Não gostava do Verão.
Da alegria do Verão, dos chinelos de enfiar entre o dedo gordo e o
indicador do pé, da praia, dos baldes, das bóias, das bolas de futebol e de
Berlim, das sardinhadas, as espinhas e as escamas, das moscas e mosquitos, dos
bailaricos ao som de música de lírica duvidosa.
Pelo menos pensava, resignado.
Suspirava, aliviado!
Nem Camões nem Pessoa presentes para assistir a este repertório
sonoro.
Depois pensava, o que eu gostava de tomar um bagaço com o Pessoa,
mesmo que em silêncio, que nem sempre a poesia precisa de palavras, um desejo
antigo, um segredo, ridículo porque impossível.
Pensa que as coisas impossíveis são ridículas.
E põe um ponto final aos pensamentos com uma aposta, apostando consigo
que nem Bocage, o mais provocador e audaz, esboçaria um sorriso, sobre a lírica
da canção.
O Verão no início e os seus ouvidos confrontados, atropelados, duas
dúzias de vezes com o sucesso musical da corrente estação estival.
Rimei, pensou, sem graça, que qualquer um sabe rimar e não é por isso que
se faz poeta.
O poema.
Provoca-lhe azia chamar à coisa poema.
A quadra.
E, mesmo quadra, um princípio de acidez, porque um insulto às do
Aleixo.
Melhor chamar-lhe apenas coisa.
A coisa canta, conta, da liberdade ou licença concedida ao
proprietário de um veículo automóvel de usufruto de uma garagem propriedade de
uma vizinha, ao caso separada do cônjuge, salientando a utilização da garagem,
pelo referido proprietário da viatura, com total liberdade ou à vontade, portanto,
sem restrições de horários e nas horas mais impróprias.
Duas dúzias de vezes ouviu do cantor a canção.
A cada nova audição pensava que devia aprender a disparar, talvez
comprar uma escopeta.
Alegaria legítima defesa.
E a maldição, a cada Verão uma canção.
Mais uma rima. Fraca. Fraquinha.
A maldição é que, em regra, à terceira audição sabe a letra de fio a
pavio, como se a letra, a coisa!, uma bactéria, um verme, um mexilhão, uma
carraça ferrada à orelha de um cão.
O barulho do Verão.
A ausência de silêncio.
Até no campo as cigarras.
E, para cúmulo, a indiferença dos gatos.
Tem três gatos que no Verão se transformam em três tristes tigres,
recolhidos e ausentes pelas sombras da casa, até os gatos, não é mas parece,
fazem as malas e vão os três de viagem.
Pelo que a cada vez que abre caixa do correio, quase todos os dias
duas vezes ao dia, a meio da manhã e ao fim da tarde, que o carteiro não é
certo na pedalada por não dar cumprimento à máxima se conduzir não beba, que
diz não se aplicar a velocípedes não motorizados vulgarmente conhecidos como bicicletas.
Quando abre a caixa do correio espera encontrar um postal, no mínimo
um postal, três linhas escritas no verso da fotografia de um monumento,
encontra apenas anúncios a promoções de Verão nos super-e-hiper-mercados e
carta nenhuma de nenhures, de pessoa nenhuma.
No Verão a solidão maior.
Fecha as janelas, fecha as cortinas, fecha-se no escritório.
O barulho mecânico da ventoinha de pé, como um girassol em metal, a
interferir com a leitura, a mexer nas páginas, nos parágrafos, nas linhas, como
se interferências na frequência da rádio.
As frases soltas.
Repete a leitura uma, duas, cinco vezes e as frases soltas.
Frases soltas como se fios soltos em meias de vidro.
Ela de saia, quatro dedos abaixo do joelho, um fato saia-casaco
verde-musgo, botões de metal dourado, os cabelos loiros, os lábios pintados de
vermelho vivo, os olhos azuis.
Ela de boina militar.
Ela a fumar um cigarro, correcção, uma cigarrilha.
O bar cinzento, pardo, de fumos e cinzas, nocturno, urbano.
Num pequeno palco uma orquestra tocava canções de cabaret, alegrava os
bêbados e deprimia os sóbrios.
Elle écoute la java
Mais elle ne danse pas
Elle ne regarde même pas la piste
Et ses yeux amoureux
Suivent le jeu nerveux
Et les doigts secs et longs de l’artiste
Ça lui rentre dans la peau
Par le bas, par le haut
Elle a envie de chanter
C’est physique
Tout son être est tendu
Son soufflé est suspendu
C’est une vraie tordue de la musique
A cantora, num insucesso quase comovente, imitava a Piaf, era evidente
que maltratava a voz a tabaco e copos de whisky e, apesar disso, os R’s ainda
de veludo.
Talvez, se não quisesse ser igual à Piaf, que o mundo não precisa de
duas Piaf’s, como se o mundo uma caderneta de cromos, tivesse tido algum
sucesso de seu, que em tempo de guerra as canções são imprescindíveis para
embalar os corpos sem sono, para afastar os fantasmas.
Dizem que quem canta seus males espanta.
Diz quem conheceu a guerra que não conheceu mal maior.
Antes das palmas, as palmas no momento certo, no fim da canção, as palmas
exclusivamente dos ébrios, os ébrios em maior número no bar, a canção foi
atravessada por dois aviões e pelo barulho de sirenes.
À passagem do segundo avião percebeu que tinha um fio solto na meia de
vidro, depois escusou-se a bater palmas, talvez ao quarto whisky, acendeu outra
cigarrilha.
Um fio solto, uma interferência permanente a escrever poesia para lá do
joelho da sua perna esquerda.
Pensou que o seu último par de meias, que tinha que comprar uma meias
novas.
Pensou que não tinha tempo.
Pensou no contrabando, no mercado negro, que conseguiu comprar dois
sabonetes, que não encontrou açúcar, pensou na falta de açúcar, pensou na
última vez que comeu uma fatia de bolo, apfelstrudel, ainda morno, depois de sair do
forno, o seu preferido, pensou em como era fácil a vida antes da guerra.
Que o mundo em guerra, a maior de todas as guerras e um fio solto numa
meia continua a ser um fio solto numa meia.
Inconsequente na sua importância.
Importantíssimo mas inconsequente.
Francesa, nasceu em Lille, filha de pai inglês e mãe austríaca,
professora de inglês, integrou a Resistência, morreu, foi morta, três dias
antes de os Aliados entrarem em Paris, não chegou ao fim do Verão, ao sossego
tépido do Outono.
O Verão também serve para morrer, de amor sobretudo.
Assim que não gostava do Verão.
Como se fosse um crime não gostar do Verão.
Que não é por um sujeito ser inglês que tem que gostar de chá, para
mais como se comprimido, com ingestão a hora certa.
Se tivesse dinheiro, pegava nele e nos gatos e viajava, migrava, para
um país onde Inverno.
Não tem dinheiro e os gatos não apreciam férias fora de casa.
O que não tem remédio, remediado fica.
Assim ficava.
Resignado à espera, como se a estação uma sala de espera.
À espera do fim do Verão, do regresso do silêncio, do sossego do
Outono, das primeiras chuvas, do abrir as janelas, do desligar a ventoinha de
pé, do aconchego dos gatos, da alegria de uma romã todos os dias.