sexta-feira, 15 de maio de 2015

A última estrada de B.B. King vs Alberto Caeiro

Creio que Irei Morrer

Creio que irei morrer.
Mas o sentido de morrer não me move,
Lembro-me que morrer não deve ter sentido.
Isto de viver e morrer são classificações como as das plantas.
Que folhas ou que flores têm uma classificação?
Que vida tem a vida ou que morte a morte?
Tudo são termos onde se define.
 
*Alberto Caeiro
(Fernando Pessoa)
 
ilustrado por jean jullien



Herberto de segunda a sexta: Não toques nos objectos imediatos

Não toques nos objectos imediatos

Não toques nos objectos imediatos.
A harmonia queima.
Por mais leve que seja um bule ou uma chávena,
são loucos todos os objectos.
Uma jarra com um crisântemo transparente
tem um tremor oculto.
É terrível no escuro.
Mesmo o seu nome, só a medo o podes dizer
a boca fica em chaga.

*Herberto Helder


O sol para a terra

Encontrado na página For Reading Addicts

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Gonçalo Viana de Sousa - O Flâneur das Sensações


José,

Eis-me de novo por terras portuguesas, após mais uma viagem por esta velha Europa.
Noto que temos andando desencontrados no silêncio, pois nem eu lhe escrevi nem o jovem romântico das líquidas sensações me escreveu. Menos mal!, diria o Eça.
Escrevo-lhe agora, entregando-lhe no regaço mais um poema (bastas vezes escrito e reescrito nesse Paris de neve e de noite, sempre pensando noutras latitudes, noutros olhos).
A verdade é que tenho perdido vontade de escrever, meu caro. A cada dia que passa é olímpica a vontade de me entregar a deambulações sem nexo ou propósito, isto se perder-me pelas ruas de Paris contar como propósito.
Hei-de enviar-lhe uma impressão do eterno e impublicável Cadernos de Nicosia sobre isso mesmo. Quanto à noção de impublicável, assim continuará, pois, como já lhe disse bastas vezes, não vale a pena escrever para os outros, escrever para que os outros leiam. Tudo passa. Devemos ser somente de nós e darmo-nos aos outros na medida que a ficção o permita. Mas isto são outros assuntos que contradizem muito do que pensei há largos, distantes e jovens anos, tempos esse de cabelo liso e castanho e vivo. Tempo de possibilidades e não de deambulações ao acaso, filhas de infinitos silêncios.
Lembrei-me do que meu primo Jobim me disse uma vez, a propósito de uma conversa que tivera com António Cândido “Cada mulher que eu não tive foi uma canção que fiz”. Penso que é isso o que se passa connosco.
Comigo é semelhante, mas diferente. Cada vida que não tive foi um silêncio que criei.
Voltei a Wagner, deixando por ora as luminosas cores desse meu Brasil.
Regressei aos românticos e brumosos torreões dos castelos bávaros.
Mas isso será para outro momento.
Cheguei há dois dias de Paris (…), depois fui a (…) daí o silêncio. Espero que tenha publicado os dois poemas como lhe pedi. Sei que o fez. Se o não fez não tem mal, os deuses são bondosos porque não existem.
Trouxe-lhe mais vinho e macarons. Conto consigo para a próxima semana (…). Lembre-se do que havíamos combinado.
Sei que o acordo ortográfico voltou a criar zum zum . Sabe o que lhe digo: serei sempre contra essae acordo sem nexo, onde a língua se perde em cadernos legislativos quando se devia encontrar nos cantares e nos dançares dos portugais e brasis e angolas e guinés que há por este mundo. Cada pessoa é uma pátria. Mas nenhuma pátria é uma pessoa. Sei que não é contra o acordo. Sei bem a sua posição, jovem das futuristas aversões ao comodismo e ao estabelecido!
Respeito-o. Mas não o compreendo! Nem quero! Culpe o Voltaire, menino, não a mim.
Ainda há-de vir o tempo em que os verbos e os meses do ano serão catalogados pela bolsa! Blague!
Leia este poema e faça dele o que quiser, meu querido José.
Efraim ficou, ainda mais uns dias, por Paris. Foi uma boa decisão. Preciso de um tempo, vagaroso e líquido, sozinho, para poder pensar bem (…). Tal como lhe havia dito, lembra-se?
Bom, a missiva vai longa, mas a minha vontade de falar consigo (não a vontade de escrever, essa seca-se a todo o instante) cresce e galopa e dança como se Ida Rubinstein fosse uma barata bailarina de cabaré de terceira classe.
Escreva-me, visite-me, fale-me. Não me responda com silêncio, jovem frenético que um dia saberá amar as grandes paisagens do silêncio.
O poema, coitado, será ofuscado por todo este meu palavreado, e eu não sei se tudo isto será o efeito da nossa amizade ou do vinho que me abre os poros para as sensações destes luares de Maio, tão seráficos e bondosos (e em Coimbra tão pesados e borrados de cerveja e de gritinhos de meninas de boas famílias que vão sendo apalpadas por mãos ciosas de filhinhos de doutores que dão consultas nos HUC e nos Covões e têm consultório privado em Celas!)
Na próxima viagem será meu convidado! Iremos conhecer a Turquia, país mítico e a Oriente de um Oriente de toda a Literatura e de toda a Arte. Mas antes de irmos, é Wagner a desenhar os seus tronos de cetim e de granito, é Wagner surgindo das neblinas dos lagos e dos bosques.
Ainda hei-de aprender alemão, caro José.
Hei-de aprender com a (…) a dizer Träume, e assim encontra-lá-ei novamente, mais uma vez, naquela redentora manhã de 15 de Março de 1968.

