sábado, 26 de maio de 2012

Livro do mês: a questão da crença ou descrença na vida após a morte

Várias são as questões levantadas na leitura do mês - «Somos o Esquecimento que Seremos». Héctor Abad Faciolince vai abordando temáticas que vão aumentando de interesse, página a página. Nesta passagem escreve sobre a sua visão da crença e da descrença. Respeitando as duas e tentando explicar a sua origem.


"Às vezes, algumas pessoas, ébrias de racionalidade, quando crescem pensam melhor e, durante alguns anos, adoptaram o ponto de vista da descrença, mesmo que tenham recebido uma educação confessional. Porém, basta uma qualquer fragilidade da vida, a velhice ou a doença para os tornar tremendamente susceptíveis a procurar o apoio da fé, encarnada nalguma potência espiritual. Apenas os que forem expostos, desde muito cedo na vida, à semente da dúvida poderão questionar de uma ou outra das suas crenças. Contudo, para aqueles que desconhecem a vida espiritual (no sentido de seres e lugares que sobrevivem à morte ou que são preexistentes à nossa própria vida) haverá sempre uma dificuldade adicional, que consiste em que, provavelmente, devido a uma certa agonia existencial do homem e à nossa torturante e tremenda consciência da morte, o consolo proporcionado pela crença noutra vida e numa alma imortal capaz de chegar ao Céu ou de transmigrar será sempre mais atraente e dará mais coesão social e sentimento de irmandade entre pessoas afastadas que a fria e desencantada visão na qual se exclui a existência do sobrenatural. Nós, os homens, sentimos uma profunda paixão natural que nos atrai para o mistério, e é uma tarefa dura e quotidiana evitar a armadilha e a tentação permanente de acreditar numa indemonstrável dimensão metafísica, no sentido de seres sem princípio nem fim que são a origem de tudo, e em impalpáveis substâncias espirituais ou almas que sobrevivem à morte física. Porque, se a alma equivale à mente, ou à inteligência, é fácil demonstrar (basta um acidente cerebral ou os obscuros abismos da doença de Alzheimer) que a alma, como disse um filósofo, não só não é imortal, como é muito mais mortal que o corpo."

In Jesusalém

Jesusualém é um livro de Mia Couto, publicado pela Caminho.



"- Toda a terra é caminho, para a cabra. E todo o chão é pasto. Não há bicho mais sábio – comentava Zaca.
Sabedoria da cabra é imitar a pedra para viver. Certa vez, enquanto eu o ajudava a recolher o gado no curral, Zacaria, confessou: que havia, sim, uma lembrança que o visitava de forma recorrente. Essa recordação era a seguinte: durante a Guerra Colonial, uma ocasião, ele viu chegar ao quartel um soldado ferido. Hoje ele sabe: os soldados estão sempre feridos. A guerra fere mesmo os que nunca saíram em batalha. Pois esse soldado não passava de um menino, esse soldadinho sofria do seguinte mal: sempre que tossia lhe saía pela boca uma torrente de balas. Essa tosse era contagiosa: era preciso afastar-se. A Zacaria não lhe apeteceu apenas afastar-se do quartel. Ele quis emigrar do tempo de todas as guerras.
- Ainda bem que o mundo acabou. Agora, recebo ordens é do mato.
- E do pai?
- Sem ofensa, vosso pai faz parte do mato.
Eu estava no caminho inverso de Zaca: um dia seria bicho. Como é que, tão longe de gente, nós ainda éramos homens? Essa era a minha dúvida.
- Não pense assim. Lá na cidade é que nós nos bichamos.
No momento, não avaliava o quanto o militar estava certo. Mas hoje, sei: quanto mais inabitável, mais o mundo fica povoado."

sexta-feira, 25 de maio de 2012

In O Mar Por Cima

Num livro de Possidónio Cachapa.

"Era a voz da mulher de Sabino, proprietária recente, da casa em que jazia David e os seus. Tinha por nome Aurora e dela, nada mais se sabia que ter sido a mais velha de seis irmãos homens e a mãe de três filhos rapazes. Nunca se tinha visto noutro sítio que não fosse nos arrabaldes do tanque da roupa, ou agarrada à sertã gigante onde centenas de chicharros se afogavam amiúde, em óleo quente, antes de desaparecerem pela boca da numerosa prole, sempre insatisfeita e esfomeada.



