sábado, 17 de maio de 2014

Poema à noitinha... Alexandre O'Neill

Auto-Retrato

O'Neill (Alexandre), moreno português,
cabelo asa de corvo; da angústia da cara,
nariguete que sobrepuja de través
a ferida desdenhosa e não cicatrizada.
Se a visagem de tal sujeito é o que vês
(omita-se o olho triste e a testa iluminada)
o retrato moral também tem os seus quês
(aqui, uma pequena frase censurada...)
No amor? No amor crê (ou não fosse ele O'Neill!)
e tem a veleidade de o saber fazer
(pois amor não há feito) das maneiras mil
que são a semovente estátua do prazer.
Mas sofre de ternura, bebe de mais e ri-se
do que neste soneto sobre si mesmo disse...

*Alexandre O'Neill, in Poesias Completas - Assírio & Alvim

Caricatura de António, tirada daqui.

Uma outra forma de poesia - Matilde Campilho

não é cair: é voar com estilo


foto tirada daqui.

Foto frase do dia: Charles W. Eliot


Tea-Bag – O Sorriso da Esperança

P.V.P.: 16,90 € 
Data de Edição: 2014
Nº de Páginas: 312
Editora: Editorial Presença

Sinopse:

Jesper Humlin é um conceituado poeta sueco que está a passar por uma fase algo caótica da sua vida pessoal e, para cúmulo, o seu editor, intima-o a escrever um policial, género que o poeta despreza. Um dia, Jesper vai dar uma série de palestras na zona de Gotemburgo e entra em contacto com uma comunidade de imigrantes ilegais. Mas são três jovens, em particular, que o irão marcar profundamente e inspirá-lo para uma nova aventura literária - Tea-Bag, uma refugiada nigeriana, Leila, oriunda do Irão, e Tania, uma jovem da Europa de Leste. Cada uma delas traz consigo uma história de vida, a fuga à opressão e o anseio pela liberdade, uma voz que deseja ser ouvida e que faz nascer em Jesper a vontade de a dar a conhecer ao mundo. Um romance inspirador, iluminado pela esperança, a comédia e o humor e ensombrado pela realidade trágica das vidas que sofrem a marca indelével do preconceito e do racismo.


Henning Mankell nasceu em 1948, numa pequena cidade do Nordeste da Suécia. Publicou o seu primeiro romance em 1973, mas só se tornou conhecido em todo o mundo com a obra Assassino sem Rosto, de 1991, e com outros romances policiais, protagonizados por Kurt Wallander, que a Presença tem editado na coleção «O Fio da Navalha». Henning Mankell é um dos autores mais prestigiados a nível internacional e o conjunto da sua obra, traduzida em 45 línguas, vendeu já mais de 40 milhões de exemplares em todo o mundo. Tem sido distinguido com inúmeros prémios, entre os quais o Crime Writers’ Association Macallan Gold Dagger e o German Tolerance Prize. Mankell divide o seu tempo entre a Suécia e Moçambique, onde é diretor do Teatro Avenida, em Maputo.

*informação disponibilizada pela Editorial Presença

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Poema à noitinha... Luis Buñuel

O Arco-Íris e a cataplasma

Quantos maristas cabem numa passadeira?
Quatro ou cinco?
Quantas colcheias tem um tenório?
1.230.424.
Estas perguntas são fáceis.

Uma tecla é um piolho?
Vou constipar-me para os braços da minha amante?
Excomungará o Papa as embaraçadas?
Sabe um polícia cantar?
Os hipopótamos são felizes?
Os pederastas são marinheiros?
Estas perguntas - também são fáceis?

Dentro de instantes virão pela rua
duas salivas de mão
onduzindo um colégio de surdos-mudos,

Seria indelicado vomitar-lhes um piano
desde a minha janela?

*Luis Buñuel, Os poemas de Luis Buñuel - Assírio & Alvim 
(tradução de Mário Cesariny)

Gonçalo Viana de Sousa: o Flâneur das Sensações


Disse Théophile Gautier no prefácio ao seu romance intitulado "Mademoiselle Maupassin": "Só é realmente Belo aquilo que não serve para nada."
Para que servem as mentiras e as palavras, então?
No vosso regaço, mais um conto de Gonçalo, o Flâneur das sensações cerebrais!

