sexta-feira, 9 de março de 2012

O livro de Dulce Maria lê-se de fio a pavio...

Ainda há pouco foi anunciado como livro de leitura conjunta para o mês de Março e já passei a metade...

Este livro é tão rico e dá tanto prazer ler... Mas não vos vou abrir o jogo. Hoje deixo um sublinhado (entre os muitos que me obrigam a pensar e reflectir). E, para quem ainda não sabe do que se trata, fica a sinopse e a crítica de José Mário Silva.

«Os homens têm os fumos por cima dos casacos, uma ideia do Pacaça que diz, estou de luto, hoje morreu-me a minha terra, hoje tornei-me um desterrado, vivemos na certeza de que as terras não morrem, vivemos na certeza de que a terra onde enterramos os nossos mortos será nossa para sempre e que também nunca faltará aos nossos filhos a terra onde os fizemos nascer, vivemos nessa certeza porque nunca pensamos nascer, vivemos nessa certeza porque nunca pensamos que a terra pode morrer-nos, mas hoje morreu-me a minha terra, hoje morreram os meus mortos e os meus filhos perderam a terra onde os fiz nascer, os meus filhos desterrados como eu. O Pacaça cala-se e começa a falar o Sr. Belchior, estou de luto pela terra onde fui gente, antes de ir para lá era uma barriga inchada de fome e uma cabeça cheia de piolhos.»


"1975, Luanda. A descolonização instiga ódios e guerras. Os brancos debandam e em poucos meses chegam a Portugal mais de meio milhão de pessoas. O processo revolucionário está no seu auge e os retornados são recebidos com desconfiança e hostilidade. Muitos não têm para onde ir nem do que viver. Rui tem quinze anos e é um deles. 1975. Lisboa. Durante mais de um ano, Rui e a família vivem num quarto de um hotel de 5 estrelas a abarrotar de retornados — um improvável purgatório sem salvação garantida que se degrada de dia para dia. A adolescência torna-se uma espera assustada pela idade adulta: aprender o desespero e a raiva, reaprender o amor, inventar a esperança. África sempre presente mas cada vez mais longe."

«Até hoje, quase 40 anos após o processo de descolonização, ainda não aparecera um grande romance português capaz de contar, sem enviesamentos ideológicos ou saudosismos serôdios, a história do difícil regresso de meio milhão de pessoas à metrópole, nos tempos conturbados da década de 70. O Retorno é esse romance. Dulce Maria Cardoso (n. 1964) não defende nem condena os “desterrados”, antes ilumina o que acontece a uma família em dois momentos muito concretos […]. A autora fecha o romance como o começou: demonstrando uma precisão narrativa e uma clareza de estilo absolutamente admiráveis.»

José Mário Silva, revista LER 106

Almeida Faria regressa em grande...

O Murmúrio do Mundo é o nome dado ao novo livro de Almeida Faria. Nesta publicação pela Tinta da China (na já consagrada colecção de viagens), o escritor tem a ajuda das aguarelas e cores de Bárbara Assis Pacheco.

Este livro relata a viagem do escritor à Índia. Fiquem com um breve excerto:

«O viajante ocidental que pela primeira vez visita Goa e Cochim (agora Kochi) enfrentará provavelmente, apesar dos muitos traços do passado europeu, a vertigem do caos à sua volta e dentro de si. Quando começa a familiarizar-se com a estonteante exuberância e com as contradições coexistentes, quando julga começar a entender a complexidade das castas, dos cultos e costumes tão diferentes, quando começa a fixar nomes, imagens, atributos dos deuses, tudo lhe foge de súbito, tudo se torna de novo confuso, como se o véu de Maia voltasse a cobrir a indecifrável irrealidade da Índia real.»


É já um caso aclamado pela crítica. Resta-me perceber se corresponde às expectativas que tenho dele. Em breve trago-o para casa...

«Se faltasse alguma prova para demonstrar que a escrita de viagens é essencial à ideia de literatura, este livro de Almeida Faria bastaria para a suprir. Não é só o título - “O Murmúrio do Mundo” - que consegue, sozinho, ser outro nome da literatura. É o próprio subtítulo, “A Índia Revisitada”, que não oculta alusões evidentes (incluindo a um famoso ensaio de Eduardo Lourenço, que assina o prefácio), quer sejam à tradição literária portuguesa e a um dos seus grandes mitos, quer a toda a literatura enquanto revisitação incessante: rescrita, releitura, regresso aos mesmos lugares que nunca são os mesmos. (...)
Não se fica com inveja do viajante, fica-se-lhe grato pela generosa magia de converter vários dias de viagem em menos de cento e cinquenta páginas de puro prazer para a imaginação e a inteligência.»