Tinha a voz de um corvo afiado e, desde a primeira hora, David sentiu por ela uma aversão simpática. O corpo era magro, para adensar o mistério de tanta paridela. Corria os filhos a pau, sempre que chovia ou que as vozes deles se elevavam em protesto. Eles riam-se, já matulões e deixavam-se bater, com a displicência de quem está no campo e vê as moscas pousarem-lhe sobre a perna vestida.
- Ó Fernando Manueeeell! – gritava ela enquanto a serradura caí no chão por varrer da oficina, ao som daquela soprano sem futuro."

Daniel Faria - o poeta para descobrir

Daniel Faria, quis o destino, morreu muito novo em consequência de um acidente. A queda que o afastou de nós... a poesia que permaneceu.

"No Seminário e na Faculdade de Teologia criou gosto por entender a poesia e dialogar com a expressão contemporânea. Licenciou-se em Estudos Portugueses na faculdade de Letras da Universidade do Porto. Durante esse período (1994 - 1998) a opção monástica criava solidez. A partir de 1990, e durante vários anos, esteve ligado à paróquia de Santa Marinha de Fornos, Marco de Canaveses. Aí demonstrou o seu enorme potencial de sensibilidade criativa encenando, com poucos recursos, As Artimanhas de Scapan e o Auto da Barca do Inferno."

A Fundação Manuel Leão publicou a sua obra postumamente. Primeiro com "Dos Líquidos" e depois com "Explicação das Árvores e de Outros Animais". Nos anos que se seguiram, a Quasi recuperou "Dos Líquidos" e seguiram-se "Poesia - Daniel Faria" - uma compilação que reuniu as suas obras: 'Explicação das árvores e de outros animais'; 'Homens que são como lugares mal situados'; 'Dos líquidos'; 'Uma cidade com muralha'; 'Oxálida'; e 'A casa dos ceifeiros' - e "O livro do Joaquim" - um projecto inacabado e abandonado pelo autor. 

Infelizmente toda a obra do poeta está esgotada. Tenho pena que não haja alguém que a re-edite. De qualquer forma, seleccionei alguns dos seus poemas. Espero que gostem.

Explicação da Ausência

"Desde que nos deixaste o tempo nunca mais se transformou
Não rodou mais para a festa não irrompeu
Em labareda ou nuvem no coração de ninguém.
A mudança fez-se vazio repetido
E o a vir a mesma afirmação da falta.
Depois o tempo nunca mais se abeirou da promessa
Nem se cumpriu
E a espera é não acontecer — fosse abertura —
E a saudade é tudo ser igual."

Quero a Fome de Calar-me

"Quero a fome de calar-me. O silêncio. Único
Recado que repito para que me não esqueça. Pedra
Que trago para sentar-me no banquete

A única glória no mundo — ouvir-te. Ver
Quando plantas a vinha, como abres
A fonte, o curso caudaloso
Da vergôntea — a sombra com que jorras do rochedo

Quero o jorro da escrita verdadeira, a dolorosa
Chaga do pastor
Que abriu o redil no próprio corpo e sai
Ao encontro da ovelha separada. Cerco

Os sentidos que dispersam o rebanho. Estendo as direcções, estudo-lhes
A flor — várias árvores cortadas
Continuam a altear os pássaros. Os caminhos
Seguem a linha do canivete nos troncos

As mãos acima da cabeça adornam
As águas nocturnas — pequenos
Nenúfares celestes. As estrelas como as pinhas fechadas

Caem — quero fechar-me e cair. O silêncio
Alveolar expira — e eu
Estendo-as sobre a mesa da aliança"

Estranho é o Sono que não te Devolve

"Estranho é o sono que não te devolve.
Como é estrangeiro o sossego
De quem não espera recado.
Essa sombra como é a alma
De quem já só por dentro se ilumina
E surpreende
E por fora é
Apenas peso de ser tarde. Como é
Amargo não poder guardar-te
Em chão mais próximo do coração."

