quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Clube de Leitores COM_vida: Jorge Silva Melo


UM TEATRO PARA ÁLVARO LAPA?

Enigmática, secreta, estranha, irredutível a escrita de Álvaro Lapa, pintor. E, no entanto, há quem, no mundo dos espectáculos (a que ele era tão avesso) o queira. Até sábado, no nosso TEATRO DA POLITÉCNICA, João de Sousa Cardoso e Ana Deus apresentam RASO COMO O CHÃO (foto de João Tuna). E não é a primeira vez, já tinham pegado em PORQUE MORREU EANES e nós pegámos em BARULHEIRA que o João Meireles trabalhou em 1998. Que engraçado.
E foi sobre ele que fiz um filme, e sobre ele escrevi:
"Em entrevista dada em 1971 ao jornal A Capital, e com o título extraordinário  A Degradação do Silêncio, escreveu Lapa (e é visivelmente escrita esta entrevista lapidar): “Do que eu vivo e dou a ver é da recusa. Sugiro um exemplo, o da interrogação acessível a qualquer homem. Mas também traduzo a resposta em forma de solução prática, e aqui me quereria ver mais acompanhado. Por exemplo: supôs-se finalmente, que eu sugeria atitude avessa ao século. Por falta de empenho em viver dele? Por desinteresse óbvio para com as manhas que o absolvem? Por lhe não pertencer, de algum modo, o aborrecer? Sim, é patente na minha obra a função de recusa. Mas tem-se mais para ver, se se aceitar a recusa ao fundo do nível, em que o que há não são os nomes e os pleonasmos, e as coisas encorpadas do luxo mole, mas a permanente retirada do ser ante os olhos, e a sua recriação impotente, que é o efémero destacar-se em fundo de vazio, há o Tempo, oh prováveis testemunhas, há a minha morte a desmascarar os exageros do langor animal. Qual é a solução prática?, respondereis. E eu pergunto-vos, provavelmente em pintura: todas as soluções são práticas. Por exemplo? A criação de um acto. Outro exemplo? A sua aceitação sem culpa. Outro ainda? A sua comunicação. Sabeis somar: o optimismo incurável de dever morrer.”
Raso como o chão: campa, tábua sobre a terra, mesa, nada, a morte anda aí, o optimismo irrecusável.
E se Lapa escreve, eu nunca diria que é para lembrar nem sequer para fixar o perdido acaso, e volto a Blanchot: “Presente, já a sua própria imagem, e a sua imagem, não a recordação, o esquecimento de si mesma. Ao vê-la, ele via-a tal como ela haveria de ser, esquecida.” (L´Attente, l´Oubli)."
Que bom!

(Raso como o Chão, Ana Deus, fotografia de João Tuna)

Jorge Silva Melo
(Convidado do Clube de Leitores)

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