TRÄUME.

Por agora, brindo ao seu silêncio e à minha solidão.
Um abraço longo, e apertado, e talvez agradecido,
Do

Seu

Gonçalo



"Sonhos de luar"


Que esta língua de mar e de céu
Inunde a riqueza deste país continente,
Deste Brasil que é um mosaico.
Um Brasil de Brasis.

Esta doçura líquida e azul
Que se perde no som das araras
Voando com os seus sonhos coloridos
Que são florestas e morros e luares.

E as noites sussurrando canções de amor e de amor
Lembrando aqueles tempos de Ipanema
Ao som das ondas que não sabiam
Guardar segredos de cetim e de céu,
Do céu que era azul porque azuis são os sonhos
Das noites no Rio de Janeiro.

E assim viveremos os dois
Sem tristeza que não seja Amor.
A nossa rua poderia ser aquela cento e sete
Onde o piano e a viola e os habanos e o whisky
E a amizade e o amor dançavam
Valsas sentimentais de cuíca e de tambor.

“É preciso inventar de novo o amor”.





Paris, 24 de Dezembro de 2011.




Herberto de segunda a sexta: Os selos, outros, últimos

Os selos, outros, últimos

São escórias
queimadas tocas ao negro. Com seus anéis
De chumbo é a agre
Carne humana. Como brilham violentamente as cicatrizes.
Tão fundo
O fundamento: tocas forte bebes leve pensas louco. Deténs as areias
acesas
o ar enflorado entre os cometas sobre montanhas e a sua água a uma
velocidade
branca. Ficas alumiado da espuma da tua corola.
Se as mães irradiam
leite, fôlego, fosforescência
dos botões pequenos: por umbigo te alimentas entre gengivas e língua
os mamilos dulcíssimos. A idade desta arte é a da prata aberta
idade de quando se espalha. Tudo em nome
apenas: árvore, cobra redonda. Isto foi dito às fêmeas flor
das coisas o tratamento
dos nexos ordem
a operação da rosa, e nada
é oculto. Que se ilumine o galho onde o ferro talha- e entre espelho
e espelho aparta as luzes pelas riscas que sangram.
Corres aos nós de glóbulo em glóbulo
as tuas linhas de pérolas, ramais, atua
seiva rútila.
Arranca das madres frias uma fruta cheia fende-a
A faca ou dedos
Até ao âmago: batam-lhe relâmpagos
Um halo a mantenha.
quando a substancia apure e arrefeça que inunde
a boca a estrela
te inunde todo.
Danças às vezes nas voragens - pelo poder desse
arrebatamento ,ovem-se: a cobra enrolada e
a laranjeira ao meios dos meteoros e
as mães nos tronos dos territórios silenciosos
áureas
mães aracnídeas ferrando os ganchos nos tecidos suaves
rasgando nos tecidos orifícios
vermelhos. As mães devoram-te nos imos, como devoras às cegas
e as laranjas na boca profundamente
com seu nome pleno a ouro
bravio. Águas agrestes minam-te até à transparência e ergues-te
obra o torso
vibrando
com as rosas das cicatrizes. É essa coisa que fazes
obscuramente - se um dia és lenha suada ardes
da tua própria resina se
torneias o vaso dás-lhe pela cinta quieta
uma pancada salgada um donaire
de onda, tocas na curva da bilha : ficas harmonioso.