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Um certo jeito de ensaio sobre uma espécie de solidão


A propósito deste texto do Jaime Bulhosa no blogue da Livraria Pó dos Livros:

A senhora X, octogenária, vem desde há quatro anos, todas as tardes, à livraria Pó dos Livros. Entra silenciosamente e, como é costume, cumprimenta-nos com um suave: - Boa tarde. Depois, dirige-se devagarinho para as estantes junto ao café e retira como é habitual dois ou três títulos e tão silenciosamente como entra, senta-se no café, sempre no mesmo lugar, a ler. Quando chega a hora de fechar, deixa os livros em cima da mesa e retira-se com outro ameno: - Boa noite. Em quatro anos, boa tarde e boa noite, foram as únicas palavras que lhe ouvi proferir. Não foi pelo facto da senhora utilizar a livraria como biblioteca que decidi perguntar-lhe a razão porque o fazia há tanto tempo, apenas por curiosidade. Respondeu-me: - Venho para cá porque vocês me fazem companhia. Em casa estaria, mais uma vez, sozinha. Dia 10 de Novembro de 2011 Nota: Já há uns dias que tinha dado pela ausência. A partir de agora e todos os dias, no fim da tarde, no café, há uma cadeira que antes ocupada estará vazia. Tive a triste notícia de que a senhora faleceu. Vai fazer-me falta a silenciosa companhia. 

Deu-me vontade de escrever e ensaiar o que agora partilho aqui. 

A solidão tem das suas coisas, sozinhos no meio de tanta gente, abandonados em cidades afogadas de pessoas. Tanta gente sozinha no meio de tanta gente. Procuramos tantas vezes alguém para falar, muitas das vezes só para ouvir. Nos meus dias em que contacto mais directamente com os leitores também já vi pessoas destas. As que procuram numa pequena pergunta uma conversa que dure mais que os minutos da resposta imediata. Os que são fiéis visitantes, que se cumprimenta, com que se trocam umas palavras, os que voltam todos os dias e no fim dizem "até para o ano... se deus quiser". 

Eu não acredito em deus, mas acredito na solidão. A solidão demasiado ruidosa, como escreveu o Bohumil Hrabal que também já passou pelo blogue

A solidão das vozes do passado que insistem em falar dentro das nossas cabeças. O barulho lá fora, ensurdecedor de tão silencioso, compassado. O autocarro que passa de hora a hora, o sino da igreja mais próxima, um lixeiro que passa a arrastar a vassoura lentamente porque o lixo não tem pressa, porque as horas da noite são mais demoradas.

Os relógios que demoram as noites em horas longas de insónia. Mil pensamentos enquanto se olha para um tecto vazio, em branco. Mil ideias para colocar numa folha branca, vazia, e uma caneta que se recusa a escrever isso tudo.

A solidão do escritor, acompanhado pela biblioteca, pela caneta, pelas folhas. Uma chávena de chá que tenta almofadar a solidão. A recordação do cheiro da mulher que passou aqui bem agora e que largou um beijo. Ciumenta daqueles papéis em branco que a deixam também numa outra solidão.

A manhã que se levanta e o sol que insiste em não se cruzar com a lua. Sós os dois a cumprirem as suas funções. Um de cada vez. Os ruídos que se transformam e mais um dia para arrancar. Fechado nessa solidão que me põe no meio dos outros.


A verdade é que o mundo dos livros é muitas vezes feito de solidões. Estar sozinho para ler, para escrever, escrever sobre a solidão. A ficção empurra-nos para esse caminho. Procurar um eu que não está ali, construir uma história, inventar uma amante, um crime, uma morte. Criar algo.

"Minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem de grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite."
Clarice Lispector

Sem entrar por um campo demasiado esotérico ou religioso, todos, todas as pessoas são limitadas pelo seu próprio corpo. Fisicamente, terminam onde acaba a sua pele e, durante toda a sua vida, carregam a si mesmas, mas não se pode carregar ou conter nenhum outro. Ontologicamente, pela sua própria natureza física, o ser humano é solitário. Entra no mundo, faz sua trajectória por ele e também o deixa completamente sozinho, termina solitário. 

