quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Passagem do ano, de Carlos Drummond de Andrade

PASSAGEM DO ANO

O último dia do ano
Não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
E novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
Farás viagens e tantas celebrações
De aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia
E coral,

Que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
Os irreparáveis uivos
Do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
Não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
Onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
Uma mulher e seu pé,
Um corpo e sua memória,
Um olho e seu brilho,
Uma voz e seu eco.
E quem sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa, já se expirou, outras espreitam a morte,
Mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
E de copo na mão
Esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
O recurso da bola colorida,
O recurso de Kant e da poesia,
Todos eles... e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.
As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
Lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, subreptícia.

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Eu poético: Noite Feliz

NOITE FELIZ

noite feliz, noite de paz – escutava na rua.
o frio cobria-lhe a pele,
o pensamento invadido pela ideia
de solidão,
de festas e aconchegos que não tem;
a recordação de uma família mais numerosa
do que a mera unidade
que compõe o seu lar.
hoje deu-se ao luxo de celebrar o nascimento do menino,
com um pacote de vinho
e uma tablete de chocolate.

fecha os olhos e sente escuridão.

como pode o sol cobrir toda uma infância
e agora o inverno ter-se instalado de vez?
como podem os dias longos
serem cada vez mais curtos?
como pode a noite
ser mais segura que a alvorada?

precisa desesperadamente de morrer.

penteia o cabelo no reflexo do vidro
e não sabe quem é aquele vagabundo.
pensa nos amores que já viveu,
na sorte de ter tido um tecto
e leite quente de manhã.
recorda a sensação de passar mercúrio-cromo
nos joelhos esfolados
e a sineta da avó,
chamando todos para a mesa.

noite feliz.
por um instante, feliz.

Rodrigo Ferrão


Foto: Rodrigo Ferrão

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

rosa


nos dias que correm
uma rosa
encarna a lágrima
suspensa
na face de deus

assim que floresce
uma estrela
morre
na memória de chover
esperança.


Helder Magalhães


Fotografia de Marine Loup

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

É do borogodó: artefato nipónico, de Adélia Prado

A borboleta pousada
ou é Deus
ou é nada.

Adélia Prado

*poema extraído da obra A Faca no Peito - e escolhido por Penélope Martins