*Herberto Helder

quarta-feira, 13 de maio de 2015

A Voar


Dança, de Ana Cristina Dias

A voar.
Porque sem chão.
A cair.
E chão nenhum.
Foi assim que me senti.
Acho que foi assim.
Foi um sentir tão grande.
Tão vazio.
Devastador.
Demolidor.
Todas as palavras possíveis com dor.
Tu fazias-me voar mas não me deixavas cair.     
Levantavas-me. Levavas-me nos teus braços.
Como se eu um balão, um avião, os meus pés longe do chão.
O meu coração a bater acelerado.
Parecia fácil chegar às nuvens.
Uma vez, tenho a certeza, consegui chegar, tocar numa nuvem, com a ponta do meu pé esquerdo, com o dedo gordo do meu pé esquerdo.
Uma nuvem baixa e fofa, tão fofa que nada senti.
A voar.
A voar como um pássaro dentro das tuas mãos, dos teus braços copa de árvore cheios de ninhos.
Havia sempre pássaros a cantar nos nossos passeios.
Todos os dias dávamos um passeio na floresta.
Por tua causa, tu o causador, uma palavra sem dor, tive uma floresta encantada.
Tu, com as tuas histórias, o encantador, outra palavra sem dor.
Tu a flauta, eu a serpente, a dançar encantada.
Foi contigo que aprendi a dançar.
Foste o primeiro homem com quem dancei. Os meus pés sobre os teus pés. Os meus pés longe do chão, eu de braços esticados presa aos teus ombros, como uma peça de roupa a secar no estendal.
Foste o primeiro homem em tantas coisas.
Eu pela tua mão, deslumbrada.
Eu gostava do Outono, perguntavas e eu respondia.
A estação de todas as cores, das folhas, do vento, dos cogumelos.
Contigo aprendi a distinguir os venenosos dos comestíveis.
Na vida temos de saber distinguir o bom do mau, dizias.
Tu preferias o Verão, por causa do calor, alívio das dores que já então te tolhiam os ossos, do barulho das cigarras, do cheiro raro a terra molhada e das amoras.
E não sei dizer se gostavas mais de amoras se da sua ausência.
Tu a suspirar por amoras, o teu fruto preferido, dizias.
Apanhavas amoras e eu manchava as mãos e o vestido, e piscavas-me um olho como que a dizer, não te preocupes e eu não me preocupava, porque ao ver as nódoas no vestido a mãe ralhava só contigo, num ralhar cheio de riso.
Depois o Inverno e a abstinência dos passeios pela floresta nos dias de chuva.
Os dois abandonados dentro de casa como pássaros dentro de uma gaiola.
Brincavas comigo na sala, no tapete verde da sala, mas não era a mesma coisa.
A mãe enquanto fazia o jantar olhava para nós com pena.
Chovia muito no Inverno.
Talvez não chovesse assim tanto, às vezes as memórias são tão diferentes de tudo o que aconteceu.
E eu já não me lembro de tudo, passaram muitas estações, também cresci, envelheci.
Envelhece-se rápido, como se com pressa.
Só na infância o tempo sobra ao ponto de parecer inútil, só na infância essa pressa me parece agora legítima dado o credível alibi da inocência.
Entretanto tu envelheceste mais, envelheceste ao ponto de precisares de mim.
Lembro-me da última vez que te levei a passear pela floresta.
Tu pela minha mão, e não pela minha mão, eu a empurrar-te numa cadeira de rodas.
A cadeira a rodar com dificuldade pelo chão de terra, a empancar na erva seca e nas pedras avulsas.
Um passeio pequeno porém verde.
Fiz-te uma surpresa, levei uma garrafa de vinho, o teu preferido.
Estavas proibido de beber.
Enquanto bebias, saboreavas, o teu olhar brilhava como o de uma criança em delito fora de flagrante.
Quase não falámos.
Não precisávamos de falar.
Ouvimos os pássaros. Andorinhas, pardais, tentilhões, melros.
Ao entardecer uma sinfonia perfeita, merecedora de vivas e palmas.
Lembras-te? Nós não sabíamos que era o nosso último passeio ou talvez soubéssemos porque nos demorámos.
Esperámos pelo pôr-do-sol, pelo que o fim, a anoitecer ainda mais triste. Um lusco-fusco sem luz, sem pássaros, ainda sem mochos e corujas, que aves que são respeitam o horário das galinhas, a floresta desencantada.
O horário das galinhas como se o meridiano de Greenwich, disseste a tentar a graça, mas nenhum dos dois conseguiu rir.
Lembras-te?
Como te podes lembrar se já não estás aqui.
E como é possível não estares onde sempre estiveste?
No portão da escola à minha espera, ao meu lado a passear pela floresta, à espera do meu sono depois de apagar a luz do candeeiro na mesinha de cabeceira e depois, quase magia, sempre ao meu lado quando acordava, porque todos os dias, eram os teus olhos a luz primeira dos meus dias.