Naquela viagem

Não tenho a certeza de nada. Ou de tudo? Não sei.
            Mas aquele velho, sentado num dos bancos da frente, com a boina tapando os olhos que dormem, ou fogem deste mundo, cruzou simpatia com as minhas mãos. Não com a vida. Isso de cruzar vidas é coisa de gente ilustre, de gente com fato e gravata e títulos. E medos? Um velho que parece dormitar, bonacheirão. Velho. Como todos esperamos ser, um dia. Talvez.
            Ao seu lado, uma velhinha lê um livro de bolso. Cheirava a Camilo Castelo Branco, a paixões ardentes e a tempos outros, em que as florestas eram Românticas e os heróis genuínos. Hoje temos os livros. Antes tínhamos o mundo.
            Não será isto o processo de sermos? Uma tentativa de vivermos para lá das palavras e textos que somos? Não será a vida, a tentativa, a oportunidade última de fugirmos da tentação de sermos só papel e tinta?
            É um autocarro vermelho, cor de viagem morna.
            Ao meu lado, um lugar vazio, como sempre. O silêncio acompanhando a balada que é o movimento constante, repetido, quase enjoativo e delicioso desta viagem.
            Mas nesta viagem, que será aquela viagem, quando isto for um texto e tudo não passar de uma mentira, interessa aquele velho do banco da frente, da boina, aquele que tem a seu lado uma mulher, não interessa sabermos nada desta mulher, que lê um livro. Começamos porque o livro chamou por nós ou porque a simpatia é a mentira que nos traz aqui? Não fingimos nem mentimos. Escrevemos realidade. Traduzimos aquilo que vemos, diria alguém de barba naquele século que foi o do romance. E hoje? Há espaço para romances? Teremos tempo para grandes narrativas, para fantasia? Estaremos, nós, seguros, com esta realidade? Precisamos da mentira para continuarmos, daí a Arte. Bem- aventurados os ricos de espírito, pois deles é o Reino da Terra. Se mentirdes como todos até agora mentiram sereis grandes e nada será esquecido. O perdão vem com a glória das mentiras.
            E aquele velho? E aquela velha? Que é feito deles? Continuam a sua viagem, para alguma cidade grande onde faça sentido a palavra: família; para um lugar outro que não este, que é inconstante.
            Naquela viagem, olho pela janela e vejo as estradas e os montes que não me deixam ver outras coisas que ficariam tão melhores aqui: uma floresta, um bosque, talvez um castelo, ou a praia, o mar. Nada disso seria verdade. Se escrevo estas pequenas palavras é porque não quero mentir mais do que necessário. Deus já mentiu de mais para todos nós, quando nos disse para amarmos o outro como a nós mesmos! Se amássemos os outros como a nós mesmos, seríamos invejosos, mais invejosos do que somos.
            Assim, volto a olhar para o velhinho da frente, já acordado, sem boina a tapar o rosto, merendando uma sandes de qualquer coisa, bebendo por uma garrafa uma outra coisa qualquer. Não interessa. Nada disso interessa. Interessa, sim, fazê-lo existir. Existir muito, com muita força. Luz.

Quem és tu?

            Fecho os olhos e tento sorrir, acreditando que o mundo poderia ser isto ou aquilo. Tantos sistemas filosóficos e religiões. Tantas antifilosofias e anti metafísicas. Para quê? Tudo é realidade em potência, como nenhum poeta ou mentiroso alguma vez pensou. Lembro-me de outros que escreveram e mentiram e sorrio. Sim, agora esboço um sorriso largo, mentiroso, mas só para mim. Ninguém precisa de saber deste sorriso. A solidão e o silêncio estão no banco ao lado do meu.
            O velho acaba a sua merenda. A velha sorri para o velho, limpa-lhe a boca com um lenço de pano e beija-o nos lábios. Um beijo de namorados com promessas de viagens e palavras que dizem: Amo-te! Vamos ser felizes para sempre!
            Esperei até ao momento daquele beijo para te dizer que tudo isto não passa de uma história inventada, pois no quarto onde estou não há janelas nem céu. O batimento cardíaco é inconstante.