E agora... agora...
Vou só ali espreitar onde ficou a minha cidade. saber o que foi feito de mim neste tempo em que me deixei adormecer da realidade. Vou só ali num instante... não porque tenha pressa. Sei que não posso mais voltar ao lugar onde estava. A cidade não voltará a ser como era antes. Nós nunca mais seremos os mesmos. As ruas vão continuar a saber dos nossos passos e as paredes das nossas vozes. Mas a cidade essa sabe que há coisas que mudam.


A Virgem de Fátima no livro do mês... A visão da Colômbia

Este livro continua a ser uma agradável descoberta e das melhores leituras deste meu ano. Fui encontrar a Virgem Santíssima de Fátima descrita em alguns pontos do romance. No trecho que deixo, pairava a dúvida de qual seria o terceiro segredo de Fátima. Como se veio mais tarde a saber, não coincide com a crença que circulava pela Colômbia...

"Para contrabalançar a força destas correntes desagregadoras, a Virgem de Fátima era uma ajuda sobrenatural que reconduziria as massas pela senda da devoção, da verdade, da resignação cristã ou da muito tímida doutrina social da Igreja. A aparição da Santíssima Virgem em Portugal converteu-se, mais que a miséria, a água ou a reforma agrária, no tema de conversa obrigatório nas casas de família, nas modistas, nos cabeleireiros e nos cafés. Em muitas discussões, faziam-se conjecturas e travavam-se longas disputas teológicas sobre os segredos revelados pela Santíssima Virgem aos três pastorinhos da Cova de Iria, aos quais  aparecera. O terceiro segredo, que era terrível e apenas do conhecimento da última pastorinha sobrevivente e do Sumo Pontífice, era o que mais despertava a fantasia e, portanto, alimentava o lado fabulador das pessoas. A hipótese que mais seguidores tinha, e que todos os padres insinuavam sub-repticiamente nos seus sermões, era terrível, e consistia na iminência da Terceira Guerra Mundial entre os Estados Unidos e a Rússia, ou seja, entre o Bem e o Mal, que não seria combatido com espingardas nem com canhões, mas com bombas atómicas, e seria como a batalha definitiva entre Deus e Satanás. Todos deveríamos estar preparados para o grande sacrifício e, entretanto, rezar o terço todos os dias e rogar pelas intenções dos bons para que a Rússia, essa inimiga de Deus e aliada do Inimigo, não ganhasse. Esta equivalência do terceiro segredo ao anúncio da Terceira Guerra Mundial, de resto, tinha na história contemporânea muitos indícios verdadeiros em que se apoiar, pois não é mentira que, por várias vezes, naquelas décadas da Guerra Fria, estivemos à beira de uma hecatombe, seja pelos motivos mais fúteis do pundonor humano e nacionalista, seja pelo risco de um acidente nuclear."

in «Somos o Esquecimento que Seremos» - Héctor Abad Faciolince - livro do mês de Maio. Publicado pela Quetzal.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

In As Partículas Elementares

Um livro de Michel Houellebecq.

"As raparigas, hoje, eram mais avisadas e racionais. Preocupavam-se sobretudo com os resultados escolares, preocupavam-se em conseguir um futuro profissional decente. As saídas com os rapazes não eram mais do que uma actividade de lazer, um divertimento onde intervinha, em partes mais ou menos iguais, o prazer sexual e a satisfação narcísica. Depois, queriam fazer um casamento sensato, na base de uma compatibilização das situações socioprofissionais e de uma certa comunhão de gostos. Claro que, fazendo isto, afastavam todas as hipóteses de felicidade – já que esta é indissociável de estados fusionais e regressivos incompatíveis com o uso prático da razão – mas esperavam, ao menos, escapar aos sofrimentos sentimentais e morais que tinham torturado as mulheres que as precederam. Esta esperança era, de resto, rapidamente frustrada, porque a ausência de tormentos passionais deixava, de facto, o campo livre ao tédio, à sensação de vazio e à espera angustiada da velhice e da morte. Por isso, a segunda parte da vida de Annabelle tinha sido mais triste e mais morna do que a primeira, e ela, para o fim, já nem deveria ter, nenhumas recordações dela."

