrirem desmedidamente à fantasia
policrômica do espaço. Durante a noite havia milhares de luas que se
precipitavam com suaves estampidos pelas chaminés das casas e vinham aureolar
nos jardins a cabeça dos notívagos, dos vagabundos e dos namorados.
— E ganhava
muito dinheiro com isso, senhor?
— Oh, não —
suspirou o velhinho. — Os poetas não ganham dinheiro. Um dia tive que fechar a
fábrica. Os poetas não ganham dinheiro. Já nem me fiavam o sabão. Tentei ainda,
numa água furtada, produzir bolas mais econômicas. Mas não há ersatz (1) para a
beleza. As bolas saiam defeituosas; bicudas, quadradas, pálidas, efêmeras.
Subiam apenas à altura da cabeça dos homens, excessivamente baixo. As bolas já
não tinham vida, nem transportavam no colorido a mensagem de uma cidade de
meninos. Nem saltitavam nos telhados, nem entravam pelas janelas, nem rebolavam
nas camas, nos tapetes de relva, no empedrado, nos caracóis dos petizes. E a
multidão ria das minhas bolas. E eu pensei que a cidade já não merecia as
minhas bolas de sabão. Os poetas não ganham dinheiro.
O
"elétrico" deteve-se subitamente. Cóleos, begônias e lobélias
tombaram para diante.
— Mas ainda
tenho uma das primeiras, das autênticas.
O rapaz viu o
velhinho tirar do bolso um frasco e um tubo de plástico, e soprar através do
tubo.
Uma rutilante
bola de sabão ficou momentaneamente suspensa no ar. Mais pequena, uma lágrima
do velhinho tombou do olho de vidro alemão de antes do III Reich.
Então o rapaz
disse, em voz baixa:
— Bem, avô, é
altura de acabarmos com esta farsa.
E com um
movimento, rebentou a bola de sabão. Como se tivesse rebentado um enorme
caleidoscópio. A campainha tocou, puxada energicamente pelo condutor.
O velhinho
sorriu a sua tristeza murcha e fechou a janela, enregelado. O "elétrico"
pôs-se em marcha, as flores desapareceram, e os passageiros, empurrando-se,
começaram todos a falar ao mesmo tempo.”
Fiz-me perceber?
Assim que, pessoas como o JORGE SILVA MELO eu quero ter sempre por perto,
o CLUBE DE LEITORES quer ter sempre por perto!
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