Raquel Serejo Martins

Este texto, esta small SONG, teve como ponto de partida o quadro supra, trabalho da pintora Ana Cristina Dias.
Mais trabalhos em: http://eu-e-a-pintura.blogspot.pt/.

Não se admire de tão grande abandono escolar senhor ministro

Entro na escola sou logo abordado por uma senhora com o penteado semelhante ao do meu irmão que me esbarra o caminho e
-Onde está o teu cartão rapazola onde está o teu cartão rapazola
E eu a pensar se alguma vez algum cartão da escola e a concluir que sim mas que decerto já perdido algures no mundo e por isso
-Não o trouxe minha senhora, posso passar, vou ter aula
E ela toda vaidosa lá do alto da autoridade que lhe empresta a bata branca
-Passa lá rapazola eu deixo-te passar aproveita que estou de bom humor
E no seguimento eu numa vénia bastante agradecido para com a senhora que tão bondosa me deixou passar
-Obrigado e bom dia minha senhora
E ela sem retribuir a educação, meio aceno de cabeça demasiado distante e o nariz o mais empinado do mundo
Dez para as dez há ainda tempo para ir ao bar
Diz o senhor Custódio
-E tu jovem o que vai ser jovem hã jovem
E eu indeciso, o olhar preso no expositor, que há-de ser que há-de ser, são os mais simples os maiores dilemas da vida
-Um Croissant de chocolate senhor Custódio se fizer o favor
-70 cêntimos jovem vou já buscar
E portanto eu a contar os trocos e a demorar uma eternidade, moedas pretas que são as que prefere ele, já lhe conheço as teimas, todos os dias negoceio com o Senhor Custódio
Nisto lá atrás um sócio vestido como se fosse a escola Torres Vedras e o tempo Carnaval
-Despacha-te lá oh palhaco vai tocar tenho que ir para a sala oh palhaço
E eu a continuar na contagem dos trocos, 50, 55, 60, às duas por três um toque no braço e tudo caído no chão
-Mreda que filha da que filha da
Em simultâneo com estas minhas palavras um sócio mais novo com o mesmo gosto caricato em termos de vestuário a apanhar as moedas do chão, por certo deve também querer fazer negócio com o Senhor Custódio, pensou ele que não o vi, foi-se embora a trote todo contente
E logo a seguir o outro sócio de há bocado ainda na insistência
-Oh palhaco vai-te masé embora pá ganda palhaço
Tomo-lhe as palavras como certas e vou-me por isso embora, ficou-me um dos sócios com as moedas, ficou-me o outro com a vez na fila, fiquei eu sem croissant e vazio de trocos
Cinco para as dez é hora
Eu a subir as escadas quando umas pernas transbordando calor ali à frente e por isso a minha vista tão concentrada nessas matérias de pernas e outros materiais quase à vela que perco a atenção aos degraus, resvala-se-me um pé seguindo-lhe o outro o caminho e bumbas caio quadrado com um baque de estaca de madeira
E logo em auxílio
-Tão puto precisas de ajuda puto eu ajudo-te puto
Lá me levanto apoiado todo no puto que meu grande companheiro, lá se riem as pernas da minha queda, lá eu as mando para aqui e para ali no silêncio do pensamento, finalmente me respondem elas com sorrisos, grande charme que tenho
Nisto uma sócia com a barriga ao léu (é a minha escola uma exposição de peles femininas, as há de vários tons) a descer as escadas esbaforida e em gritos que ouvidos para lá do Marquês
-Meus putos meus putos não temos aula a stôra faltou ganda mel meus putos
Está neste ponto o meu dia feito, não aula não croissant não moedas e umas nódoas negras nos membros, vou-me deitar que assim com certeza não mais peripécias, não se admire de tão grande abandono escolar senhor ministro