João Ricardo Pedro (prémio Leya 2011) ou Mia Couto? Os dois dominam as vendas de livros

Uma estreia catapultada para o topo e, do outro lado, um escritor que já dá cartas há uns anos. Ambos têm animado as vendas nas livrarias. Hoje ficamos a conhecer a história que cada um tem para contar.

Sobre João Ricardo Pedro, a crítica teceu fortes elogios ao seu primeiro romance. José Mário Silva escreveu no Expresso: "O vencedor do Prémio Leya 2011 escreveu um dos romances de estreia mais fortes e entusiasmantes da literatura portuguesa dos últimos anos.”

Os elogios prosseguem:
“O prémio Leya 2011 pode bem ser o retrato literário de que uma geração andava à procura.”
Rui Lagartinho, Público
“Pela sua qualidade, honra o mais avultado galardão literário português, e o seu autor veio para ficar.”
Miguel Real, Jornal de Letras

Quanto ao livro, fica aqui a sinopse de «O teu Rosto Será o Último»:

"Tudo começa com um homem saindo de casa, armado, numa madrugada fria. Mas do que o move só saberemos quase no fim, por uma carta escrita de outro continente. Ou talvez nem aí. Parece, afinal, mais importante a história do doutor Augusto Mendes, o médico que o tratou quarenta anos antes, quando lho levaram ao consultório muito ferido. Ou do seu filho António, que fez duas comissões em África e conheceu a madrinha de guerra numa livraria. Ou mesmo do neto, Duarte, que um dia andou de bicicleta todo nu.

Através de episódios aparentemente autónomos - e tendo como ponto de partida a Revolução de 1974 -, este romance constrói a história de uma família marcada pelos longos anos de ditadura, pela repressão política, pela guerra colonial.

Duarte, cuja infância se desenrola já sob os auspícios de Abril, cresce envolto nessas memórias alheias - muitas vezes traumáticas, muitas vezes obscuras - que formam uma espécie de trama onde um qualquer segredo se esconde. Dotado de enorme talento, pianista precoce e prodigioso, afigura-se como o elemento capaz de suscitar todas as esperanças. Mas terá a sua arte essa capacidade redentora, ou revelar-se-á, ela própria, lugar propício a novos e inesperados conflitos?"
Mia Couto dispensa apresentações. Fiquem com a sinopse e um excerto da história do seu mais recente trabalho «A Confissão da Leoa», publicado pela Caminho: 

"Um acontecimento real – as sucessivas mortes de pessoas provocadas por ataques de leões numa remota região do norte de Moçambique – é pretexto para Mia Couto escrever um surpreendente romance. Não tanto sobre leões e caçadas, mas sobre homens e mulheres vivendo em condições extremas.A Confissão da Leoa é bem um romance à altura de Terra Sonâmbula e Jesusalém, já conhecidos do leitor português."

«Os nossos jovens colegas trabalhavam no mato, dormindo em tendas de campanha e circulando a pé entre as aldeias. Eles constituíam um alvo fácil para os felinos. Era urgente enviar caçadores que os protegessem. Os caçadores passaram por dois meses de frustração e terror, acudindo a diários pedidos de socorro até conseguirem matar os leões assassinos. Mas não foram apenas essas dificuldades que enfrentaram. De forma permanente lhes era sugerido que os verdadeiros culpados eram habitantes do mundo invisível, onde a espingarda e a bala perdem toda a eficácia. Aos poucos, os caçadores entenderam que os mistérios que enfrentavam eram apenas os sintomas de conflitos sociais que superavam largamente a sua capacidade de resposta. Vivi esta situação muito de perto. Frequentes visitas que fiz ao local onde decorria este drama sugeriram-me a história que aqui relato, inspirada em factos e personagens reais.»

Boas leituras!

terça-feira, 22 de maio de 2012

Coimbra Revisited III

Parte Terceira:


Os dias prolongam-se imensos por aqui. Entre o calor arrebatador e a chuva repentina, entre a cidade dos estudantes que esteve em festa e o quase colapso nervoso de uma Briosa vitória. Não prolongo mais a descrição, o certo é que há história que fica na história e poesia no meio do branco e preto em que a cidade se encontra vestida. Adiante.