Gustavo Rubim, «Público», 5 estrelas

quinta-feira, 8 de março de 2012

"Se tiveres uma biblioteca como jardim, tens tudo."*

* Cícero.
O que dizer de um jardim com biblioteca, de um café com livros, de uma livraria com aromas de café? Daquele espaço que convida à escrita, daquele jardim com poemas gravados na pedras? Vamos começar pela bela Lisboa e depois estender os braços de Norte a Sul do País. Recordar e conhecer as paisagens de inspiração ou dar a conhecer os espaços onde se pode ler, não porque é permitido mas sim porque é proporcionado. Algures nesta viagem apontaremos outros espaços onde sabemos que nasceram Obras. Para já o périplo cinge o traçado na procura de tocas onde encontrar livros, sentar, ficar, usufruir e decidir.

Lisboa tem, claramente, a vantagem de uma luz única, de um convite a sentar-se, observar, de Verão ou de Inverno, pegar no lápis e escrever, tirar notas, ou simplesmente contemplar. Ler. Quem anda pela zona do Rato, a caminho da Lapa, e encontre o Jardim da Estrela não demorará a cruzar-se com a Biblioteca-Quiosque. Pequenina, com cerca de mil livros à disposição, meia dúzia de mesas e cadeiras em jeito de esplanada. Esteja calor ou frio porque, mesmo quando o último aperta, sabe bem que a bebida quente seja acompanhada com letras. E escreve-se. Se a visita acontecer na Primavera e Verão ainda se ouve Jazz ao vivo.

No lado oposto da cidade encontra-se novamente um jardim fabuloso onde, por todas as razões, se respira cultura nas suas variadas formas. A Fundação Calouste Gulbenkian oferece os magníficos Jardins, a Biblioteca, a Livraria e o Café Babélia, onde os livros também se podem sentar à mesma mesa que as mãos devoradoras de leitura. O anfiteatro ao ar livre é muitas vezes inundado pelas mentes criativas que ali se sentam, deitam, lêem, escrevem. A agitação citadina fora daqueles muros baixa o volume, quase como se desaparecesse, dando lugar a uma névoa de inspiração, de silêncio e tranquilidade.

Outro formato encaixa nos cafés com livros e livrarias com café. No primeiro, quem anda por Alfama da Sé encontra o Pois-café. Do simples café à refeição leve, o que mais ressalta e inspira são as pequenas estantes, habitadas por livros, em várias línguas, a maior parte deixados pelos passageiros frequentes daquelas ruas, os turistas. Os sofás convidam à leitura, as mesas são inundadas de folhas, lápis e esferográficas sedentas. Há quem almoce enquanto lê, há quem escreva enquanto se aquece com chá.

Quanto ao segundo formato, o caminho é em direcção a Alcântara. No espaço baptizado como Lx-Factory, num terreno murado, com antigas fábricas a darem lugar a recantos díspares, encontramos a Livraria Ler Devagar. Uma autêntica biblioteca, repleta, repleta e repleta de estantes bem recheadas, onde se pode comprar ou apenas ler, sentar-se, fazer uma refeição, ou simplesmente saborear uma bebida. Palco de tertúlias, conferências e concertos, é difícil não ficar com vontade de fazer dela segunda casa e dos livros os amigos perfeitos.

Há outros espaços, claro, mas nem o simples elencar seria objecto neste “espaço”, nem este encerra tamanho para essa explanação. Apesar de ter enunciado o contrário, não resisto em terminar sem indicar dois locais onde nada mais há do que a história que os circunda, e nem pratica nem oferta de leituras. Porém, para quem precisar de recorrer à metáfora para se inspirar, nada melhor que sentar-se na Brasileira e sorrir à estátua do Pessoa, ou sentar-se na mesa do fundo do Martinho da Arcada e imaginá-lo a escrever.


Imagem: Livraria Ler Devagar, Alcântara.

A Mulher Mais Bonita do Mundo

A Mulher Mais Bonita do Mundo

"estás tão bonita hoje. quando digo que nasceram
flores novas na terra do jardim, quero dizer
que estás bonita.

entro na casa, entro no quarto, abro o armário,
abro uma gaveta, abro uma caixa onde está o teu fio
de ouro.

entre os dedos, seguro o teu fino fio de ouro, como
se tocasse a pele do teu pescoço.

há o céu, a casa, o quarto, e tu estás dentro de mim.

estás tão bonita hoje.

os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.

estás dentro de algo que está dentro de todas as
coisas, a minha voz nomeia-te para descrever
a beleza.

os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.

de encontro ao silêncio, dentro do mundo,
estás tão bonita é aquilo que quero dizer."