Gonçalo Naves


Foto tirada daqui: http://www.outracoisa.com.br/?p=10130

Herberto de segunda a sexta: simília similibus

simília similibus

Quem deita sal na carne crua deixa
a lua entrar pela oficina e encher o barro forte:
vasos redondos, os quadris
das fêmeas - e logo o meu dedo se poe a luzir
ao fôlego da boca: onde
o gargalo se estrangula e entre as coxas a fenda
é uma queimadura
vizinha
do coração - toda a minha mão se assusta,
transmuda,
se torna transparente e viva, por essa força que a traga
até dentro,
onde o sangue mulheril queimado
a arrasta pelos rins e aloja, brilhando
como um coração,
na garganta - o sal que se deita cresce sempre
ao enredo dos planetas: com unhas
frias e nuas
retrato as lunações, talho a carne límpida
- porque eu sou o teu nome quando
te chamas a toda a altura
dos espelhos e até ao fundo, se teus dedos abertos tocam
a estrela
como uma pedra fechada no seu jardim selvagem
entre a água: tu tocas
onde te toco, e os remoinhos da luz e do sal se tocam
na carne profunda: como em toda a olaria o movimento
toca a argila e a torna
atenta
à translação da casa pela paisagem rodando sobre si
mesma - a teia sensível,
que se fabrica no mundo entre a mão no sal
e a potência
múltipla de que esta escrita é a simetria,
une
tudo boca a boca: o verbo que estás a ser cada
tua morte
ao que ouço, quando a luz se empina e a noite inteira
se despenha
para dentro do dia: ou a mão que lanço sobre
esse cabelo animal
que respira no sono, que transpira
como barro ou madeira ou carne salgada
exposta
a toda a largura da lua: o que é grave, amargo, sangrento.

*Herberto Helder


in Teoria dos Limites


*In Teoria dos Limites, Maria Manuel Viana
edição teodolito, esta é a contracapa

"(...) e ele já saltara para outra história, mais uma vez sobre nomes, dir-se-ia que não havia outro assunto naquela família, agora por causa dos cães, também ele era um homem que gostava de cães, havia lá em casa sempre pelo menos um dog alemão, ou grand danois, enormérrimo, lindíssimo, e chamavam-lhe todos Cão, assim sem mais, Cão, e ela interdita, como é que o cão não tinha nome próprio, e ele, Cão é nome, porque é que não é nome?, e a três, a Mariana, a Ana Lúcia e ela, resolveram ir à procura, nos dicionários que estavam na biblioteca, como se dizia cão nas outras línguas, dog claro que sabiam, mas em francês, em espanhol, em italiano, em alemão, em latim, que era uma língua que ele afirmava ser a mais importante de todas, como diriam cão esses povos?, e escreveram tudo num papel, e puseram-se no jardim a gritar chien, perro, cane, hund, cane outra vez, que coisa mais esquisita!, e o bicho nada, nem sombra, só aparecia triunfante quando, por fim, berraram cão."

terça-feira, 12 de maio de 2015

chama


ágil o fogo que as tuas mãos
desprendem
como se abrissem a porta
ao tempo de penumbra
e uma estrada
de encandeamento começasse.