            A mentira tem destas maravilhas.

Entrevista a Auður Ava Ólafsdóttir

Levado pela curiosidade de conhecer novos autores, surgiu a possibilidade de contactar por email Auður Ava Ólafsdóttir, escritora islandesa nascida em 1958. E assim surge esta entrevista! Aqui procuro saber alguns pormenores da sua vida, opiniões e conhecer o seu mais recente trabalho - «Rosa Cândida» (lançado em Portugal pela Marcador).

Espero que gostem!

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Rodrigo Ferrão: «Rosa Candida» was a huge success in France, selling a lot of books and having received some prizes. Were you expecting international recognition?

Auður Ava Ólafsdóttir: No I wasn´t expecting recognition or anything. The first printing of the book was sold very little in Iceland although it got a literary prize. Before the success abroad my books sold little in Iceland but always got good critic (reviews). I was happy with that arrangement because in any case I usually only have one reader in mind when I write each book. Everything more than 1 reader is extra bonus! Critics said I was different from any other author they had read and I was also happy with that. The success and being a best seller abroad came as a total surprise and it seems unreal that Rosa candida is actually being translated into 23 foreign languages, including portuguese. I did not have any such plans when I wrote the book. But success is an abstract word and with every new book a writer has to start from zero.

RF: What can you tell us about this book?

AAO: It is a love story but not a conventional since the baby comes first and the parents are at the beginning of the story two strangers.

I thought a lot about this question: how does a young man change into a father? My hero is not the only man on the planet who has got a phone call from a stranger telling him that she is expecting his child. I wanted the book to be about the many and complex roles of a young man who is a very young father (by accident), a son, a brother and lover. And I decided my hero would be different from any steriotype of given masculinity. I guess you could say that one of the themes is male sensitivity. But it is also a story of how to find your own path and become a whole person. That makes the story a sort of coming-of-age story or bildungsroman.

RF: Why did you choose a passage from the Bible at the beginning of the novel? And why specifically the book of Genesis?

AAO: Well it is about seeds, both human and vegetal… As one of the themes.

RF: Can you please tell us why do you call yourself Ava? That’s a tribute to a saint from the Middle Age, isn’t it?

AAO: Saint Ava was a blind middle age saint, probably French. As one can see in my novels I have always been interested in persons that are different – and in that way celebrating the difference. Those persons are strong in their weekness. An important person of my second novel (called Embellie in French, Butterflies in November in English and La mujer es una isla in Spanish!) is a 4 years old boy that is deaf and almost blind. The heroine of my first novel was a teenage girl with only 1 leg. And in my newest novel (The Exception) one of the most important characters is a female writer that is a dwarf! Besides I also thought it would make a good name for an art historian working daylong with images, pictures and other forms of visual arts to have a name of a blind person.

P.V.P.: 17,50 € 
Data de Edição: 2014
Nº de Páginas: 348
Editora: Marcador

RF: You studied History and Theory of Art. Do your novels reflect your studies?

AAO: The relationship between what a writer has experienced and his books is very complicated. But having said that I must add that thousands and thousands of images of all sorts have gone through my mind and perhaps my way of writing is in some sense visual. Is it not another word for saying it is poetic?

RF: You write also Poetry and Theatre. Do you feel comfortable on those styles?

AAO: They are all very different kind of writings or styles as you say. In Iceland a writer is not taken seriously if he hasn´t written a book of poetry so I had to write one! I recently discovered playwriting and I am very excited about how to create a character and how to put an idea, a meaning, a philosophy, all into conversations. In the past two years I have written 4 plays and my newest play; Swans do not divorce, is actually on stage at the Icelandic National Theater in Reykjavik. It is a dance theater play and I worked closely with a choreographer while writing it.

RF: I have read two books from the Icelandic Nobel Prize Halldór Laxness. Do you think he was one of the greatest ambassadors of your country?

AAO: Writers and other artists in general seem to be better ambassadors for their counties than politicians and far better than bankers.

RF: In your opinion, how good are Icelandic writers?