José Luís Peixoto, in "A Casa, a Escuridão"

quarta-feira, 7 de março de 2012

in As velas ardem até ao fim

Uma pessoa envelhece lentamente: primeiro envelhece o seu gosto pela vida e pelas pessoas, sabes, pouco a pouco torna-se tudo tão real, conhece o significado das coisas, tudo se repete tão terrível e fastidiosamente. Isso é também velhice. Quando já sabe que um corpo não é mais do que um corpo. E um homem, coitado, não é mais que um homem, um ser mortal, faça o que fizer...
Depois envelhece o seu corpo; nem tudo ao mesmo tempo, não, primeiro envelhecem os olhos, ou as pernas, o estômago ou o coração. Uma pessoa envelhece assim, por partes.
A seguir, de repente, começa a envelhecer a alma: porque por mais envelhecido e decrépito que esteja o corpo, a alma ainda está repleta de desejos e de recordações, busca e deleita-se, deseja o prazer.
E quando acaba esse desejo de prazer, nada mais resta que as recordações, ou a vaidade; e então é que se envelhece de verdade, fatal e definitivamente.
Um dia acordas e esfregas os olhos: já não sabes porque acordaste. O que o dia te traz, conheces tu com exactidão: a Primavera ou o Inverno, os cenários habituais, o tempo, a ordem da vida. Não pode acontecer nada de inesperado: não te surpreende nem o imprevisto, nem o invulgar ou o horrível, porque conheces todas as probabilidades, tens tudo calculado, já não esperas nada, nem o bem, nem o mal... e isso é precisamente a velhice.
Porém, há ainda algo vivo no teu coração, uma recordação, algum objectivo de vida indefenido, gostarias de tornar a ver alguém, gostarias de dizer ou saber alguma coisa, e sabes bem que um dia chegará esse momento e então, de repente, já não será tão fatalmente importante saber e responder à verdade, como pensaste durante as décadas de espera.
Uma pessoa compreende o mundo, pouco a pouco, e depois morre.


terça-feira, 6 de março de 2012

A livraria, Penelope Fitzgerald - a leitura conjunta de Fevereiro

Hardborough, final dos anos cinquenta, leste de Inglaterra.

Não foi difícil imaginar Florence Green... a quem o marido deixara uma pequena soma de dinheiro, depois de morrer. De pequena estatura, magra, de aspecto sério e com vontade de se afirmar, decide tomar entre mãos o interessante empreendimento de abrir uma livraria e, por arrasto, uma pequena biblioteca.

Os seus conterrâneos ficam atónitos com o atrevimento. Pareceu-me ouvir os seus julgamentos, as suas críticas. Se numa terra onde nem sequer existia lavandaria ou as tão conhecidas "fish and chips", porquê a livraria?

A velha Old House foi a eleita para recebê-la, curiosamente assombrada por um também misterioso "rapper". Mas nem isso a demoveu. A livraria começou a funcionar em pleno, com o auxílio inesperado de Christine, miúda desembaraçada de 10 anos...

Quando Florence decide avançar com a encomenda de "Lolita" de Nabokov, os olhares não se desviaram da montra... nem as compras abrandaram e a caixa registadora nunca antes havia somado tanto dinheiro!


Mas afinal Hardboroug precisa mais de um Centro de Artes do que uma livraria... tal como na vida real, existem mentes pérfidas como a de Mrs. Gamart, que não poupa esforços para conseguir ocupar e substituir a Old House pelo tal espaço artístico.

Termina a aventura de Florence Green numa vila que nunca a mereceu, nem tão pouco aos livros que deu a conhecer ou que emprestou...

Há muitos sentimentos neste texto. Imagino que, ao abandonar a vila, Florence, terá experimentado a desilusão, mas nunca terá perdido a coragem de retomar o projecto noutras geografias. Quando as mentes são mesquinhas e as almas pequenas, não há espaço para a imaginação, para os livros, para as livrarias...

Garcia Marquez: 85 anos de vida... muitos de escrita!