Penedo da Saudade e outras miragens. Aqui as pedras falam. Umas vezes sussurram. Hoje gritam. Daqui, mais uma vez, contempla-se parte da cidade, escondem-se segredos, imperam as rimas escritas nas várias pedras, recordações dos amores de estudante que duram bem mais que uma hora. Muitos deixaram o devaneio eternizado esculpindo versos, somando páginas sólidas à sua memória afectiva. E aqui a água corre em pequeninas fontes. Sabe tão bem, de Verão ou de Inverno. E as Serenatas? As Serenatas no Penedo dão-lhe o auge da Saudade, não é preciso mais nada para conhecer o aperto e deixar a voz ecoar ou os sentidos permitirem o arrepio da pele. O Penedo é a outra face da imagem das pedras da calçada, aquelas que testemunham os passos, a caminhada, o trajecto de uma vida feita de símbolos. Não é uma inspiração, é uma ode à eternidade. Capa negra de Saudade, no momento da partida, Segredos desta cidade levo comigo para a vida.* É um canto mais que próprio, por si, porque quem passa, por quem se quer inspirar, abrir os pulmões (salvo seja) e sentir Coimbra. Não há folha de papel que não se converta em folha perene. Canto e recanto? Sem dúvida este!



Coimbra está cheia, inchada, crescente. Acontece-lhe a enormidade em cada equinócio, parece que o ar muda. Do Penedo caminhamos em direcção ao jardim Botânico, magno. Entramos pelo portão do lado do busto de Avelar Brotero. Este jardim, cheio de exemplares exóticos, alguns únicos no Universo (estes exageros sabem bem) tem uma fonte e a expressão da vontade de um Marquês do Pombal a marcar o ritmo das caminhadas. Segue-se, segue-se e desbravam-se as correntes verdes. A fonte anuncia labirintos. Os esquilos anunciam chuva de nozes na certa. Gosto da ideia de me sentar no chão. De ver o fim do dia passar pelos Arcos, os  ditos que desenham o aqueduto de São Sebastião. Mas há um cantinho que oferece cadeiras e  chá quente, como quem entra pelo Departamento de Antropologia e descobre, à esquerda, uma varanda para o Mondego com o jardim Botânico como prolongamento da casa. Lembro-me de estar aqui em fins de dia vários a fotografar as gradações do pôr-do-sol. De conversas excelentes, de gargalhadas fortes. Mais um sitio a chamar nosso, para ler, escrever, pensar, imergir.

Faço o caminho em direcção à rotunda do Papa, sigo pela Guarda Inglesa, e torno a encontrar o Jardim da Sereia, subo em direcção à esplanada do café Atenas e sim, sento-me um pouco.  A intenção é percorrer a rua Pedro Monteiro e entrar na casa da Cultura. A Feira do livro de Coimbra está quase  aí. Inaugura sexta-feira, no Parque Verde da cidade, espera-se que o calor brinde os visitantes. Se o fizer brilhante será o conjunto de “ sentados na relva”.  O rio Mondego ali a chamar à margem, livro na mão, o corpo na relva, a oportunidade da livraria ao ar livre. Vou lá passar no Sábado e depois conto-vos.

Para já antecipa-se a audição  dos hinos que me acompanham na Leitura. O Festival Internacional de Jazz de Coimbra também abre apetite no dia 25. Duas molduras brilhantes, livros e música, livros e Jazz.

Até à próxima caminhada, pela feira do Livro. Da cidade,  redescobri-lhe a essência. Não esgota.


*Verso da Balada de Despedida do 5º ano Jurídico - 1989
Foto: Pedra no Penedo Da Saudade.

Anthony Bourdain em Lisboa... E seus livros

A passagem de Anthony Bourdain em Lisboa, foi um pequeno acontecimento mediático. O programa abre ao som dos Dead Combo - os grandes beneficiados pela exposição que este programa tem, pois conseguiram pôr 3 Discos no Top10 iTunes dos Estados Unidos da América logo após a passagem de No Reservations por Portugal.  Carminho, António Lobo Antunes, Zé Diogo Quintela, Tozé Brito e os chefs Henrique Sá Pessoa, José Avillez e Lubomir Stanisic; completam os restantes convivas desta passagem.