AAO: There are good and not as good writers in Iceland as in any other country I guess. We have a long heritage of writing since the Sagas of the 13th century and there have been and still are some very good writers in Iceland. And what makes them original makes them also different one from another! When I think of some of the very best poets in Iceland today curiously 8 out of 10 are women!

RF: Have you read or do you know any Portuguese authors?

AAO: When I was studing art history in Paris – long before I became a writer – I discovered Fernando Pessoa and with him the exciting idea of being able to be more than one and to chose one’s identitiy. I first read José Saramago in French translation but he is also translated into Icelandic and admired by many of my fellow writers. Not long ago I discovered in a bookshop in Paris a book called Jerusalem by Gonçalo M. Tavares. My latest discovery in Portuguese literature is a talented young writer called João Tordo and who happens to be the translator of my novel, Rosa candida!

a-ver-livros: orai, leitores

Bendito o fruto do teu tronco
e o sumo do teu tomo
e o cheiro da tua polpa
e o toque da tua lombada
e bendita a raiz
que brota no teu chão
da semente palavra
gérmen teima reza
poema sanguíneo alado
feito da folha
na folha
que o pássaro há-de roubar

Ana Almeida

* para saber mais sobre o pintor alemão Olaf Hajek
siga o link www.olafhajek.com

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Poema à noitinha... António DaCosta

O MENINO que rola o arco
Já o rolava antes

Meu irmão das cavernas
Tu que não sabias
Perdeste o medo
E fizeste uma teoria
Mas quem te criou assim único?

*António DaCosta, A cal dos Muros - Assírio & Alvim


Marketing?

Patricia Pelgrin nous propose cette librairie dont on ne se lasse pas! A Marrakech!

Encontrado na página Improbables Bibliothèques, 
Improbables Librairies. A não perder por nada! 

Foto frase do dia: Rainer Maria Rilke


Oscar Wilde... para inquietos?

P.V.P.: 15,00 € 
Data de Edição: 2014
Nº de Páginas: 144
Editora: Marcador

Oscar Wilde para Inquietos

UM MANUAL DE INSTRUÇÕES PARA ULTRAPASSAR 
OS PROBLEMAS QUOTIDIANOS

Oscar Wilde para inquietos é uma aula de filosofia extraída da vida e da obra do consagrado autor de O Retrato de Dorian Gray. Nas frases ditas por Wilde ou nas expressas pelas suas célebres personagens, encontramos uma ironia única e uma sabedoria imortal que refletem o brilhantismo de um homem que aproveitou ao máximo os prazeres da vida, sem deixar de a observar criticamente.

«As riquezas vulgares podem roubar-se, mas nunca as riquezas de verdade. Na sua alma há coisas infinitamente preciosas que jamais alguém lhe poderá arrebatar.» 

Oscar Wilde

ALLAN PERCY é perito em coaching e autor de vários livros de desenvolvimento pessoal. É, atualmente, consultor de diversas editoras para além de viajar por todo o mundo em busca de novas inspirações para os seus livros. 

*informação disponibilizada pela Editora Marcador

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Poema à noitinha... Edmundo de Bettencourt

Asas

Do colo branco da paisagem
saíram, abrindo-lhe um buraco ensanguentado,
a cara dela
que era uma sereia
e que era uma pantera a rebolar no chão
aos rugidos metálicos do amor
sob a forma de nuvens muito ao longe...

Despertei-me o felino adormecido.

Depois houve, feridas, duas bocas beijadas
que sangravam imenso na cozinha
onde ela calma e virruosa ia mexendo a sopa!

E tudo após ter-se partido
uma enorme porção de loiça,
mas como se não tivesse havido nada!

*Edmundo de Bettencourt, in Poemas de Edmundo de Bettencourt - Assírio & Alvim

foto tirada daqui.