Cem anos de solidão, Relato de um Náufrago, Memória das minhas Putas tristes, Crónica de uma morte anunciada... Romances que li de Gabriel Garcia Marquez. Perdidos pelo meu quarto há mais uns quantos: aguardam pacientemente a sua vez. Assim como Viver Para Contá-la, a autobiografia da sua infância e juventude (que conta como estas fases da vida marcaram o imaginário do autor nas suas histórias). Da sinopse deste livro, fica este pensamento: "converte-se (...) num guia de literatura para toda a obra do autor, um acompanhante imprescindível para iluminar passagens inesquecíveis que, depois da leitura destas memórias, adquirem uma nova perspectiva. O romance de uma vida."



Hoje o escritor está de parabéns. Por 85 anos de vida, pois claro... Mas também por tanta imaginação e emoção que traz ao Mundo de quem o lê. Pelo menos é essa a sensação que tenho mal pego em mais um livro dele. Sou transportado para um território de magia, de histórias tão bem relatadas e vividas... que me sinto uma personagem... Como se o meu corpo entrasse directamente para dentro do livro.

Em 2011, a Dom Quixote lançou um livro que ando a namorar: Contos Completos (1947-1992). Recorrendo, mais uma vez, à descrição do livro, fiquem com a sua contracapa:


"Este volume reúne os contos escritos por Gabriel García Márquez desde os finais dos anos 1940, até meados dos anos 1990. Um conjunto de 41 histórias que nos permite desfrutar de todo o encanto e mestria do genial escritor colombiano, e que nos leva a um mundo inesquecível cuja realidade se expressa mediante fórmulas mágicas e lendárias.

Histórias fantásticas que reflectem a cultura sul-americana, misturando acontecimentos surreais e detalhes do quotidiano, escritas com o estilo que caracteriza a obra de García Márquez, em que os milagres se inserem na vida quotidiana e a prosa se aproxima inevitavelmente do seu destino fatal: a poesia."

Parabéns Gabo!

segunda-feira, 5 de março de 2012

Sobre o acto de desfazer as malas, ou O Retorno

Após quase quinze anos sem visitar minha terra natal, me ausentei desta Lisboa de sempre em busca de raízes distantes.

Se o livro que agora começo se inaugura com a constatação de que «na metrópole há cerejas», naquela a que regressei havia caju, carambola, cupuaçú... Faltou só a jabuticaba da minha infância.

Regresso à cidade do meu coração, e a este blogue que tanto me instiga a mais, ainda com o sabor líquido do côco nos lábios e com as palavras de Clarice (Lispector), Carlos (Drummond de Andrade) e Chico (Buarque) ecoando na cabeça.
Quero celebrar o meu Retorno, com o de Dulce Maria Cardoso, vencedor do Prémio Especial da Crítica LER/Booktailors 2011, escolha do Jornal Público como Livro do Ano 2011.

Quero retornar com uma promessa de viagem: não na conexão Luanda - Lisboa que conhecemos, hospedeiras de bordo, catering e a ânsia pela vista aérea do Tejo, mas sim de imersão ao âmago de uma ferida que ainda rasga, lateja, amarga a história recente deste país que também é meu.

«Um avião risca o céu a direito. Silencioso. Como um giz preguiçoso nas mãos invisíveis de deus. Noutro tempo ter-lhe-ia respondido daqui de baixo. Talvez ainda responda. Noutro tempo ter-lhe-ia escrito, talvez ainda escreva, em letras bem grandes a todo o comprimento do terraço para que não possa deixar de ver-me, eu estive aqui.
Eu estive aqui.»


Assim termina. E nós? Nós ainda agora começamos...

Dulce Maria Cardoso em Março

Luma Garbin escolheu este livro para a nossa leitura conjunta de Março.

Já o estou a ler...

domingo, 4 de março de 2012

Palavras para a Minha Mãe - faço minhas as palavras de José Luís Peixoto


"mãe, tenho pena. esperei sempre que entendesses
as palavras que nunca disse e os gestos que nunca fiz.
sei hoje que apenas esperei, mãe, e esperar não é suficiente.

pelas palavras que nunca disse, pelos gestos que me pediste
tanto e eu nunca fui capaz de fazer, quero pedir-te
desculpa, mãe, e sei que pedir desculpa não é suficiente.

às vezes, quero dizer-te tantas coisas que não consigo,
a fotografia em que estou ao teu colo é a fotografia
mais bonita que tenho, gosto de quando estás feliz.

lê isto: mãe, amo-te.

eu sei e tu sabes que poderei sempre fingir que não
escrevi estas palavras, sim, mãe, hei-de fingir que
não escrevi estas palavras, e tu hás-de fingir que não
as leste, somos assim, mãe, mas eu sei e tu sabes. "

in "A Casa, a Escuridão"