Quanto a livros, Anthony Bourdain tem dois publicados por cá, ambos pela Livros d'Hoje. O primeiro é Cozinha Confidencial e é descrito assim: «Ao fim de vinte anos de "sexo, drogas, mau comportamento e grande cozinha" o chefe e escritor Anthony Bourdain decidiu contar tudo.»




«Pode ser informativo, bem como perversamente engraçado. Bourdain é hilariante quando nos aconselha sobre o que devemos pedir em restaurantes e quando o fazer. Por exemplo, aprendemos que nunca devemos comer peixe às segundas-feiras, evitar o brunch de domingo e nunca pedir qualquer tipo de carne bem-passada. E se algum dia virmos um cartaz que diga «Desconto Sushi», devemos, se formos inteligentes, fugir para o lado oposto o mais rápido que conseguirmos.

Um banquete deliciosamente divertido e encantadoramente chocante de fascinantes e verdadeiros contos da vida no negócio da restauração pela mão do chef Anthony Bourdain.

O livro Cozinha Confidencial é um relato surpreendentemente bem escrito do que é realmente a vida nos «recantos escuros do submundo da restauração». Ao descrever o ambiente de algumas das mais famosas cozinhas do mundo, Bourdain diz tanto mal de si como diz dos outros.»


Quanto ao segundo, saiu em 2011 e é mesmo só de cozinha:

«Antes de espantar o mundo com os campeões de vendas Cozinha Confidencial e A Cook’s Tour, Anthony Bourdain passou anos a servir da melhor comida de cervejaria francesa em Nova Iorque. Com uma atmosfera descontraída e terra a terra, o Les Halles enquadra-se perfeitamente no estilo de Bourdain: é um restaurante onde nos podemos vestir à nossa vontade, falar alto, beber um copo de vinho a mais e passar um bom bocado com os amigos. Agora, Bourdain traz-nos Les Halles, um livro de culinária ímpar: cândido, engraçado, audaz, dotado do encanto e da fanfarronice típicos de Bourdain. Traga uma faca afiada, um grande apetite e vontade de aprender, pois Bourdain vai ensinar-lhe tudo o que precisa de saber para preparar os pratos clássicos dos bistrôs. Enquanto o leitor é orientado, em passos simples, por receitas como vitela assada com batata frita à Les Halles, escargots aux noix e foie gras aux pruneaux, vai sentir-se como se o autor estivesse ao seu lado na cozinha - a atirar-lhe insultos quando deixar queimar o molho, e depois a dar-lhe uma palmada nas costas quando acertar com o bife tártaro. Repleto de fotografias atraentes e com 110 receitas, este livro é receita garantida para os apreciadores de livros de culinária, aspirantes a chefes e admiradores de Bourdain de todos os quadrantes.»

segunda-feira, 21 de maio de 2012

«O Falcão Peregrino» que li de Glenway Wescott

«A aristocracia não tinha nada a ver com aquilo. O culpado era eu; aquilo era o produto da vodka com natas. O álcool é o grande nivelador. Depois de uns copos, disse eu para mim mesmo, o genuíno descendente de príncipes gaba-se disso como se fosse mentira, o milionário sente-se pobre, e Tristão fala-nos de Isolda como um verdadeiro proxeneta. A minha malícia ia evoluindo com os desvarios do meu confrade.»

Este livro quase que toca na categoria de conto, mas eu preferia apelidá-lo como micro romance. Não vou esmiuçar todos os pormenores da fluída narrativa de Wescott: tão graciosa que reduz a história a uma tarde. Convido-vos a ler as palavras que a Filipa Araújo (responsável pela escolha da leitura conjunta) fez d' O Grande Falcão.