«Cidades de Papel», de John Green

P.V.P.: 15,90 € 
Data de Edição: 2013
Nº de Páginas: 304
Editora: Editorial Presença

BESTSELLER DO NEW YORK TIMES
Edgar Award para Melhor Obra de Suspense Juvenil
Cidades de Papel é um romance entusiasmante, sobre a liberdade, o amor e o fim da adolescência
Do mesmo autor do livro «A Culpa É das Estrelas»


Quentin Jacobsen e Margo Roth Spiegelman são vizinhos e amigos de infância, mas há vários anos que não convivem de perto. Agora que se reencontraram, as velhas cumplicidades são reavivadas, e Margot consegue convencer Quentin a segui-la num engenhoso esquema de vingança. Mas Margot, sempre misteriosa, desaparece inesperadamente, deixando a Quentin uma série de elaboradas pistas que ele terá de descodificar se quiser alguma vez voltar a vê-la. Mas quanto mais perto Quentin está de a encontrar, mais se apercebe de que desconhece quem é verdadeiramente a enigmática Margot. Cidades de Papel é um romance entusiasmante, sobre a liberdade, o amor e o fim da adolescência.

John Green é um autor norte-americano muito aclamado, cujas obras estão traduzidas em mais de doze línguas. Foi distinguido com o Printz Award em 2006 e com o Edgar Award em 2009. Foi por duas vezes finalista do Los Angeles Book Prize e é um autor bestseller do New York Times.

paradise circus

Primavera, de Duane Miachals, 1984
Fonte: www.cavetocanvas.com

"Ele lembrava-se do elástico com que prendia os cabelos e das flores vermelhas do vestido e da maneira de fumar e a vida parava-lhe no peito. Paralisava. Ficava em casa durante dias. De olhos abertos ou fechados, tanto fazia. Estava a olhar para ela. Não conseguia deixar.

Até não poder mais. Até tudo cair à volta dele e ele ver que ela estava morta e ele vivo, e que parecia ser ao contrário, e que ele não podia absolvê-la mais."

O Amor é Fodido, de Miguel Esteves Cardoso

a-ver-livros: na luta

Escondo a raiva
no bolso
entre trocos e sorrisos
Guardo-a para quando a luta
for desespero

e as unhas forem precisas
para rasgar

a mágoa

Ana Almeida

* para saber mais sobre o artista italiano Virgilio Guidi
siga o link http://it.wikipedia.org/wiki/Virgilio_Guidi

terça-feira, 13 de maio de 2014

Poema à noitinha... Ilhas Andaman (tradição oral)

A origem da humanidade

O primeiro homem chamava-se Jutpu («Solitário»).
Nasceu do interior de uma cana de bambu, como um pássaro nasce de um ovo.
O bambu fendeu-se e nasceu uma criança.
Quando começou a chover, construiu uma pequena cabana para se abrigar e ali ficou a viver.
Fez um pequeno arco e flechas.
Quando cresceu construiu cabanas de maiores dimensões e arcos e flechas mais compridos.
Um dia, encontrou um fragmento de quartzo e com ele fez escarificações no corpo.
Jutpu sentia-se triste, cansado de viver só.
Roubou um pedaço de barro de um formigueiro e moldou-o com a forma de uma mulher.
O barro tomou vida e a mulher tornou-se sua esposa. Chamava-se Kot («Barro»).
Viviam juntos, em Teraut-Biliu.
Mais tarde, Jutpu moldou mais homens e mulheres a partir do barro. Foram os primeiros antepassados dos Andaman.
Jutpu ensinou os homens a construir canoas, e arcos e flechas, e ensinou-os a caçar e a pescar.
A sua esposa ensinou as mulheres a fazer cestos, redes, esteiras, e tangas e a usar barro para fazer desenhos no corpo.

*(Ilhas Andaman), Rosa do Mundo - 2001 Poemas para o Futuro - Assírio & Alvim
(tradução de Manuel João Ramos)


Os comentários da censura - «Quando os lobos uivam»

É do borogodó: PaSsAtEmPo!

Eu já contei aqui no Clube como foi que inventei a "Incrível História do Menino que Não Queria Cortar o Cabelo" - http://www.blogclubedeleitores.com/2014/04/e-do-borogodo-uma-incrivel-historia.html. Pois bem, agora é hora de saber dos leitores qual a história de infância mais sujismunda e engraçada que vos aconteceu.


A história mais votada ganhará um exemplar do livro autografado por mim, sem chulé e sem baratas, mas com imenso abraço aqui do Brasil!

