A week ago, Sábado dia 23 de Novembro, um Sábado frio (apontamento meteorológico para memória futura), a escritora Patricia Reis apresentou o livro Pretérito Perfeito, o meu livro (os meus problemas com pronomes possessivos) e, entre improviso e improviso, as palavras escritas, a escritora, o texto de apresentação.
Um exclusivo Clube de Leitores:
Patrícia Reis sobre Pretérito Perfeito.
Nos momentos
mais estranhos.
Nos dias mais
negros.
Tenho por hábito
pensar e dizer alto e bom som: “vais morrer. Onde - e com quem? - queres
desperdiçar as tuas energias?”
A morte é algo
que se aproxima de nós com a idade e, atenção, não com a doença e respectiva
traição do corpo. Não. Há um tempo em que comemoramos casamentos e nascimentos
e, mais tarde, começamos a enterrar pessoas que amamos, que conhecemos uma vida
inteira. Estas pessoas podem ser amigos ou família ou apenas alguém que
admiramos. Ainda hoje me recordo do olhar triste do meu filho mais velho quando
James Brown morreu, ou da voz quebrada do mais novo por ter de se despedir de
Lou Reed.
O que tem tudo
isto a ver com Pretérito Perfeito de Raquel Serejo Martins? Tudo e nada.
O livro da
Raquel é a página em branco de alguém – Vasco - que sabe que vai morrer. Ciente
de que a morte é um jogo impossível de viver, escreve um diário, enumera
afectos e receios, uma lista de impossibilidades. Tanto para fazer, tanto para
ver.
Nada está ao
alcance do personagem. Assim, podemos dizer que o livro de Raquel Serejo
Martins é sobre essa coisa extraordinária que nos atormenta: a identidade.
Quem somos?
O que fizemos? O
que nos levou a fazer A em vez de B?
Seria diferente
se...
Tantos “ses” que
cabe um cachalote numa caixa de fósforos.
Escrever para lá
desse lugar de silêncio e brancura as palavras podiam faltar, podiam falhar,
mas pela mão da autora vamos, seguros, pela vida de alguém cuja vida termina
daqui a nada.
O mais difícil?
Encontrar uma
narrativa que tenha este poder de atracção, incapaz de nos deixar indiferentes.
Mérito da Raquel, mas não só.
Acredito, na
minha anormalidade enquanto leitora de outros, que os personagens estão vivos,
têm osso e alma, coração e vontade própria. Sei que quando escrevo, as
personagens permanecem num parque de entretenimento privado que é o cérebro do
autor e, mesmo que se queira, não é possível escapar aos seus desejos.
O personagem
principal deste Pretérito Perfeito, conjuga os últimos momentos de vida – de 8
de Outubro de 2007 a 11 de Janeiro de 2008 - mexendo com todas as cordas que temos dentro de nós,
obrigando-nos a uma reflexão e eu volto à tal frase: “vais morrer, onde - e com
quem? - queres desperdiçar as tuas energias?”
Todas as
histórias que incomodam – a grande Agustina Bessa-Luís disse uma vez que
escrevia para incomodar e eu aprecio esta ideia em especial -, todas as ficções
que são perturbadoras, mas onde facilmente nos encontramos, estamos dentro
desse mundo, precisam da mestria de quem as escreve. Neste caso, a Raquel é um
homem do leme com perspicácia, tristeza e amor. Não nos engana.
Sabe ao que
vamos e ela leva-nos pela mão para dentro da história, ou por este diário de
fim de vida, até que não haja mais força para dizer ao mundo seja o que for.
Escrever.
Tememos a
vertigem de pensar que é o acto mais íntimo e violento que existe, pelo que
exige de nós. Exige coragem, liberdade. Exige, acima de tudo, honestidade.