Prefiro explorar as sensações que me despertou a leitura. Primeiro, o facto da história ser contada em torno de uma Ave de Rapina. A certa altura imaginei que o Falcão era o agente infiltrado entre a conversa que se desenrolava entre os anfitriões e os convidados naquela casa. Arrisco-me a dizer, com alguma polémica característica de quem não faz crítica literária profissional, que o Falcão representa os olhos do escritor Glenway Wescott (mesmo que, na maioria do tempo, estivessem vendados). Quase como se o narrador fosse, de facto, o animal... Não o é, porque esse papel é deixado a Tower. Mas fiquei com a sensação que o Falcão estendia muito subtilmente a missão do verdadeiro narrador. Digamos que é um convidado extra que nos traz uma visão diferente da história. 

De certa forma, contrario um pouco a Filipa. Porque passo a considerar que existem 2 "eus" na história atribuídos ao escritor. Ambos serão, no meu ponto de vista, alter egos de Wescott. Uma óbvia personagem narrativa humana. Um subtil condimento na presença do Falcão. 


Penso que não será pacífica esta minha opinião. Mas surgiu-me com uma pergunta atirada ao ar: «Porque raio há um Falcão aqui?». Qual é a peça que o escritor pretende encaixar nesta teia de relações humanas complexas que vai explorando e dissecando? Dissecar! Aqui está uma palavra interessante para caracterizar a Ave... Como se ela fosse saboreando a sua presa ao sabor dos acontecimentos da história...

A dependência do Falcão ao seu tratador, o facto deste animal se deixar morrer quando fica velho (quase como uma morte por orgulho ferido), todo o processo de domesticação e treino de caça... No fundo são extraordinárias metáforas para comportamentos humanos que vão sendo escrupulosamente expostos por Glenway Wescott ao longo daquela tarde. 

No fim, fica a ideia que o Falcão Peregrino justifica todas as aventuras e desventuras do amor. Desde a liberdade à dependência, da juventude e da velhice, da capacidade de pesarmos afectos e emoções. Mas poderia falar de muitos mais sentimentos que me parecem extremamente bem camuflados nesta analogia presente entre a condição da natureza "peregrina" do Falcão e a vida dos Humanos.   

Daria certamente assunto para grande discussão, mas melhor mesmo é convidar-vos a ler esta história de contornos misteriosos, de segundas leituras e que nos obriga a parar para pensar numa óptica de "o que é que ele quer dizer com isto?". Um bom livro para nos pôr o cérebro e a imaginação a funcionar. 

domingo, 20 de maio de 2012

O Pai Natal numa ponte romana


Ao Domingo...
Letras Focadas 


“Na ponta da pena, soltam-se letras conjugadas, bem focadas, para serem percebidas” 

De longas barbas brancas, com auscultadores nas orelhas, vociferava contra a pobre garrafa vazia que ao seu lado estava. O fiel companheiro, talvez habituado já àquele discurso monólogo, mantinha-se quieto à espera de melhores momentos.
Aproximei-me para tentar perceber...
-Diz-me lá porquê! diz-me! - dizia de forma insistente para a garrafa de plástico.


Arranjei coragem e aproximei-me:
- Posso ajudá-lo? - questiono
Fulmina-me com o olhar. Desta vez vou sair-me mal, penso.
- Se a Senhora conseguir explicar-me o porquê, ajuda!
- Diga lá então! - sinto-me agora mais confortável na presença daquele olhar.
- É capaz de me explicar porque raio a estúpida da garrafa é verde, verde esperança quando eu já não a tenho!? Consegue explicar?
Levo um soco. Perante mim, está um homem com olhar alucinado e tão lúcido.
- Talvez porque ela gosta de ser diferente - respondo-lhe
Faz-se um silêncio!
Mantendo a cabeça em baixo, olha para a direita, olha para a esquerda, como se estivesse a negar a minha resposta.
De repente, levanta a cara e os seus lindíssimos olhos verdes a sorrirem, oferece-me o olhar mais doce que vi até hoje.
- Tem toda a razão... ela é diferente, como eu sou também. Agora não é só a mim que me vão chamar maluco... ahahahahahah
Levanta-se, estica-me a mão e eu, instintivamente, dou-lhe um abraço e o seu cheiro nauseabundo pareceu-me cheiro a jasmim. 

Numa ponte romana, encontrei o "Pai Natal" que usava auscultadores e era deste tempo.