Conte para nós uma meleca bem simpática nos comentários desta postagem.

E beijinhos a todos!  

Penélope Martins

  

Para participar:  

basta responder ao desafio da Penélope: "qual a história de infância mais sujismunda e engraçada que vos aconteceu"


As melhores respostas enviadas em comentário a este post (tanto aqui no blog, como na página do facebook ou ainda no grupo) vão a uma finalíssima de 3 dias a ser votada pelos membros do blog e seguidores.

O envio das frases deve ser feito até Terça-feira, dia 20 de Maio. Nos dias seguintes, anunciaremos as respostas que vão seguir para a finalíssima.

Boa sorte!

a-ver-livros: incêndio

Junta tudo. 
Livros, discos, o que houver. 
Pega-lhes fogo. 
Deixa as labaredas
lamberem o chão
o tecto
o âmago
da estante
do peito
do que sobra da guerra
com as palavras
com as memórias
com as canções
que me levam de volta a nós
laços cortados
à faca
ao som dos blues mais rasgados
que os jeans que despi
antes de mergulhar nas chamas

Ana Almeida

* para conhecer melhor a ilustradora francesa Carine Brancowitz e os seus trabalhos
feitos apenas com esferográfica é só seguir o link carinebrancowitz.com

segunda-feira, 12 de maio de 2014

TRIGONOMETRIA






Quando dormíamos juntos, dormimos juntos quatro vezes, quase os dedos de uma mão, eu fazia exercícios de trigonometria na minha cabeça.
Eu a estudar as relações entre os comprimentos de dois lados de um triângulo rectângulo, seno, cosseno, tangente, co-tangente, secante, cateto oposto, hipotenusa.
Eu indiferente aos triângulos equiláteros, aos isósceles, aos escalenos, ao seu corpo ao meu lado a dormir em sossego, ao seu sono provavelmente sem sonhos.
Há matemáticos que defendem que a trigonometria foi inventada para cálculo das horas nos relógios de sol, e as horas da noite a passar sem eu as conseguir contar.
Eu tinha 16 anos e era a melhor aluna da turma a matemática.
Ele também tinha 16 anos e olhos verdes e uma guitarra e escrevia canções.
Canções melancólicas que contavam histórias estranhas e tristes, em que rimava pulmões com tacões, com vulcões, com trovões, com traições, com alemões.
Não era muito inteligente, muito menos aspirante a Camões!
Canções que me faziam rir.
Foi o primeiro rapaz (capaz!), a fazer-me rir.
Um rir de riso irreprimível.
Depois o riso reprimido a beijos.
Como se eu Ophélia Queiroz no n.º 42 da Rua da Assunção, quando pela primeira vez viu um senhor todo vestido de preto, com um chapéu de aba revirada e debruada, óculos e laço ao pescoço, quando pela primeira vez viu Pessoa e teve vontade de rir, e não riu, o riso reprimido, não a beijos, que Pessoa de luto e Ophélia em situação protocolar porque no local em companhia de seu pai para uma entrevista de emprego.
Uma moderníssima Ophélia, num tempo em que farmácia se escrevia com ph, com vontade de trabalhar, ter colegas e horários a cumprir, talvez salário no fim do mês, de ser diferente. Era diferente.
Cuidado com as raparigas que lêem, e mais cuidado ainda se souberem fazer contas.
Uma Ophélia que não riu, talvez sorriu sem saber ainda que ia ser amor.
Para mais um amor correspondido, porque depois o poeta doido e tonto, a traduzir, a atestar, a confirmar, talvez papel comercial, vinte e cinco linhas e o devido selo ou carimbo:
Fiquei louco, fiquei tonto…
Meus beijos foram sem conto,
Apertei-a contra mim,
Aconcheguei-a em meus braços,
Embriaguei-me de abraços…
Fiquei louco e foi assim…
Um amor com fraco fim, Ophélia casou com outro, Pessoa morreu cedo demais.
No meu caso não foi amor, foi riso apenas, reprimido a beijos.
Foi o primeiro rapaz, capaz, um valente ou uma valentia (não sei se são a mesma coisa), de fazer-me rir, num tempo em que eu coleccionava selos usados, os de pássaros e de barcos a vapor os meus preferidos, e nuvens por usar, palpáveis e resistentes, imprescindíveis para andar com a cabeça nas nuvens, e era a melhor aluna da turma a matemática e a todas as disciplinas.
Era extremamente disciplinada e o riso era coisa indisciplinada.
Foi o primeiro da minha colecção.
Uma colecção pequena.
Casei com a quarta boca que beijei.
Uma boca perfeita para sorrisos tristes e agridoce no sabor, lia poesia, parecia um sonhador, parecia amor.
Pareceu-me bem.
Hoje, quando dormimos juntos, para alegria dos meus pés sempre frios, já não faço exercícios de trigonometria, já esqueci regras e fórmulas, os pensamentos mais comezinhos, outras regras, as horas no despertador, os relatórios, a correspondência, os guarda-chuvas, as gabardinas, uma pilha de meias para dobrar, o que fazer para o jantar.
Deixei cação a descongelar.
E faz tanto tempo que ninguém me canta uma canção, desafina ao ouvido, rima cação com fogão, com balão, com dragão, faz tanto tempo que a cantar ninguém me tira para dançar, uma valsa quase de Viena, três passos em volta, em volta, em volta.
A máquina de lavar às voltas, a roupa para estender, será que amanhã vai chover, e não me posso esquecer de, depois do trabalho, passar no mercado, será que o senhor António já voltou do hospital, o diagnóstico tardio de uma apendicite aguda quase lhe custou a vida, a vida custa, tem preço, para comprar um molho de salsa, outro de coentros, nenhum de alecrim que não tenham por quem chorar meus olhos, na tentativa de dar cor e aroma à sopa em que afogo, colher a colher, os dias da minha vida.