Honra. Valores velhos aos quais raramente conseguimos aceder por completo. A
aceleração em que nos comprometemos agora é uma forma de contornar o pedestal
destes valores, de prescindir em definitivo dos mesmos. Comunicamos muito para
dizer muito pouco. Servimo-nos das palavras como biombos, não como fósforos
frágeis que iluminam a nudez do
que somos.
Vergílio
Ferreira escreveu: um romance é um biombo atrás do qual a gente se despe.
Todas as
palavras mentem num determinado momento. Às vezes porque simplesmente não
estamos prontos para atingir a sua verdade: esbarramos nelas e não as vemos.
Como nos acontece com as pessoas, a começar por nós próprios.
Raquel Serejo
Martins escreve porque as palavras nunca são insuficientes, mostram tudo o que
se possa saber, pensar ou sentir sobre as coisas. Mas não mostram tudo. E é essa ideia – esconder algumas
coisas – que faz com que o livro, este novo livro, seja uma dança sem um ritmo
certo, vamos andando ou apenas observando os pares que estão em sintonia e a solidão
que, mesmo quando não se quer, é feita de pequenos nadas e equívocos. Poderá um
milagre salvar-nos? Salvar o pretérito perfeito da Raquel para algo mais
mundano? Mais imperfeito? Não.
A
impossibilidade de um diagnóstico traz-nos essa imagem terrível da traição do
corpo. E o diário avança. O livro cheira a medo. A esperança, a ideias que
ficaram por dizer. Mas, em especial, podemos dizer que transpira vida, uma vida
que se desfaz dia a dia. E há mais: a cada página há um crescimento de tormento
que a escrita da Raquel nos traz.
Ora, nenhum
escritor pode reclamar-se virgem depois de um livro desta natureza. A autora
foi invadida pela doença terrível da escrita, esse vírus que se instala e que,
em alguns, é um vírus forte, com uma voz própria. Não é um sucedâneo de todos
os autores que amamos na vida.
Raquel Serejo
Martins tem um futuro na escrita? Essa não é a pergunta certa. A pergunta é:
que mais histórias é que a autora tem para partilhar connosco? E se optar por
não partilhar, será capaz de abandonar a escrita? Duvido. E ainda bem.
Muitas vezes
podemos pensar que há livros em quantidades absurdas e que, como escreveu
Eugénio de Andrade, as “palavras estão gastas”. Nada mais errado, desde que o
Homem é Homem, as histórias são um vício, por razões distintas, mas
indissociáveis da condição humana.
Como escreveu
uma vez Inês Pedrosa: “basta que as palavras tragam dentro a verdade”. E
acrescentou: “ A verdade existe – é difícil extraí-la do silêncio em que está
presa pelo ruído das opiniões, das bombas, da burocracia, do quotidiano, da
vaidade ou do medo. Muito difícil – mas, por isso mesmo, absolutamente
necessário”.
Pretérito
Perfeito está repleto de verdades, várias e distintas, umas estão à vista,
outras escondidas. É preciso ser forte para reconhecer e enfrentar a
imortalidade. O mesmo é válido para este enorme risco que é escrever, publicar,
colocar o nome na capa, ter amigos e família em expectativa, o coração a bater
mais forte por não se saber se as palavras que reunimos na história que se
escreve, são suficientes. Importa não esquecer essa dimensão de risco que todas
as publicações acarretam, como um saco de pedras extra que, no caso das
mulheres, é reforçado em peso e tamanho por razões que a História explica.
Raquel Serejo Martins, aparentemente uma gladiadora da escrita, sem medos,
atira-se de cabeça para uma história que não é fácil de contar e ela fá-lo de
forma extraordinária, tão extraordinária que até parece simples. Nada na
escrita é simples. Na vida tão-pouco. E na morte? Não sabemos, pois não? Convém
é saber onde e com quem queremos desperdiçar as nossas energias.
Obrigada Raquel,
por este livro, por seres quem és.
E assim nós, no fim.
Sem mais palavras.
Apenas obrigada.