Quando dormíamos
juntos, dormimos juntos quatro vezes, quase os dedos de uma mão, eu fazia
exercícios de trigonometria na minha cabeça.
Eu a estudar as
relações entre os comprimentos de dois lados de um triângulo rectângulo, seno,
cosseno, tangente, co-tangente, secante, cateto oposto, hipotenusa.
Eu indiferente aos
triângulos equiláteros, aos isósceles, aos escalenos, ao seu corpo ao meu lado
a dormir em sossego, ao seu sono provavelmente sem sonhos.
Há matemáticos que
defendem que a trigonometria foi inventada para cálculo das horas nos relógios
de sol, e as horas da noite a passar sem eu as conseguir contar.
Eu tinha 16 anos e
era a melhor aluna da turma a matemática.
Ele também tinha
16 anos e olhos verdes e uma guitarra e escrevia canções.
Canções
melancólicas que contavam histórias estranhas e tristes, em que rimava pulmões
com tacões, com vulcões, com trovões, com traições, com alemões.
Não era muito
inteligente, muito menos aspirante a Camões!
Canções que me
faziam rir.
Foi o primeiro rapaz
(capaz!), a fazer-me rir.
Um rir de riso
irreprimível.
Depois o riso
reprimido a beijos.
Como se eu Ophélia
Queiroz no n.º 42 da Rua da Assunção, quando pela primeira vez viu um senhor todo vestido de preto, com um chapéu de aba revirada e
debruada, óculos e laço ao pescoço, quando pela primeira vez viu Pessoa e
teve vontade de rir, e não riu, o riso reprimido, não a beijos, que Pessoa de
luto e Ophélia em situação protocolar porque no local em companhia de seu pai
para uma entrevista de emprego.
Uma moderníssima
Ophélia, num tempo em que farmácia se escrevia com ph, com vontade de
trabalhar, ter colegas e horários a cumprir, talvez salário no fim do mês, de
ser diferente. Era diferente.
Cuidado com as
raparigas que lêem, e mais cuidado ainda se souberem fazer contas.
Uma Ophélia que
não riu, talvez sorriu sem saber ainda que ia ser amor.
Para mais um amor
correspondido, porque depois o poeta doido e tonto, a traduzir, a atestar, a
confirmar, talvez papel comercial, vinte e cinco linhas e o devido selo ou
carimbo:
Fiquei louco, fiquei tonto…
Meus beijos foram sem conto,
Apertei-a contra mim,
Aconcheguei-a em meus braços,
Embriaguei-me de abraços…
Fiquei louco e foi assim…
Um amor com fraco
fim, Ophélia casou com outro, Pessoa morreu cedo demais.
No meu caso não
foi amor, foi riso apenas, reprimido a beijos.
Foi o primeiro
rapaz, capaz, um valente ou uma valentia (não sei se são a mesma coisa), de
fazer-me rir, num tempo em que eu coleccionava selos usados, os de pássaros e
de barcos a vapor os meus preferidos, e nuvens por usar, palpáveis e
resistentes, imprescindíveis para andar com a cabeça nas nuvens, e era a melhor
aluna da turma a matemática e a todas as disciplinas.
Era extremamente
disciplinada e o riso era coisa indisciplinada.
Foi o primeiro da minha
colecção.
Uma colecção
pequena.
Casei com a quarta
boca que beijei.
Uma boca perfeita
para sorrisos tristes e agridoce no sabor, lia poesia, parecia um sonhador,
parecia amor.
Pareceu-me bem.
Hoje, quando
dormimos juntos, para alegria dos meus pés sempre frios, já não faço exercícios
de trigonometria, já esqueci regras e fórmulas, os pensamentos mais comezinhos,
outras regras, as horas no despertador, os relatórios, a correspondência, os
guarda-chuvas, as gabardinas, uma pilha de meias para dobrar, o que fazer para
o jantar.
Deixei cação a
descongelar.
E faz tanto tempo
que ninguém me canta uma canção, desafina ao ouvido, rima cação com fogão, com
balão, com dragão, faz tanto tempo que a cantar ninguém me tira para dançar,
uma valsa quase de Viena, três passos em volta, em volta, em volta.
A máquina de lavar
às voltas, a roupa para estender, será que amanhã vai chover, e não me posso
esquecer de, depois do trabalho, passar no mercado, será que o senhor António
já voltou do hospital, o diagnóstico tardio de uma apendicite aguda quase lhe
custou a vida, a vida custa, tem preço, para comprar um molho de salsa, outro
de coentros, nenhum de alecrim que não tenham por quem chorar meus olhos, na
tentativa de dar cor e aroma à sopa em que afogo, colher a colher, os dias da
minha vida.