Gonçalo Viana de Sousa - O Flâneur das Sensações


"As palavras são a nossa condenação", disse Eugénio de Andrade.
Seremos nós, porventura, dignos delas?
Eis, no vosso regaço, mais um conto deste flâneur que é Gonçalo Viana de Sousa!

            Aquele homem, como todos os outros, aguarda a chegada do comboio à estação.
Um livro nas mãos entrelaçadas, uma mochila e um olhar que espera.
            Senti algo por aquele homem, ignoro porquê. Talvez a sua espera.
            O sol alto azulava. O comboio tardava a chegar. Outras pessoas na estação. Em todas a angústia e a impaciência da espera. No homem do livro, apenas um olhar compassado por passos largos e altos de quem, talvez, esperasse a vida inteira. Escravos cardíacos das estrelas? E do tempo! E do medo… Deixem-me respirar, dêem-me espaço. Ar! Quero ar!
            Uma mulher leva no braço o que foi o seu homem, noutros tempos, noutras esperas. O homem caracoleia e a mulher, por algum sentimento de amor, vergonha, obrigação, ou Amor, caminha a seu lado. Sim, aceito. Na saúde e na doença. O homem do livro observa as pessoas que passam, os seus movimentos, talvez os seus receios. Como se quisesse saber, através dos passos e do olhar das pessoas, o que as incomoda. Mas Blimunda está morta. Talvez queira saber os seus medos… Esta mania dos medos e dos receios!
            Dois orientais, pequenos e sorridentes, aguardam o comboio com segurança e satisfação. Não parecem ser objecto de atenção do homem do livro. São demasiado felizes. É mau.
            Agora observa-me atentamente, com um lápis na mão, rascunhando no bloco de notas. Nem imagina que a sua misteriosa vida se condensa entre as apertadas e asfixiadas palavras da língua. Mas tudo é ficção.
            O comboio parece atrasar-se. A impaciência e os nervos a sorrir dentro das pessoas. Olham para o relógio, à espera que ele diga mais do que: tempo. Só nos apercebemos dele quando está a mais, um convidado que está em nossa casa há demasiado tempo e já deixou de ser convidado, passou a um intruso. O tempo incomoda.
           O homem do livro e dos óculos de sol parece moreno, a pele queimada pelo sol mediterrânico numa tez nórdica, não sei, receio estar a inventar personagens.
           Entretanto, o homem do livro nas mãos parece olhar-me novamente, por um momento. Observa-me com um lápis na mão. Eu ou ele? Mas se ele tem um livro nas mãos como é que pode observar-me com um lápis na mão, e escrever num bloco de notas? Princípio de coerência literária! A falta que fazeis em mentiras tão pequenas!
          Mas ele observa-me sem medo e parece querer sorrir para mim. Só para mim. Às vezes ficamos sem palavras perante sorrisos. Não por que estes confortem, temos medo de nos entregarmos a um sorriso. Temos medo que um sorriso seja o início de outra coisa. (Amor) E eu não quero outra coisa.
          A meu lado, uma estranha, nada mais há a dizer. Está tão perto de mim mas tão mais longe do que o homem do livro que espera, na estação, a chegada de um comboio que não parece seguir o tempo.
          O homem do livro volta a olhar para mim e volta a sorrir.
          O sol era o momento ao qual eu não tinha a certeza de resistir.
          Esboço um sorriso coxo, fecho o bloco de notas. Ao homem do livro, digo-lhe não. Desaparece para sempre.