Helder Magalhães


David Uzochukwu | Photography

É do borogodó: crônicas que nasceram enquanto eu olhava a cidade

coisa mais bonita me aconteceu. eu ia ali no caminho com meus olhos grudados na gente na minha cidade. são tão diferentes os passos que passam pelas sempre mesmas ruas. o motoqueiro veio no zigue zague com a possante requenguela. parou no farol, largou a moto e partiu pro meio da perpendicular que estava com o sinal fechado.

– acho que caiu alguma coisa dele ali – lembro que pensei.

heroicamente ele apanhou um colibri preso no calor do asfalto, caminhou até o canteiro para deixar o bichinho na árvore quando já parecia que não tinha mais jeito.

a vida cuida da vida, afinal. a brisa levou o colibri voando ligeiro ou foi mesmo o colibri quem deu asas à brisa. passou lindo pelos meus olhos e eu aplaudi o motoqueiro e mandei beijinhos para ele dizendo assim:
– você fez meu dia!

Penélope Martins


Herberto de segunda a sexta: Do Mundo

Do Mundo

Quem anel
a anel há-de pôr-me a nu os dedos
Quando me arrancarão a camisa,
Quando se verá o torso e braço a braço
Todo o peso
Apoiado à luz ?
Alguém me tocará para que eu estanque.
se tivesse escondido entre objectos exaltados
uma estrela e o seu combustível.
desfaçam devagar o que me liga
primeiro a cada estado do mundo,
depois à memória.
Desfaçam-me do nome, o grande coágulo de sangue,
umbigo que habilmente se desamarra.
todas as coisas pequenas que me cercam, para que servem
elas? Desembaracem-me:
o cântaro cheio da força das dedadas,
o copo coriscando,
garfos e o seu fogo, facas e o seu fogo, a carne
profunda na minha carne pela boca devoradora,
louça e o seu fogo.
Alguém há-de saber de tanto fôlego junto.
Basta a mão direita para quebrar a água
misteriosamente, a mão
para devolver-me à fonte.
Não é preciso que seja raiada, essa pessoa
Leve e potente, só
que fique no meio da dança um pau em brasa
com a floração: quero que me pare, que me abra.
que use a chave da minha obscuridade.
Antes de me terem chamado com água dentro da pedra,
gosto amargo, unhas
e dentes.
A seda com que teci a malha entre pedaços humanos:
membros criando um espaço, respiradouros, anéis rudes
nas cabeças, uma
beleza viva.
Alguém há-de tocar-me com um dedo, alguém
há-de pôr-me um selo.

*Herberto Helder


Forma de estar

Encontrado na página For Reading Addicts


segunda-feira, 11 de maio de 2015

Herberto de segunda a sexta: Não sei como dizer-te

Não sei como dizer-te

Não sei como dizer-te que minha voz te procura e a atenção começa a florir, quando sucede a noite esplêndida e vasta. Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos se enchem de um brilho precioso e estremeces como um pensamento chegado. Quando, iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado pelo pressentir de um tempo distante, e na terra crescida os homens entoam a vindima - eu não sei como dizer-te que cem ideias, dentro de mim te procuram.
Quando as
folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.

Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.
Durante a
primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço –
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega dos meus lábios,
sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milgares
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
que te procuram.

*Herberto Helder

Snobidando: Tonino Guerra

CANTO NONO - Tonino Guerra

Terá chovido durante cem dias e a água infiltrada
pelas raízes das ervas
chegou à biblioteca banhando as palavras santas...
guardadas no convento.

Quando tornou o bom tempo,
Sajat-Novà o frade mais jovem
levou os livros todos por uma escada até ao telhado
e abriu-os ao sol para que o ar quente
enxugasse o papel molhado.
Um mês de boa estação passou
e o frade de joelhos no claustro
esperava dos livros um sinal de vida.
Uma manhã finalmente as páginas começaram
a ondular ligeiras no sopro do vento
parecia que tinha chegado um enxame aos telhados
e ele chorava porque os livros falavam.

Retirado de "O Mel"
Assírio e Alvim

(na foto Andrei Tarkovsky e Tonino Guerra)

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Foto frase do dia: Ali Smith