O início de «Rosa Cândida»

P.V.P.: 17,50 € 
Data de Edição: 2014
Nº de Páginas: 348
Editora: Marcador

UM

«Porque vou deixar o país e é difícil dizer quando regressarei, o meu pai, que tem setenta e sete anos, está a preparar-me um jantar memorável e vai fazer uma das receitas que a minha mãe deixou escritas à mão, o género de refeição que ela teria escolhido para uma ocasião destas. 
- Estava a pensar em fazer eglefim panado - diz ele - e, a seguir, sopa de cacau com chantili.
Pego no Saab de dezassete anos e vou buscar o Jósef ao Centro de Dia enquanto o pai tenta fazer a sopa de cacau. O Jósef está parado no passeio, com um ar ansioso, claramente feliz por me ver. Vestiu o seu melhor fato porque me vou embora, e usa camisa que a mãe lhe comprou, roxa e com um padrão de borboletas.»

*Assim começa o romance.

Sentados aqui em cima, na Babel dos livros

Encontrado na página Improbables Bibliothèques, 
Improbables Librairies. A não perder por nada! 

domingo, 11 de maio de 2014

As pessoas são lugares

As pessoas são lugares 


As pessoas são lugares que
(des)habitamos. 
Por sermos infinitos,
perdemo-nos.
Em nós, de nós,
nos outros, dos outros.
Por isso custa tanto perder alguém:
perdemos um lugar para onde ir. Onde estar.
Perdemos um compartimento da nossa casa.
Chão que caminhamos.
Pessoas-lugar-chão.
Que percorremos. Onde vamos.

Marta Antunes

Abelardo Morell

Foto frase do dia: uma vez mais Pessoa...


*Segundo a Wikiquote, a atribuição a Pessoa é falsa: https://pt.wikiquote.org/wiki/Fernando_Pessoa

Emílio Miranda, dia 22

Tu, melhor do que ninguém, deves saber que uma alma é um mecanismo complexo
Simultaneamente frágil e resistente
Uma espécie de fábrica de alegrias e de tristezas, quanto bastem;
Nunca mais do que as que ameacem
A felicidade dos teus dias. E que é tão importante cuidá-lo e mantê-lo
Quanto é ser mais do que parecê-lo.

Uma alma – lembra-te – é um gerador de luz ou de sombras, conforme seja
Alegre ou triste quem a conduz;
Conforme seja a energia que ela produz:
Ígnea ou bruxuleante e insegura!

Se a tua for mais propensa às trevas do que à claridade; mais amiga da lua
Do que do sol; passeia-a como quem passeia uma criança;
Leva-a como levas a esperança,
Pela mão. Uma alma necessita de atenção. De um mecânico
Que a conheça; que não esqueça
Que cada um tem a sua. E que a tua
É a peça de que o teu relógio carece
Para ser tempo; para que a vida aconteça
Como toda a alma deseja e merece!

Não te esqueças: tu és o melhor conhecedor;
O melhor consertador de almas sobre a terra.
Basta teres uma!

Emílio Miranda 

 Foto: Cláudia Miranda